ANTÓNIO ARAGÃO

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ANTÓNIO ARAGÃO

(1921-2008)

António Aragão, poeta de ofício múltiplo e um dos principais nomes da Poesia Experimental Portuguesa (PO.EX), nasceu a 22 de setembro de 1921, na freguesia de São Vicente, na Ilha da Madeira. Desde cedo, reconheceu na Europa não apenas um veículo para a descoberta de novos conhecimentos, mas também um espaço que lhe permitiria exercer a liberdade que não podia alcançar num Portugal sufocado pelo contexto ditatorial do Estado Novo: “E depois esse convívio lá, em liberdade, essa maneira de exprimir-me agora em… pela palavra foi para mim salutar. Foi para mim bom. (…) Onde eu vivia já nem se falava em fascismo, em Itália” (Aragão 1994: 27min34seg).

Com efeito, a formação académica de António Aragão beneficiou da deslocação em espaço europeu, tendo estudado etnografia e museologia em Paris, frequentado o Instituto Central de Restauro em Roma e estagiado no laboratório de restauro do Vaticano. A sua estadia em Itália possibilitou, simultaneamente, a convivência com o pensamento de Umberto Eco e o contacto com os procedimentos cibernéticos e combinatórios desenvolvidos por Nanni Balestrini, experiência que se encontra relatada no texto “A Arte como ‘campo de possibilidades’” (1963). Importa ainda considerar que a evidente iniciativa dialogante, quer por parte de Aragão, quer por parte dos seus pares, levou a PO.EX a integrar rapidamente um movimento internacional, fator que se revelou decisivo para a sua divulgação.

Em 1994, o poeta referiu, num documentário produzido pela jornalista Maria Luísa para a RTP: “Hoje, a pintura que faço é uma pintura que pertence à aldeia global de que falava McLuhan. É uma pintura consequência do que a gente vê em direto na televisão. (…) Essa aldeia global, que eu considero realmente a grande pátria, é o mundo, é o planeta” (Aragão 1994: 5min59seg). Coadunando-se com a era de emergência do ser humano informacional, a obra de Aragão não apenas valoriza a hipótese de exploração das novas tecnologias, como demonstra uma consciência astuta e vigilante face às forças opressivas que subjugam o indivíduo. Ernesto de Melo e Castro destaca, aliás, duas linhas que considera preponderantes neste fazer poético: por um lado, a “de um discurso que a cada passo se perde e se reencontra com outros subdiscursos ou sobrediscursos”; por outro, a “de uma procura icónica da denúncia do ridículo simultaneamente trágico da sociedade capitalista” (Melo e Castro 1995: 174). Ora, tratando-se de uma escrita que coloca permanentemente em causa os paradigmas dominantes e os discursos instituídos, a Europa não poderia sair impune.

Em Os bancos: antes da nacionalização (1975), Aragão procura denunciar a violência perpetrada pelas instituições bancárias, problematizando, não raras vezes, a impenetrabilidade do discurso burocratizante que delas advém. Considerando que nos encontramos perante uma obra que permite detetar uma profunda consciência do modo como as políticas neoliberais têm vindo a promover a acentuação das discrepâncias entre países, não nos surpreenderá que a Europa seja abertamente convocada pelo poeta. Destaque-se uma passagem retirada do poema visual “Soma e evolução”:

BANKOKO:
Também se escreve bancoco.
Referia-se, de início, àqueles que se serviam dos bancos em Bangkok.
Porém, a palavra generalizou-se e tomou vulto principalmente na Europa Ocidental e Américas.
Por último, alastra nos países subdesenvolvidos ou seja nas nações chamadas do terceiro, quarto e até quinto mundo. (Aragão 1975: 98).

Todavia, a relação estabelecida entre palavra e imagem surge não apenas ao nível do poema visual, mas também no âmbito da fotomontagem. De facto, torna-se relevante considerar que a obra em causa se trata de uma edição de autor que conta com a colaboração fotográfica do cineasta e escultor austríaco Helmut M. Winkelmayer. Neste sentido, importa referir que a manipulação das várias fotografias assenta no princípio da intromissão de pequenos bancos de madeira em contextos inesperados, perpetuando o jogo cínico efetuado ao nível da duplicidade de interpretações que o termo banco comporta. Ainda que a palavra Europa não esteja presente em nenhum dos momentos em que podemos observar uma relação clara entre texto e fotomontagem, o certo é que não deixa de se encontrar implícita. Tome-se como exemplo “O anjo tocando o seu banco”:

(idem: 12-13)

Partindo da perspetiva de que a sobrevivência do sistema capitalista assenta na debilidade causada por um quotidiano no qual tudo se pretende efémero e passível de ser comercializado, compreendemos que a opção de incorporar uma obra indiscutivelmente consagrada em nada se revela gratuita. Ao sugerir uma sarcástica divinização do sistema bancário, Aragão denuncia o modo como, em pleno contexto político do capitalismo, a arte corre o risco de se tornar cada vez mais assimilável pelo mercado. A mesma questão parece, de resto, encontrar-se evidenciada nas fotomontagens “Hermes e o banco” e “Um banco é uma obra de arte dos nossos dias”.

Já em Metanemas, publicado em 1981, Aragão apresenta uma crítica acérrima à violência e superficialidade que caracterizam a sociedade pós-moderna. Tal como refere Catarina Figueiredo Cardoso (2015: 120), trata-se de uma obra que não estabelece conexões claras com o contexto político português, propondo-se, na verdade, como uma reflexão em torno dos valores que regem a era globalizada. Assim, servindo-se de recortes retirados de revistas internacionais, Aragão promove uma “fusão visual de imagem e palavra” (Aragão 1985: 186), colocando o leitor perante o retrato de um mundo no qual o consumismo e o medo se reificam:

(Aragão 1981:14)

(idem: 16)

 

Efetivamente, o constante questionamento dos poderes instituídos apresenta-se como um vetor da escrita de António Aragão. A recusa de todos os sistemas totalitários, inclusive discursivos, encontra-se na base de uma produção que, tal como refere Rui Torres, se joga “na superação dos limites da teorização dos géneros, transgredindo convenções dominantes, cruzando meios, investindo num sentido agudo da materialidade multisígnica” (Torres 2015: 9). Destaque-se o caso do primeiro de três volumes de eletrografias, o elogio da loura de Ergasmo nu Atlânticu (1990), construído a partir de três imagens fotográficas originais e no qual somos confrontados com questões dotadas de um tom marcadamente irónico: “mãe Deus tem barriga?/ cala-te! / é melhor não saber” (Aragão 1990: 12); “mãe/ o céu é políticu?” (idem: 15); “mãe um ministro/ pode?” (idem: 29). Com efeito, à medida que as imagens se metamorfoseiam, também os discursos instituídos são alvo de uma distorção igualmente criativa. Nas palavras de Bruno Ministro: “As frases que em Electrografia 1 se imiscuem com as imagens apresentam também elas uma estética da distorção do discurso, fazendo implodir o sentido num processo de recursiva dessemantização que, através do nonsense, persegue a destruição das retóricas instituídas” (Ministro 2015: s.p.).

Perante um país, uma Europa e um mundo nos quais se perpetua a emergência de uma cultura progressivamente uniformizada e cujo objetivo se tem direcionado para a neutralização de qualquer ato contestatório, torna-se evidente que as preocupações presentes na obra de António Aragão permanecem, ainda hoje, inquietantemente atuais. Ao erguer-se na desestabilização dos paradigmas dominantes, a prática poética de Aragão não apenas releva a urgência de se priorizar novamente os laços e a memória, como promove uma destruição criativa e contundente de uma realidade não raras vezes disfórica. E, por essa razão, torna-se pertinente recordar que “a destruição é, na obra de António Aragão, uma proposta de aposta, uma certeza lúdica, um campo de experiência, uma provocação à ordem estática. Provocar é promover” (Cruz 1984: 93).

 

Lista de poemas sobre a Europa

“Hermes e o banco”, Os bancos: antes da nacionalização (1975) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/osbancos/aa_osbancosantesdanacionalizacao_1974_p053-054.jpg>

“O anjo tocando o seu banco”, Os bancos: antes da nacionalização (1975) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/osbancos/aa_osbancosantesdanacionalizacao_1974_p031-032.jpg>

“Soma e evolução”, Os bancos: antes da nacionalização (1975) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/osbancos/aa_osbancosantesdanacionalizacao_1974_p098.jpg>

“Um banco é uma obra de arte dos nossos dias”, Os bancos: antes da nacionalização (1975) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/osbancos/aa_osbancosantesdanacionalizacao_1974_p069-070.jpg>

“NÃO PERCA A ACTUALIDADE”, Metanemas (1981) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/metanemas/aa_metanemas_1981_10.jpg>

[Sem título], p. 14, Metanemas (1981) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/metanemas/aa_metanemas_1981_14.jpg>

“não saiba NÃO faça NÃO GRITE”, Metanemas (1981) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/metanemas/aa_metanemas_1981_16.jpg>

“PROGRESSO”, Metanemas (1981) <https://po-ex.net/images/stories/antonioaragao/metanemas/aa_metanemas_1981_20.jpg>

 

Antologia breve

 

 

 

in Metanemas (1981: 10)

 

in Metanemas (1981: 20)

 

Bibliografia ativa selecionada

ARAGÃO, António (1994), “Documentário sobre António Aragão”, in RTP [autoria da jornalista Maria Luísa]. <https://www.youtube.com/watch?v=c6LWST35Df4>

— (1990), Electrografia 1, Lisboa, Vala Comum.

— (1985), “A escrita do olhar”, in Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa, ed. Fernando Aguiar e Silvestre Pestana, Lisboa, Ulmeiro: 175-188.

— (1981), Metanemas, Lisboa, Edição de autor. <https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/antonio-aragao-metanemas/>.

— (1975), Os bancos: antes da nacionalização, Funchal, Edição de Autor. <https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/antonio-aragao-os-bancos/>

— (1963), “A arte como ‘campo de possibilidades’”, in PO.EX: Textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, ed. Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro, Lisboa, Moraes Editores, [1981]: 102-105.

 

Bibliografia crítica selecionada

CRUZ, Liberto (1984) “Recensão crítica a Pátria. Couves. Deus. Etc.”, Colóquio/Letras, n.º 78: 93.

FIGUEIREDO, Catarina (2015), “«“ler” o poema é simplesmente dobrar e desdobrar» [“to read” the poem is simply to fold and unfold]. Artist’s books by António Aragão”, Cibertextualidades, nº 7, Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa: 109-126.

MELO E CASTRO, E. M. de (1995), “António-Escrita-Aragão”, in Voos da Fénix Crítica, Lisboa, Edições Cosmos: 171-176.

MINISTRO, Bruno (2015), “’Electrografia 1’ de António Aragão [Recensão crítica]”, in Arquivo Digital da PO.EX. <https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades-alografas/bruno-ministro-electrografia-1-de-antonio-aragao-recensao/>

TORRES, Rui (2015), “Introdução do organizador”, Cibertextualidades, nº 7, Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa: 109-126.

Inês Cardoso

Como citar este verbete:
CARDOSO, Inês (2018), “António Aragão”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/antonio-aragao/