(1926 – 2019)
José Fernandes de Lemos nasceu em Lisboa, a 3 de maio de 1926, e morreu a 17 de dezembro de 2019, em São Paulo. Até 1953, ano em que partiu definitivamente para o Brasil com o objetivo de escapar à repressão da ditadura portuguesa, Fernando Lemos integrou o movimento surrealista, participando (em conjunto com Marcelino Vespeira e Fernando de Azevedo) na exposição da Casa Jalco em 1952. Esta exposição lisboeta foi considerada um escândalo, como atestam os vários jornais da época (veja-se, por exemplo, o artigo “Pequeno escândalo no Chiado…” publicado no Diário de Lisboa a 12 de janeiro de 1952). Em entrevista a António Gonçalves, incluída na antologia fotográfica Fernando Lemos. Eu sou fotografia (2011), o autor recorda: “Nós estávamos com medo. A rua que dava para a Casa Jalco tinha filas o dia inteiro e a exposição ficava aberta até muito tarde, pela quantidade de pessoas que a queriam visitar. Parava tudo por lá, o Almada, o Diogo Macedo, o Casais Monteiro, que todas as tardes estavam sentados a ouvir os comentários das pessoas, que cuspiam nas coisas e as rasgavam” (2011: 23).
As fotografias feitas entre 1949 e 1952 (muitas das quais são hoje célebres retratos de intelectuais e artistas) valer-lhe-iam, mais tarde, o reconhecimento em Portugal. Em 2001, recebeu o Prémio Nacional de Fotografia, atribuído pelo Centro Português de Fotografia, o que permitiria sobretudo dar a conhecer o seu trabalho fotográfico através de exposições subsequentes. No entanto, este artista multifacetado, e considerado “a maior força criativa da sua geração” por José-Augusto França (1973: 2), desenvolveu, ao longo da sua extensa vida, inúmeros trabalhos em outras áreas artísticas como o desenho, a pintura, o design ou a poesia.
Enquanto poeta, Fernando Lemos publicou quatro livros, sendo que cada qual inclui o(s) livro(s) anteriores: Teclado Universal (1953), Teclado Universal e Outros Poemas (1963), Cá & Lá. Antecedido de Teclado Universal (1985) e Poesia (2019). Ainda assim, importa notar que até 2019, Cá & Lá. Antecedido de Teclado Universal (1985), volume esgotado e de difícil acesso em Portugal, era o único livro que compilava a sua obra poética. Esse problema seria solucionado através da publicação de Poesia, uma antologia editada pela Porto Editora, que reúne todos os poemas presentes na edição de 1985, acrescentando, ainda, uma secção original: “500 anos de segredo — alguns inéditos e dispersos” (na qual se encontram alguns poemas com datas entre 1964 e 2015, e outros poemas não datados).
Consultar a obra poética de Fernando Lemos, não obstante a diversidade de temáticas e “tipologias de texto” que evidencia (E. M. de Melo e Castro (1985: 257-264)) identifica dezanove tipologias de textos, mencionando exemplos tão diversos como “texto político”, “texto biográfico, quase fado ao contrário”, “texto erótico”, “texto para rir”…), permite concluir que o pensamento acerca da Europa nunca terá sido um esforço muito relevante para o seu autor. Como tal, o substantivo “Europa” ou os adjetivos derivados encontram-se totalmente ausentes dos poemas. Uma única exceção será porventura o poema “Ao fomem que passa na europica” (1985: 177), pertencente à secção “Linguagem” de Cá & Lá. Os cinco poemas incluídos nessa secção constroem-se a partir da criação de jogos de palavras. Assim, além de “inventar imagens” (“Porque sou neste espaço de solidões / bafo de inventar imagens / na vidraça da janela (Lemos 1953: 25)), Fernando Lemos inventa igualmente palavras, sugerindo ou evocando múltiplos significados a partir da construção, por amálgama, de diferentes significantes.
Apesar de o poema “O fomem que passa na europica” estabelecer uma oposição entre a vivência europeia/latina (“europica”, “latirnamente”, “latinaquent”) e a norte-americana (“americarne”, “amerricagem”, “USARt”), Fernando Lemos, em grande parte dos poemas, prefere refletir a respeito das diferenças entre Portugal e o Brasil. Consequentemente, há uma tensão explícita entre o ir/ficar, Brasil/Portugal, cá/lá, que se exterioriza de forma muito evidente num longo poema sem título, iniciado com o verso “Que me importam as entradas e as saídas dos barcos” (Lemos 1963: 64-68). Nesse poema, Fernando Lemos escreve: “se pensam lançar a bomba / desistam / eu já lá estou / de rastilho esperando o lume”. Assim, é inevitável não comparar estes versos com o conhecido autorretrato do fotógrafo, denominado “Eu”, e com a explicação que mais tarde o próprio daria: “No meu auto-retrato coloquei uma carta de Tarot, pois na altura nós mexemos com tudo e porque não o Tarot?! Escolhi o enforcado para declarar à própria polícia, à própria repressão que se me quisessem enforcar já iam atrasados porque eu já estava enforcado por minha vontade. É também o retrato de alguém que queria fugir de se identificar” (Lemos 2011: 18).
Um outro poema inédito, iniciado pelo verso “Diálogo pós-moderno já que nós antiquamos tudo” (2019: 286-287), incluído em Poesia (e datado de 1998), constrói-se a partir da oposição entre o país em que Fernando Lemos nasceu e o país onde viveu a maior parte da sua vida. Em 1960, José-Augusto França optava pela palavra “raiva” para descrever o autor: “Fernando Lemos foi o emigrante que partiu, com mais raiva do que saudade, e no Brasil encontrou vazão para ela, numa respiração mais larga, num campo mais aberto e mais livre” (1960: 28). Bem mais tarde, numa conversa com Alexandra Lucas Coelho, Fernando Lemos explicaria os motivos que o levaram a sair de Portugal em direção ao Brasil: “A vida em Portugal era uma coisa para chorar. Uma agonia viver naquele país com uma ditadura que ia roubar o que podia ser bom em mim. Então me entusiasmei com os festejos do 4º Centenário do Brasil em São Paulo, que seriam em 1954. Vim em Agosto de 1953. Arranjei passagem no Vera Cruz, com a ideia de não voltar mais a Portugal e não voltei. Despedi-me de toda a gente” (2011: s/p). Como tal, são inúmeros os depoimentos e as entrevistas de Fernando Lemos que explicam as razões do exílio, a tensão entre Portugal e o Brasil, assim como as diferenças observadas entre estes dois lugares, ou, mais concretamente, entre Lisboa e São Paulo. Em “Retratação”, longa entrevista de 2018 concedida ao realizador Victor Ferreira Rocha, Lemos explora justamente as diferenças entre as duas cidades, assumindo que Lisboa era “um pouco provinciana” ou “quase rural”, em comparação com o “mundo cosmopolita, de vida” de São Paulo (2018: 340). E refere ainda: “São Paulo é um lugar à parte. Uma cidade riquíssima dentro de um país muito pobre. Aqui há de tudo. Também tem fome e favela. Então eu fiquei frente a um cenário entre o deslumbramento e o espetáculo e, ao mesmo tempo, a saudade de alguém que morreu. Como se Lisboa tivesse ido embora” (341). Por outro lado, o documentário Fernando Lemos — “como, não é retrato?”, realizado por Jorge Silva Melo, conta com duas entrevistas realizadas a Fernando Lemos. A primeira em 2008 (Lisboa) e a segunda em 2017 (São Paulo). Logo no momento inicial da primeira entrevista, Fernando Lemos destaca as cicatrizes da guerra que se sentiam na Europa (referindo que numa viagem de comboio até Paris, as paisagens revelavam cenários destruídos). E mais adiante acrescenta uma reflexão inédita: “Eu tenho da Europa uma visão muito… quase desagradável. Eu acho que a Europa é um shopping. Um shopping de acervos, de antiguidades. Tem toda uma força cultural que exactamente não se discute. Mas a criatividade foi acontecer noutros lugares”.
Por fim, saliente-se que, embora uma ideia de Europa não se revele de forma evidente nos poemas, podem ser encontradas duas referências a Paris. A primeira no poema “Cepti-cidade”: “Ir a Paris dizer que bem!… / e voltar por entre tambores cardíacos // para uma cave de cobras e lagartos” (Lemos 1953: 7); e a segunda no poema “Outra apresentação em forma de conversa”: “A teimosia de que Paris é que é / andar em Paris / com o roteiro de Lisboa no bolso / andar em Lisboa com o roteiro de Paris” (1963: 46). E, desta forma, tampouco Lemos se coíbe de analisar a influência que a cidade francesa (coração artístico e capital cultural da Europa no momento da redação desses poemas) tinha na arte em Portugal, criticando ironicamente essa subserviência.
Lista de poemas sobre a Europa
“Cepti-cidade”, Teclado Universal (1953)
“Outra apresentação em forma de conversa”, Teclado Universal e Outros Poemas (1963)
[“Que me importam as entradas e as saídas dos barcos”], Teclado Universal e Outros Poemas (1963)
“Ao fomem que passa na europica”, Cá & Lá. Antecedido de Teclado Universal (1985)
[“Diálogo pós-moderno já que nós antiquamos tudo”], Poesia (2019)
Antologia breve
Ao fomem que passa na europica
Aqui – armigrantedesraça
de samba desemba-raça
americarnelatirnamente
Sente americar
cara rente armaraart
latinaquent
Americarnort ar brasent
dorentecalorente
Ame ricanoar
amerricagem amerita rota
late atitude ente
Amare danarte
norte martefort
proenfartUSARt usa
usamericarente amem-te
Ámen.
in Cá & Lá. Antecedido de Teclado Universal (1985: 177)
Que me importam as entradas e as saídas dos barcos
que partam eu fico que cheguem eu cá estou
indiferente
o mundo começa já os relógios tecem os seus caprichos
o sol entra numa oficina
rolando a ganhar os dias
eu fico
que me importam os barcos
fico para ganhar a cicatriz
do baton e das asas moles
fico no incêndio enquanto quiser
nego-me à agua que partam os barcos
que cheguem os barcos
que os leve e traga a água fico
que me importam
os tratados burocráticos
e a fome obrigatória até aos vinte anos
fico desenhando espelhos
para embaciar os milagres
ou colar borboletas no lugar dos selos
fico enquanto quiser fico voando
roubando ciganos
o cais não é tão largo que me facilite
o gesto o gesto não é tão necessário que me faça invejar os barcos
estou muito simplesmente farto
de água
eu fico com traços verticais de morder o céu
meio aos edifícios
que partam os barcos e os comandantes
mais a água ficam os aviões a jacto
os jornais pôdres e repletos
endereços do crime fico
fico remexendo o pântano mágoa irredutível
comendo flores
fico vendo partir os homens com as mulheres
que escolheram crianças que êles não largam
fico com as mulheres embebidas em vidro
rolando no asfalto
fico até de madrugada
as peças de roupa que estão estendidas
à espera dos mortos esperam
eu espero o sol que também fica
fico com o sol que fica secando os vivos
e a roupa e os mortos
enquanto eu quiser trarei ofensivamente
os bolsos virados para o lado de fora
as calças sem botões a indisposição que entender
fico enquanto os barcos vão e vêm pela água
fico na retina do esqueleto público
Se levarem a água os barcos
os comandantes ainda assim
fico
fico a rir-me no alto do morro
com um pretinho no colo
desses cofres fortes onde o milionário
acomodou o homem
fico a rir-me dos bichos
fico dando a bênção e lambendo facas
deixo os dentes rolarem no silêncio
fico no môrro mais intolerado
do novo mundo
fico a ler nos seios moles da imaginação
americana
vão para o diabo os barcos que vão
os barcos que vêm
não quero janela nem árvore nem
algo que faça sombra fico-me
banhado no veneno dos óleos queimados
enquanto eu quiser esquecerei
os barcos os comandantes
a água
fico ao lado dos negros e dos brancos
com um zumbido furando as orelhas
se for necessário plantar árvores já
mortas ajudarei
fico para assistir à humilhação
vejo crianças bailando o crime
bombas de chocolate
prostitutas bancárias fico
fico de qualquer forma
acabem os barcos a água
os comandantes
se pensam lançar a bomba desistam
eu já lá estou
de rastilho esperando o lume
fico que me importam os barcos que vão
os barcos que vêm fico
a sós com a vida perpétua
metam os barcos no fundo
com os homens as mulheres
as crianças
levem também o cais
e mais
os acenos de despedida fico
eu fico
ainda que os olhos se me partam em espelhos
remendos de lágrimas fico
fico
é mesmo madrugada
in Teclado Universal e Outros Poemas (1963: 64-68)
Diálogo pós-moderno já que nós antiquamos tudo
e pós-antigo já que não modernisamos nada
Brasil nós somos / não fomos
Portugal nós não somos o que fomos
Brasil ainda somos / jamais fomos o que somos
Portugal fomos porque somos
Brasil nós também somos / desiguais
Portugal nós também somos iguais
Brasil nós inventamos o que lembramos
Portugal nós esquecemos o que lembramos
Brasil nós lembramos o que esquecemos
Portugal nós inventemos o que esquecemos
Brasil nós inventamos o que somos
Portugal nós esquecemos o que inventamos
Brasil nós nascemos antes
Portugal nós descobrimos depois
e assim sucessivamente
por outros tantos 500 anos que todos fomos
e mais outros que não somos
[1998]
in Poesia (2019: 286-287)
Cepti-cidade
Em 1953
atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecessemos…
Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt ignorantes
Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos
Ir a Paris dizer que bem!…
e voltar por entre tambores cardíacos
para uma cave de cobras e lagartos
a verificar que surge sempre
um iô-iô antes de uma guerra…
in Teclado Universal (1953: 7)
Outra apresentação em forma de conversa
(do Catálogo de uma Exposição)
Há em todas as coisas expectativa
O gesto traz sempre no rosto
o seu significado
A imaginação corre perigos
a arte moderna a sua individualização
pintor – menos – comunicável só porque
é menos legível
problema – hoje do homem – comum
na sua medida de complicação poética
homem – artista capaz
criador de processos do seu próprio encontro
servir-se deles
mais para se conduzir do que para se explicar
A necessidade como compensação
do ambiente próprio – familiar – humano
à sua experimentação
A teimosia de que Paris é que é
andar em Paris
com o roteiro de Lisboa no bolso
andar em Lisboa com o roteiro de Paris
nosso ambiente sempre a dar provas más
Os homens a saberem-se hoje iguais
tão iguais como o eram já livres
Os que ainda não vêem nos quadros
os seus próprios problemas
a continuarem a dizer que não percebem
como se não acreditassem que o braço
repousando numa tartaruga
torna o gesto mais repousante
ou que um fio de prumo
pode de facto ser feito de um pêssego
Na pintura de Dacosta há isto e por isso
mo sugeriu
Estamos todos demasiado cúmplices dela
para nos apetecer especulá-la
ou pedir-lhe explicações
e quanto a artistas
do alfaiate para cima
há o mínimo de indiferença pelo público
que é ainda o que lhes permite
fazer alguma coisa
in Teclado Universal e Outros Poemas (1963: 45-46)
Bibliografia ativa selecionada
LEMOS, Fernando (1953), Teclado Universal; ed. ut.: in Poesia, Porto, Porto Editora, 2019.
— (1963), Teclado Universal e Outros Poemas; ed. ut.: ibidem.
— (1985), Cá & Lá. Antecedido de Teclado Universal; ed. ut.: ibidem.
— (2011), Entrevista concedida a António Gonçalves, in Fernando Lemos. Eu sou fotografia, Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda: 14-23.
— (2018), “Retratação”, entrevista concedida a Victor Ferreira Rocha, entre março e maio, in Poesia, Porto, Porto Editora, 2019: 337-383.
— (2019), Poesia, Porto, Porto Editora.
Bibliografia crítica selecionada
CASTRO, E. M. de Melo e (1985), “Lemos Fernando como quem lê FERNANDO LEMOS”, in Fernando Lemos, Cá & Lá. Antecedido de Teclado Universal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda: 257-264.
COELHO, Alexandra Lucas (2011), “Em casa de Fernando Lemos”, in Público; ed. ut.: http://blogues.publico.pt/atlantico-sul/2011/10/31/em-casa-de-fernando-lemos/ (último acesso em 6/04/ 2020).
FRANÇA, José-Augusto (1960), “Fernando Lemos”, in Colóquio. Revista de artes e letras, nº 9, junho: 27-31.
— (1973), “Fernando Lemos expõe”, in Diário de Notícias, 14 de junho, suplemento literário: 2.
MELO, Jorge Silva (realizador) (2018), Fernando Lemos — “como, não é retrato?”, produção Artistas Unidos/RTP, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.
Vitor Ferreira
(Esta publicação foi desenvolvida no âmbito do Programa Estratégico UIDP/00500/2020 e da Bolsa de Doutoramento SFRH/BD/130686/2017, financiada pela Fundação Para a Ciência e a Tecnologia)
Como citar este verbete:
FERREIRA, Vitor (2020), “Fernando Lemos”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/fernando-lemos/