HÉLIA CORREIA

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HÉLIA CORREIA

(1949 -)

Hélia Correia nasceu em Lisboa, em 1949, e estudou Filologia Românica, realizando um mestrado em Teatro da Antiguidade Clássica. Estreou-se na poesia através de colaborações em jornais, revistas e antologias. Recebeu inúmeros prémios, nomeadamente o Prémio Camões (2015) e dois Prémios P.E.N. Clube Português, um de narrativa por Lillias Fraser (2001) e outro de poesia por A Terceira Miséria (2012).

A sua obra lírica é breve, sendo a autora reconhecida particularmente pelo seu trabalho como ficcionista. Depois de publicar A Pequena Morte/Esse Eterno Canto (com o poeta Jaime Rocha) em 1986, e Apodera-te de Mim em 2002, A Terceira Miséria é a sua obra poética mais recente. Emanando influências clássicas e homenageando a Grécia, este poema-livro considera o património grego a nível cultural e histórico como um dos pilares da civilização europeia. É também um protesto face à situação socioeconómica da Grécia em 2012, assolada pela pobreza, pelo desemprego e por movimentos de êxodo devido às sanções económicas impostas pela União Europeia.

Hélia Correia denuncia a destruição da Grécia, originada por situações críticas como “a perda da soberania, a falência da democracia e as consequências desastrosas da política europeia atual” (Cantinho 2016: s/p). Vítima das políticas europeias do século XXI, a Grécia distancia-se da memória de uma nação envolta em glória. Como escreve Carlos Vaz Marques, “A ‘terceira miséria’ de que fala Hélia Correia é a deste nosso tempo, mais romano do que grego, em que todos estamos condenados ao papel de gladiadores numa luta cruel pela sobrevivência. Vivemos tempos de escândalo” (2013: 377).

A Terceira Miséria começa com uma paráfrase de Hölderlin: “Para quê […] para que servem / Os poetas em tempo de indigência?” (Correia 2012: 7). É a primeira referência a um dos escritores, perante os quais a autora tem uma “dívida confessada”: Hölderlin, Llansol, Ésquilo, Nietzsche, Wescott, Plutarco, Tucídides e Byron, espelhando um dos propósitos principais da obra – o regresso aos clássicos e à memória. A maioria destes autores elogiaram a mítica pátria helénica; a referência a Hölderlin corresponde à questão central do poema: para que servem a arte, a história ou a cultura em tempos utilitaristas e materialistas?

Assim, a poetisa não só questiona as origens da nação como reclama o regresso a um passado digno. Ora, a Grécia de 2012, em plena crise económica e humanitária, distancia-se do período helenístico, em que a arte, a ciência ou a filosofia floresciam às mãos de Euclides, Epicuro, Eutíquides, Calímaco ou Herófilo. É esta Grécia antiga que a autora pretende «resgatar» da corrupção europeia através do pensamento:

 

De que armas disporemos, se não destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início  (Correia 2012: 9)

 

A Grécia atual é marcada por um sentimento de desesperança: “[Esperança] tardia já, pois não restava mesmo / Uma desolação, eco nenhum, / Somente um coração que enlouquecia” (9), que resulta na indigência dos poetas, sobre a qual “não havia / Nada a dizer, nada a fazer” (10) e na “morte das palavras” (ibidem) decorrente do individualismo e do ateísmo modernos. Estas mudanças conduzem ao abandono dos deuses: “Pergunta: Para quê?, testemunhando / Que a perda se instalara para sempre, / Era o do filho abandonado, aquele / Que os deuses, retirando-se, não olham / Nem favorecem mais” (11). Porém, a Grécia antiga, está “oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido” (36). É possível, não regressar ao período helénico, mas reconstruí-lo: a identidade e a história gregas nunca serão apagadas.

Hélia Correia reflete sobre a desvalorização da cultura e da memória no poema 6: “Porém, passada / História abundante e tanta literatura / Por estes lamentos, quando a mesma / Palavra, a indigência, nos ocorre / Sem que nos atrevamos a usá-la, / Porque sem deuses, sem o sentimento / Sequer da sua falta, nós nascemos / E incapazes de lembrar, secando, / Sugando tudo, até aquilo que não / Nos serve de alimento” (12): mais do que lamentar, os europeus devem agir para resgatar as suas memórias. A humanidade tende a esquecer-se do seu passado e a destruí-lo:

 

Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia (Correia 2012: 13)

 

A Terceira Miséria centra-se no triplo significado de «miséria»: o desamparo do ser humano face ao abandono dos deuses, que o deixou à mercê do destino; a morte destas divindades, por o ser humano deixar de as procurar; o esquecimento resultante da destruição dos símbolos que conservam a memória (teatros, museus, bibliotecas, óperas), isto é, a extinção da história – a perda da identidade nacional e europeia.

A “primeira miséria” da Grécia é, portanto, “a deserção / Dos deuses. A segunda, a sua morte (…) / Esse grito escutou o outro Friedrich” (24). A Europa em geral – não somente a Grécia – vive na indigência: os poetas correm o risco de ser silenciados porque esqueceram a importância da arte, da cultura e da memória para a construção da identidade, evidenciando a ausência de fé e de propósito: “Sabemos todos quem ali morreu: / A bela colecção do paganismo / E, dentro dela, o homem (…) / Algo que o céu não pode desprezar” (17).

A poetisa, num tom nostálgico, alude à temática da ruína e da perda de rumo que conduz a “gente do sul” (38) ao seu estado atual: “A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda” (29). A terceira miséria é também um reflexo do esquecimento da verdadeira democracia. A Grécia, nação-mãe do conceito de «democracia», vê-se à mercê de uma Europa que desconhece as suas origens, e que oprime Atenas, como a mãe assassinada: “Diz-me, onde está Atenas?, perguntava. / Falava com a Grécia como o filho / Fala com a mãe morta” (18).

Atenas converteu-se na “imundície. / [N]as gargalhadas, [n]o elenco bárbaro / [N]as novas gargalhadas, dos que agitam / [Na]s pulseiras de couro, dos que mostram / [Na]s botas ruidosas antes mesmo / De mostrarem o rosto, gargalhadas / De quem não sabe rir, caem no corpo / Da cidade, doiradas como fel” (ibidem), numa supressão da cultura individual em favor de uma cultura global, inspirada nuns Estados Unidos hegemónicos. A terceira miséria é causada pelo esquecimento “[D]o que não sabe / De cor poemas como os que salvaram / Literalmente os soldados” (30). Atenas converte-se num “Humilhado lugar, empobrecido / Palácio de colunas (…) / sem que nenhum / Visitante se cale a contemplá-l[o]” (32), perdido numa era tecnológica, em que o ser humano vê através de lentes ou ecrãs. A Grécia em que Byron padeceu fica esquecida no tempo:

 

Oh Grécia que chamaste Byron como
Incestuosa irmã, tu que lutavas […]
Parecias levar tudo tão a sério
Que tu própria quiseste matar Byron […]
Poupando-o ao confronto e à derrota,
Porque derrota houve uns anos mais (Correia 2012: 33)

 

Byron, que faleceu na Guerra da Independência da Grécia, ficaria indignado com o rumo que aquele país tomou, conformista e dependente da União Europeia: “«Acorda –– a Grécia não, que está desperta –– / Acorda tu, meu espírito» […] // «Que o meu corpo não seja», escreveu ele, «Levado, entregue a túmulo inglês»” (34-35).

A poetisa coloca uma última questão: “Para onde olharemos? Para quem?” (36), numa menção às Elegias de Duíno de Rilke. Num mundo sem deuses, onde o dinheiro e a tecnologia se sobrepõem à cultura e à arte, para onde ou para quem o ser humano deve olhar? Não é possível ressuscitar o passado, pois “nada ressuscita” (ibidem). Quando se destrói a singularidade dos povos europeus e se constrói uma história que ignora os vencidos – demonstrando essa “arrogância / pelo qual o ocidente se perdeu” (31) – como conseguirá a Europa sobreviver à «terceira miséria»?

A autora assume, portanto, uma posição de oráculo, denunciando a miséria, a ruína, a escravidão, a avareza económica, que ameaçam destruir a democracia. A solução residirá no uso da maior arma que o ser humano possui, o pensamento: “De que armas disporemos, se não destas / Que estão dentro do corpo: o pensamento” (39). O livro-poema retoma o início: “Para que servem / Os poetas em tempo de indigência?” (7) e a resposta será resgatar a humanidade da “imundície” através da beleza do verso e consciencializá-la para a importância da história. Será possível resgatar os valores do passado, quebrando os padrões de silêncio, recuperando a “ardência do improvável” (37)? Para a poetisa, basta exercê-lo: “E pode / No entanto escutar-se, no entanto / Reler-se, no entanto caminhar / Em direcção diversa, magoar / Novamente os joelhos na jornada?” (ibidem). A Grécia de Hélia Correia é mais do que um reflexo do estado atual da Europa: é um passado longínquo que foi esquecido pelos seus próprios cidadãos. E a Europa de 2012 é um continente perdido na era da tecnologia, do materialismo e dos conflitos ameaçadores das identidades das nações, que lutam por se manter autênticas.

 

Lista de poemas sobre a Europa

“1. Para quê, perguntou ele, para que servem”, A Terceira Miséria, 2012

“7. Nós, os ateus, nós, os monoteístas”, A Terceira Miséria, 2012

“11. Sabemos”, A Terceira Miséria, 2012

“12. Diz-me, onde está Atenas?, perguntava”, A Terceira Miséria, 2012

“17. Para que servem os poetas se não podem”, A Terceira Miséria, 2012

“23. A terceira miséria é esta, a de hoje”, A Terceira Miséria, 2012

“25. Sim, falamos de sombras. Vendo bem”, A Terceira Miséria, 2012

“27. Oh Grécia que chamaste Byron como”, A Terceira Miséria, 2012

“30. Para onde olharemos? Para quem?”, A Terceira Miséria, 2012

“32. Estão as praças”, A Terceira Miséria, 2012

“33. De que armas disporemos, se não estas”, A Terceira Miséria, 2012

 

 

Antologia breve

 

7.

Nós, os ateus, nós, os monoteístas,

Nós, os que reduzimos a beleza

A pequenas tarefas, nós, os pobres

Adornados, os pobres confortáveis,

Os que a si mesmos se vigarizavam

Olhando para cima, para as torres,

Supondo que as podiam habitar,

Glória das águias que nem águias tem,

Sofremos, sim, de idêntica indigência,

Da ruína da Grécia.

in A Terceira Miséria (2012: 13)

 

17.

Para que servem poetas se não podem

Nem delirar, se os textos do delírio

Serão tomados pelo seu contrário?

A bela rapariga dos cabelos

Cor de violeta, Atenas, onde está?

Quem escavará o monte até aos ossos

Para que dele ressurjam esses que

Nos deixaram sozinhos?

in A Terceira Miséria (2012: 23)

 

23.

A terceira miséria é esta, a de hoje.

A de quem já não ouve nem pergunta.

A de quem não recorda. E, ao contrário

Do orgulhoso Péricles, se torna

Num entre os mais, num entre os que se entregam,

Nos que vão misturar-se como um líquido

Num líquido maior, perdida a forma,

Desfeita em pó a estátua.

in A Terceira Miséria (2012: 29)

 

25.

Sim, falamos de sombras. Vendo bem,

Incendiámos tudo: Alexandria

E os sábios, as mulheres. Incendiámos

O grande coração. Temos aos ombros

O apetrecho dos destruidores,

Não a pólvora, não: essa arrogância

Pela qual o ocidente se perdeu.

in A Terceira Miséria (2012: 31)

 

30.

 Para onde olharemos? Para quem?

Certo é que Atenas se mantém oculta

E de algum modo intacta, por debaixo

Do alcatrão, do ferro retorcido.

Certo é que nunca ressuscitará

Visto que nada ressuscita.

in A Terceira Miséria (2012: 36)

 

Bibliografia ativa selecionada

CORREIA, Hélia (2012), A Terceira Miséria, Lisboa, Relógio de Água.

 

Bibliografia crítica selecionada

CANTINHO, Maria João (2016), “A Terceira Miséria, de Hélia Correia”, Pensar Diverso, nº 4, s/p; in https://mjcantinho.com/2016/05/29/a-terceira-miseria-de-helia-correia/ (último acesso em 15/03/2019).

MARQUES, Carlos Vaz (2013), “Hélia Correia”, in Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer, Lisboa, Tinta da China, 377-406, in www.tintadachina.pt/pdfs/3f2391651974d2b8670571f60f4e927a-inside.pdf?tcsid=uuqpamiqjr3vutcusoeg16fno0 (último acesso em 20/02/2019).

 

Mariana Capinha Silva

 

Como citar este verbete:

SILVA, Mariana Capinha (2019), “Hélia Correia”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/helia-correia/