(1938 – 2007)
Fiama Hasse Pais Brandão nasceu em Lisboa em 1938 e faleceu, na mesma cidade, em 2007. A infância da poetisa foi passada numa quinta em Carcavelos, o que justifica a significativa presença de elementos bucólicos na sua obra, particularmente duma mundividência aquática inspirada no Tejo. Assim, Fiama representa Portugal através de um processo metonímico, encetando uma reflexão sobre o destino humano. Daqui decorre a oposição entre a memória do passado e a contemporaneidade, conforme sugerem os versos “Há rios de abas perversas como o Tejo, de barcos com destino (…) / O rio devasso inunda, trazendo / águas correntes com o destino”, “sempre que as nuvens passam passa / a memória do silvo dos barcos” (2006: 80, 395).
O Tejo constitui, desta forma, um elemento nuclear na construção da identidade portuguesa em oposição às outras nações europeias, assumindo uma significação emblemática no poema “Foz do Tejo, um país”, ao figurar um “povo mudo” e “uma nação única de memórias do mar / que não responde senão em nós. Glórias, misérias, / que guardámos por detrás do olhar lírico” (ibidem: 692).
A poetisa frequentou o liceu St. Julian’s School, em Carcavelos, e ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no curso de Filologia Germânica (que não chegou a concluir), cuja componente curricular contemplava o ensino das línguas, culturas e literaturas alemã e inglesa. Desde cedo Fiama é atraída por vozes culturais de múltiplas origens. Note-se a importância que, na sua obra, assumem as suas raízes judaicas, veiculadas por via materna, o estudo da literatura portuguesa (em particular da lírica camoniana), o imaginário anglo-saxónico e, a nível temático, o perpétuo fluir das águas e o ciclo da Natureza em incessante renovação. Na elegia “Ao raiar do Sol, ainda dormia”, Fiama textualiza, num tom nostálgico, as memórias do passado, partindo da descrição da vida campestre relacionada com as recordações de infância. A emergência dos espaços de infância na poesia de Fiama deverá ser entendida no quadro de uma realidade tropologicamente construída, de acordo com Carlos Mendes de Sousa (2001).
Surge, neste contexto, uma referência explícita à palavra “Europa”, apontando certamente para a divindade da mitologia grega. Num poema de Cenas Vivas, Fiama cruza esta referência greco-latina com uma releitura de versículos do Génesis: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!” (Génesis 3:19). Vejamos, agora, os versos de Fiama: “É hoje, quando tu, filho de Europa, / expulso da seara do teu trigo, / em todos os muros vês escrito / que o suor é vão, e o teu rosto negado” (2000: 609). Mesmo a narrativa teológica que explicava o sofrimento é agora negada: o suor tornou-se inútil, e o rosto deixa de permitir uma identidade.
Ora, as influências do teatro e da filosofia constituem as matrizes, a nível cultural e identitário, do modo como a autora encara um povo integrado numa cultura europeia: no seu percurso, Fiama apreendeu várias referências literárias, de Dante a Shakespeare, passando por Goethe, Rilke, Homero, Platão, Bernardim ou Camões. Esta vasta formação intelectual molda uma procura poética que utiliza diversas fontes literárias enquanto ponto de partida. A palavra em Fiama visa a reflexão sobre o facto de Ocidente não ter sido ainda capaz de abandonar a convenção e o individualismo: “desde há muitos séculos / o Ocidente / está obcecado pelo sentido de indivíduo / e o da solidão” (2006: 212).
Na verdade, mergulhada numa cosmovisão que se subsidia intimamente dos contributos da cultura greco-latina, Fiama atribui, por um lado, primazia a uma poética assente no multiculturalismo e, por outro, opõe o mundo contemporâneo ao antigo. O topos clássico da autora, estudado por Maria do Céu Fialho (2017), articula-se com diversas geografias, tais como a poesia alemã e o universo bíblico, reforçando a ameaça do presente pelos monstros do passado que se corporizam nas figuras míticas da “nossa antiga pátria, a Grécia” (2006: 633).
Torna-se notória, assim, a síntese de uma pluralidade de universos culturais sob o signo da Grécia, pátria comum que reivindica a centralidade na fundação civilizacional da Europa. É de sublinhar que os seus mitos mantêm a relevância, apesar da transposição para a atualidade mundial: “o grande Minotauro hoje chama-se Chernobyl” (2006: 633). A poetisa classifica os gregos de “povo mensageiro” e de “anjos”, considerando-os “líricos”, dado que “Não vão deixar de ser / livres. Pensam que os signos / naturais são significativos. / Tornaram-se tão cultos que os / interpretam” (358). Fiama anseia pelo som da palavra viva que revela o segredo do mundo, o verso homérico demiurgo que move civilizações e que se funda numa sabedoria antiga herdada pela Europa: “Guardaram para a Europa as mãos magníficas / Dos árabes e dos Gregos mortos” (573).
No processo de reinterpretação e de rememoração encetado por Fiama, convém sublinhar, ainda, o poema “O Xanto, o Tibre, o Reno”, que simboliza a construção da identidade europeia efetuada através do “combate da imagem (da origem) com o fogo / que sempre muda a forma (convulsiva) de um rio em plano (ardido)” (113). O sujeito, consciente de que “a memória, a letra, avivam: a uni (idade)” (idem), concede primazia à Troia versada na Ilíada, a uma “Roma submergida” e à cultura gótico-germânica. Fiama não celebra um passado utópico; funde-o, antes, com o presente, tal como corrobora a tónica em lugares da Europa contíguos à memória ancestral, particularmente os que são referidos nos poemas homéricos. Estes, por sua vez, encontram-se sujeitos à força inexorável do tempo e à reinterpretação efetuada pelas gerações vindouras.
No entanto, a abordagem da memória europeia não se circunscreve à cultura clássica. Desenham-se perspetivas sobre uma Europa moderna no poema “Uma Fotografia do Lago Kivu”, em que o sujeito poético a classifica como “a grande geradora / das imagens da fome” (633), elogiando, em contrapartida, África. Subjaz, portanto, a crítica a um continente fechado sobre si mesmo desde o tempo de Baudelaire e obcecado “com as imagens das suas imagens” (ibidem). Esta consciência agudiza-se em “Peregrinação e Catábase”, da mesma obra, no qual o ‘eu’ poético, recorrendo à intertextualidade com a Divina Comédia, narra uma viagem à Europa central. O sujeito encontra vestígios da ruína do pós-guerra que lembram outras viagens de peregrinos condenados numa descida aos infernos da História:
tal como eu não esqueci quando dormi
na Europa, criança, os colchões desfeitos,
paredes exangues, portas sem os gonzos
e a poeira espessa sobre todos os soalhos.
Era no meio do século, depois da Guerra
e muitos dos peregrinos olhavam só
a Imagem santa em louvor da paz (2006: 684)
Por fim, não é de menor importância elencar as referências a espaços europeus na obra de Fiama. No poema “Espraiar do Atlântico”, publicado em Três Rostos (2006: 474), explana-se uma dicotomia em que o Mediterrâneo se associa ao aprisionamento e ao desgosto, delimitando as fronteiras entre países, e o Atlântico corresponde à liberdade e à “gradação infinita” (não sendo aprisionado por margens). Em Poemas Galaicos (Galiza 50), Fiama inaugura uma viagem luso-galaica, meditando sobre a toponímia dos lugares. Por outro lado, em “Cordilheira dos Balcãs” (in Novas Visões do Passado, de 1975), evoca-se, enquanto gravura, a cordilheira que se estende entre a Europa e o Médio Oriente, região marcada por grande diversidade cultural e étnica, por onde trafegaram exércitos guerreiros desde a Idade Antiga. Expressa-se, então, a ligação espiritual entre os contemporâneos e os povos ancestrais europeus:
Nos vestígios do seu próprio tempo, os contemporâneos
não duvidaram da ressurreição dos antepassados. Estou
no episódio. Na noite, nos balcãs, quando não havia
povoações, povos noctívagos, passei. (2006: 181)
Lista de poemas sobre a Europa
“O Xanto, o Tibre, o Reno”, (Este) Rosto (1970)
“Cordilheira dos Balcãs”, Novas Visões do Passado (1975)
“Tábua das comparações”, Homenagem à Literatura (1976)
“Sinais de vida – 39”, Área Branca (1978)
“Anjos Gregos”, Polissílabos sobre Anjos (1978)
“Estuário de um Tejo”, Âmago 1 (Nova Arte) (1982)
“Golfo da Biscaia em 50”, Entre os Âmagos (1983-1987)
“Espraiar do Atlântico”, Três Rostos (1989)
“Canto da perda dos livros”, Cantos do Canto (1995)
“Ao raiar do Sol, ainda dormia”, Cenas Vivas (2000)
“Foz do Tejo, um país”, Cenas Vivas (2000)
“O bucolismo deixará de ser um canto”, Cenas Vivas (2000)
“Peregrinação e Catábase”, Cenas Vivas (2000)
“Uma Fotografia do Lago Kivu”, Cenas Vivas (2000)
Antologia breve
Canto da perda dos livros
Despeço-me dos livros, que os ossos
folheiam ávidos há tanto tempo,
porque virá até nós o Som
que traz consigo a outra Imagem.
Imagem que não nos toca o tacto,
que não suspende das nossas mãos mortas,
no sangue, no mel e no seu leite,
a paciente leitura muda.
Livros belos que ardem e ressuscitam
com a força das próprias árvores vivas,
como aquelas dos hortos de Alexandria
de onde renasceram os textos
que, entre o pergaminho e o papel,
guardaram para a Europa as mãos magníficas
dos Árabes e dos Gregos mortos.
No tardio Ocidente imaginámo-nos
a ler as páginas surdamente sós,
como se fossem escritas pelas línguas
no interior da nossa boca omnívora.
A pouco e pouco os livros penetraram
no interior da fronte, nos olhos,
e a mão afeiçoou a página
como o plaino afeiçoa a madeira.
– Dedos aquieta o leitor, suspende,
marca, repete, avança com volúpia
sobre essa pele homóloga da do corpo –.
Virá o Som, como veio outrora,
do corno, do búzio encastoado
mas será o som da voz da narrativa
gravado na fita aérea magnética.
E os meus dedos vão mover a Voz
fora de mim, outra como a onda.
Perdem-se os livros tão presos às mãos
como elos da mesma cadeia,
para a pobreza nossa e o clamor,
de poetas escreventes no silêncio,
manufactores de versos visíveis.
Mas já a memória antiga me avisara
– quando relembro as noites em que a Voz
tão pálida e de negro trajo
me contava os meus contos de avó,
e aquelas em que o mar era a matriz do Som
invisível e omnipresente.
in Cantos do Canto (2006: 573-574)
Uma Fotografia do Lago Kivu
Eu amo as bocas da fome com os lábios,
os olhos da fome com as pálpebras.
A Europa, a grande geradora
das imagens da fome, amo-a!
Benditos e santificados: o alheio,
o longíquo, um continente abaixo.
Amo os cinco milhões de rostos
que abalam a geodésica flutuação.
Amo as parlendas internas
sobre o abundante tema do amor.
Amo os rostos da fome com as faces,
as moscas da fome, de dois pares de asas.
Amo as cabeças da fome com as trouxas em cima,
as plantas dos pés com a sua sola crua.
A Europa, a alucinada, amo-a
por uma só fotografia ambulante:
Aquela, desde o tempo de Baudelaire
– anátema! –, que se obcecará
com as imagens das suas imagens,
perverso laboratório eterno.
in Cenas Vivas (2006: 633)
O bucolismo deixará de ser um canto
Sempre vivi à beira da paisagem,
pensando-a como ser, vendo-a,
chamando-a para mim, na minha íris.
Reflectida, a paisagem estava
sempre em mim, nos olhos, na boca
com uma história no tempo, hora a hora.
Benigna ou mortal, era ela própria,
era mundo, antigo e breve, terrestre,
leito de homens, para viver pascendo
ou para morrer, como ela mesma era
morta e transformada eternamente.
E acreditei que só, para sempre,
o latejar natural dos astros, do ar,
das águas, da terra, a manteriam
entregada a mim, à minha beira,
tal como estava desde o nascimento.
Mas hoje sei que os homens insanos,
em vez de amarem o corpo da matéria
no olhar e na fragrância das paisagens,
o depredaram, como se apenas
nos quisessem deixar de herança o mundo vivo
dos monstros vindos da nossa antiga pátria, a Grécia.
O grande Minotauro hoje chama-se Chernobyl,
demiurgo que expele um hálito
que gera crias das bestas e dos homens
oposto ao antigo solto do Génesis; que gera
criaturas como se meramente simulasse
a vida. E a paisagem torna-se aparência,
somente simulacro e armadilha,
e o bucolismo deixará de ser um canto,
pois a flauta cala o seu trilo de esperança.
in Cenas Vivas (2006: 633-634)
Bibliografia ativa selecionada
BRANDÃO, Fiama Hasse Pais (2006), Obra Breve: poesia reunida; pref. Eduardo Lourenço, Lisboa, Assírio & Alvim.
Bibliografia crítica selecionada
FIALHO, Maria do Céu (2017). “Fiama Hasse Pais Brandão: escrita poética recriando os clássicos”, Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, nº 1, v. 13: 39-57.
SOUSA, Carlos Mendes, “Na sabedoria de uma quietude”: Três Rostos de Fiama”, Relâmpago, nº 8: 27-43.
Miguel Correia
Como citar este verbete:
CORREIA, Miguel (2019), “Fiama Hasse Pais Brandão”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/fiama-hasse-pais-brandao/