(1939-)
Professor, ensaísta e romancista italiano, nasceu em Trieste, uma cidade proeminente no antigo império Austro-Húngaro, que foi e continua a ser, entre auges e quedas, uma urbe cosmopolita, local onde se entrecruzam ideias e civilizações, ponto de passagem de caudilhos, artistas e pensadores e um dos cadinhos das ditosas ou arriscadas e, por vezes, desastrosas experiências que, desde Carlos Magno, têm formado e transformado a Europa.
Magris defende o conceito de Mitteleuropa como entidade geopolítica e cultural de relevante importância para a coesão interna do continente europeu, em sintonia com o postulado de Jacques Le Rider: “The idea of a Holy Roman Germanic Empire, guarantor of equilibrium in the middle of Europe reappears in intellectual discussion every time Central Europe faces a crisis” (Le Rider s/d: 159).
O autor tem dedicado a sua vida como docente e escritor a refletir sobre uma Europa histórica, política, social e cultural de jure. Germanista assumido, defende o primado cultural alemão, isento de perspetivas nacionalistas ou imperialistas, cosmopolita, aberto à comunidade, não como uma imposição identitária alemã, mas como parte de um saber que deve ser universal. O escritor sustenta que “(a) nacionalidade é cultura, não biologia” (Magris 2011: 158), que pensar alemão não significa ser alemão, uma vez que “o reconhecimento de pertença/não pertença (…) não tem nada que ver com o parentesco étnico, mas sim com a afinidade a uma cultura e a um estilo de vida” (idem:159). O autor acrescenta ainda que os maiores pensadores dos últimos séculos, as influências políticas e culturais europeias e mesmo mundiais, mais marcantes, provêm da cultura alemã. Nomes como Marx, Hegel, Heidegger ou Nietzche, foram determinantes na formação do pensamento moderno. (apud Castellví 1989).
Escreve regularmente para algumas publicações periódicas e jornais, com particular incidência para o Corriere della Sera e é detentor de vários prémios literários nacionais e internacionais, tendo sido várias vezes proposto ao Prémio Nobel da Literatura. Escritor de fronteira apercebe-se e explora criticamente o jogo de tensões que a sua situação privilegiada lhe oferece, o que o torna uma autoridade no seu campo.
Claudio Magris assume-se defensor convicto de uma Europa confederada. Este escritor italiano que, a ter nascido duas décadas antes seria, por fatalidade temporal e histórica, um súbdito do Império Austro-húngaro, – o qual marca uma presença importante no seu pensamento político, – acredita na construção de uma Europa una e coesa na diversidade, ou seja, com a força que “poderia e deveria ter, se soubesse entesourar a sua multiplicidade dispersiva de energias e as unificasse em vez de as desperdiçar numa evasiva perpétua, numa desaceleração permanente” (Magris 1992: 279).
Na sua obra icónica, Danúbio, Magris faz um périplo pelo percurso do rio homónimo, desde a(s) sua(s) imprecisa(s) nascente(s), o seu término igualmente indistinto e a sua vaga periferia. É um documento híbrido, misto de livro de viagens, autoficção, relato histórico-geográfico e antologia de parábolas, onde o curso de água serve de metáfora para a Europa Central e suas conotações com uma Mitteleuropa de forte influência germânica e ambas também de limites indefinidos (vide Medeiros 2003: 141-149; Le Rider s/d: 155-169). Este rio, lugar de separação, mas também de encontro, espetador de tensões constantes, consequentes da contiguidade com os países de Leste, – os Eslavos, – outrora considerados bárbaros,” aqueles a que a conceção oitocentista chamava ‘nações sem história’ “(Magris 1992: 232). São povos de diferentes etnias e fronteiras flutuantes que, no decorrer dos séculos, mudaram e ainda mudam de limites e governos, ao sabor das correntes hegemónicas. Mais recentemente, até ao fim da década de 80 do século passado, eram dominados ou influenciados pela extinta União Soviética.
Espetador de guerras titânicas, mas também protagonista das correntes de pensamento que revolucionaram o mundo, o rio faz o escritor cogitar “se, seguindo-o até ao delta, entre povos e gentes diferentes, entramos numa arena de recontros sangrentos ou no coro de uma humanidade apesar de tudo una na variedade das suas línguas e das suas civilizações” (Magris 1992: 32).
Magris desconstrói a Europa fazendo uma leitura das suas origens e do seu percurso histórico, social e político, disseca a influência civilizadora do Sacro-Império Romano-Germânico e a sempre presente e marcante influência da dinastia dos Habsburgo e demarca através delas a importância da cultura germânica, asseverando que “(…) a presença alemã na Mitteleuropa foi um grande capítulo de história e o seu eclipse uma enorme tragédia, que o nazismo, responsável pela sua degradação e derrocada, não pode fazer-nos esquecer. Interrogarmo-nos sobre a Europa significa, hoje, interrogarmo-nos sobre a nossa própria relação com a Alemanha” (Magris 1992: 31). ”A este universalismo alemão (…) está ligada uma grande página da civilização europeia, a intensidade de uma Kultur que assumiu sobre os seus ombros a tensão entre a vida e o valor, entre a existência e a ordem” (ibidem).
É nas ondas do Danúbio, no seu percurso, no recorte das suas margens, nesse rio viajante, que “é e não é, que nasce de vários lugares e vários progenitores” (Magris 1992: 34), onde existem “os pragueses de nome alemão ou os vieneses de nome checo” (ibidem), que a Europa a que Magris dá voz, tenta encontrar uma identidade ainda indefinida e, quiçá, utópica.
Até à queda do muro de Berlim, mítico ícone da Guerra Fria, em 1989, Claudio Magris entrevia a região – e, no fundo, toda a Europa – ameaçada pela então crescente hegemonia soviética, a Leste, a qual cria que, a breve prazo, poderia destruir o projecto de união europeia preconizado por, entre outros, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Jean Monnet. As alterações entretanto produzidas (a reunificação da Alemanha e o fim da URSS) criaram-lhe novas, porém cautelosas, espetativas.
A atual visão crítica do autor sobre a Europa coincide com a sua visão microcósmica da cidade-natal, Trieste, austro-húngara num passado ainda recente e que no pós-segunda guerra mundial, sob a égide dos Aliados e até 1954, se manteve tecnicamente um Estado independente, aguardando a decisão das Nações Unidas entre a submissão à extinta Jugoslávia de Tito ou a adesão à Itália: “Soy pesimista com la razón, optimista com la voluntad. He nacido com esa fe en la utopia y com el precoz desencanto que me daba la historia de Trieste, esa espécie de no future (sic)” (apud Rojo 2017).
É essa fé na utopia de uma Europa Federada que dá a Claudio Magris a força necessária para se opor ao ceticismo generalizado, apesar dos vários fracassos (resgates, Brexit, movimentos independentistas) de uma Europa Confederada, vulgo União Europeia ou UE.
Danúbio não servirá por si só para caracterizar o desvelo e preocupação do autor perante a Mitteleuropa e, afinal, o Velho Continente; outras obras de sua autoria, como A História não Acabou, completam-na. Nesta última, que reúne crónicas anteriormente publicadas no Corriere della Sera, encontra-se o complemento essencial para a compreensão global do seu sonho europeu.
Marcadamente humanista, o autor não se foca num Estado ou região (não obstante o seu país ser o ponto de partida) mas alarga-se à Europa e ao próprio orbe, reconhecendo e respeitando sempre a miríade dos diferentes Outros que a constituem. Essa visão do autor carateriza o seu ideário europeu, como aquele que (des)espera da Europa, lugar de no future, de vazio sem perspetivas, mas da qual não abdica (apud Castellví 1989).
Em A História não Acabou, o autor alerta para os perigos de uma sociedade globalizada e que podem fazer perigar ainda mais os esforços de unificação: “Na globalização toda a identidade se sente ameaçada, com o temor de se dissolver e desaparecer, e então exaspera a sua particularidade, faz dela uma diferença absoluta e selvagem, um ídolo – que, como todos os ídolos, impele facilmente à violência e ao sacrifício de sangue” (Magris 2011: 12).
A esperança de uma Europa federada assenta na existência de um destino comum, com todas as promessas e ameaças que lhe são inerentes. Se, por um lado, o escritor vê com apreensão o perigoso recrudescer dos nacionalismos exacerbados, receosos pela sua perda de identidade, pelo outro teme ainda os “inimigos hegemónicos” (Morin 1987: 136), os países cujas influências económicas culturais e políticas exercem pressões relevantes no processo de globalização.
Tal como George Steiner (Steiner 2013: 26-28) o autor afirma que, na Europa, os cafés fizeram e ainda fazem história, pois a sua importância como Ágoras modernas, como locais de discussão e refinamento cultural e reflexão política, são marcos incontornáveis da cultura europeia, são locais “onde se misturam trabalho e lazer, onde nos entregamos a certas rotinas, a certa preguiça, a certa reflexão, e onde podemos ler, discutir, e depois escrever” (apud Moura 2016).
Por vezes Magris cede ao seu pessimismo com a razão, temendo “que a Europa tenha terminado, província secundária de uma história que se decide noutros lugares, nas salas de comandos de outros impérios”. Porém, logo em seguida, riposta, otimista com a vontade: “(…) a familiaridade com o elenco da Mitteleuropa (…) leva-nos a não acreditar em destinos irreparáveis (…), justamente porque a Europa ainda existe, o seu sol está ainda suficientemente alto no horizonte e ainda aquece” (Magris 1992: 278-279).
Antologia breve
“Pienso que esta fiebre identitaria, que conduce a una continua obsesión por identificar todas las naciones y todos los idiomas y todos los grupos étnicos, y que sin duda son un valor sagrado, cuando la lleva a cabo un Estado es un delirio, porque también puede arrastrar a la guerra y a las persecuciones. Una minoria amenazada, cuando se convierte en Estado, también se convierte en mayoría, y entonces comienza a amenazar a la minoría dentro de ella”. (apud Corona 2008)
“Eu sou um patriota europeu, que sonha pelo momento em que a Europa será um único Estado e os atuais países serão regiões”. (apud Silva 2016)
“O Danúbio corre, largo, e o vento da tarde passa pelo café ao ar livre como a respiração de uma velha Europa que talvez esteja hoje nas margens do mundo, sem já produzir mas apenas consumindo história. (…) A Europa é este café, no qual já não vêm sentar-se os administradores delegados do Espírito do Mundo, mas quando muito funcionários de alguma sua filial subalterna, que não tomam decisões mas as executam (…)”.
in Danúbio (1992: 277-278)
“Todo o herdeiro dos Habsburgos é um verdadeiro homem do futuro, porque aprendeu, antes de muitos outros, a viver sem futuro, na interrupção de toda a continuidade histórica, ou seja, aprendeu não a viver mas a sobreviver”.
in Danúbio (1992: 279-280).
“O rio (…) arrasta a civilização alemã, com o seu sonho da odisseia do espírito que torna a casa, para oriente e mistura-a com outras civilizações, noutras tantas metamorfoses mestiças em que a sua história atinge a consumação e a queda”.
in Danúbio (1992:16)
Bibliografia ativa selecionada
CASTELLVÍ, Miguel Pedro (09/08/1989), in https://literatura283.wordpress.com/2016/06/07/claudio-y-su-danubio. ( Consultado em 03/12/2017).
CORONA, Clemente (2008), in https://www.tugranviaje.com/entrevista/claudio-magris-el-viajero-a-pie/.
LE RIDER, Jacques, in Mitteleuropa, Zentraleuropa, Mittelosteuropa A Mental Map of Central Europe. http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1368431007087471: pp 159. (Consultado em 10/01/2018).
MAGRIS, Claudio (1992), Danúbio, Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Dom Quixote.
MAGRIS, Claudio (2011), A História Não Acabou, Trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Quetzal.
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MOURA, Paulo, in https://www.publico.pt/2016/05/23/culturaipsilon/noticia/claudio-magris-1732207. (Consultado em15/11/2017).
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SILVA, João Céu e (30/05/2016), in https://www.dn.pt/artes/interior/estamos-a-viver-a-iv-guerra-mundial-5198812.html. (Consultado em17/11/2017).
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Bibliografia crítica selecionada
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PRADO, Bernat Castany (2015), Anacionalismo y Anarquismo en el Siglo XX. seguido de una traducción del “Manifiesto de los Anacionalistas” (1931), de Eugène Lanti, in http://diposit.ub.edu/dspace/bitstream/2445/96205/1/657459.pdf).(Consultado em12/11/2017).
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http://www.ibe.unesco.org/sites/default/files/gramscis.pdf (2001). (Consultado em11/12/2017).
José Luís dos Santos Freitas
(1º ano do Mestrado de Estudos Literários, Culturais e Interartes (MELCI): Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais (2017-18))
Como citar este verbete:
FREITAS, José Luís dos Santos (2018), “Claudio Magris”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.