(1959 – )
Jens Christian Grøndahl é um escritor dinamarquês formado em filosofia e autor, desde 1985, de uma vasta obra ficcional escrita em dinamarquês, mas rapidamente traduzida para várias línguas (nomeadamente para francês, e mais raramente para português¹), premiada por júris literários nacionais e internacionais.
Essencialmente romancista, Grøndahl escreveu igualmente vários ensaios, entre os quais um, autobiográfico, intitulado Hjemme i Europa [A casa na Europa], duas obras para a infância e juventude (traduzidas para francês por Alain Gnaedig), bem como peças para o teatro e para a rádio.
Foi, pois, galardoado com vários prémios, entre os quais o prestigioso prémio dinamarquês De Gyldne Laurbær (1998), o prémio literário dos Embaixadores da Francofonia na Dinamarca para Hjertelyd [Ruídos do coração] (2003), o Prémio Søren Gyldendal (2007), mas igualmente, nesse mesmo ano, o Prémio Jean Monnet das Literaturas europeias de Cognac para Piazza Bucarest. Em 2015, o romance Det gør du ikke [Les Complémentaires, na tradução francesa] foi nomeado para o Prémio do Livro Europeu, galardão esse que recompensa cada ano um romance e um ensaio que expressa uma visão positiva da Europa. De notar também que Grøndahl foi presidente adjunto do Pen Club dinamarquês de 1995 até 1998, e condecorado pelo Estado francês (Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres) em 2009.
Lembremos igualmente que Grøndahl foi um dos signatários do manifesto coletivo internacional dos patriotas europeus publicado em dois jornais do Velho Continente em janeiro de 2019, intitulado “A Europa está em perigo”, cuja mensagem é clara: “Não há Europa além desses valores, exceto a Europa do turismo e dos negócios. A Europa não é uma geografia, são as ideias. E a ideia da Europa está a ser atacada”².
Se o amor e os problemas da vida de casal são os temas centrais e privilegiados da obra de Grøndahl, principalmente as relações no interior do casal europeu contemporâneo, e mais especificamente o ponto de vista da mulher/esposa no ponto de viragem da vida e da carreira profissional, outro tópico se insinua subtilmente, e remete para uma certa imagem do continente europeu na sua relação centro-liminaridade (nórdica) e para a sua composição multicultural, por vezes problemática, sobretudo nas grandes metrópoles. Em todo o caso, a ficção grondahliana circula na Europa e tematiza-a.
Se em Piazza Bucarest (2007) deparamos com um fotógrafo americano, a viver na Dinamarca, que encontra uma jovem romena a sonhar com deixar o seu país, com quem acaba por casar num casamento de conveniência, mas que é abandonado no exato memoento em que começava a apaixonar-se por ela, em Fire dage i marts (2008) [Quatro dias em março] (2011), uma arquiteta divorciada confronta-se com um ato de violência racial perpetrado pelo filho, numa altura em que a sua relação com um homem mais velho e casado passa por uma fase imprevista. Esse acontecimento permite-lhe tentar compreender o fracasso do seu casamento e o impasse da sua vida; enquanto em Det gør du ikke, Jens Christian Grøndahl proporciona uma abordagem mais subtil das problemáticas europeias.
Com efeito, esta narrativa descreve a vida mais ou menos pacata de um casal formado pelo advogado judeu dinamarquês, David Fischer – que se desloca semanalmente em negócios entre Copenhaga e Londres – e a mulher inglesa, Emma, artista plástica amadora, instalada desde o casamento num bairro abastado da capital dinamarquesa. Um telefonema rotineiro entre marido e mulher a partir de Londres vem baralhar tudo. Zoë, a filha única do casal, estudante nas Belas-Artes, apaixonou-se por Nadeel, estudante em medicina paquistanês e muçulmano, que insiste em apresentar aos pais. Esse jantar de família desperta preconceitos e desconfianças que evoca o facto de David não ter sido, ele próprio, bem acolhido pelos sogros dada a sua identidade judaica; origem essa que ele decide comentar à mesa, causando deste modo um mal-estar inesperado. Para piorar as coisas, David encontra uma cruz suástica desenhada na caixa do correio, o que o deixa profundamente perturbado e faz com que adote um comportamento irracional e desconfiado em relação a tudo e a todos.
Ora, aquando da sua primeira exposição – cuja temática versa a identidade, e pretende ser “um strip-tease étnico” – Zoë apresenta um vídeo provocador, que deixa passar em contínuo, sintomaticamente intitulado “complementaridades”, em que ela e Nadeel atuam integralmente nus, o que acaba por causar incómodo e acentuar fraturas identitárias numa Europa móvel, mas culturalmente estanque.
Com efeito, as incompreensões e as desconfianças históricas intraeuropeias continuam de influenciar o presente de forma latente ou explícita. Elas respondem-se e acumulam-se numa trama narrativa paradoxal que expõe a realidade irremediavelmente plural do Velho Continente. Assim, a sogra londrina de David – que viveu os ataques alemães, cujo pai foi morto por sionistas durante o mandato britânico na Palestina, e que ainda não digeriu a identidade judaica do genro – receia agora uma invasão migratória muçulmana, enquanto o próprio David se vê confrontado, na Dinamarca, com o namorado paquistanês da filha, e que o pai deste se mostra escandalizado pelo vídeo em que o jovem casal aparece a atuar completamente nu, sendo que as questões culturais ganham uma relevância imprevista pelo contacto das diferentes culturas que chocam na Europa atual: celebrar o natal, comer carne de porco, halal, casher, acreditar em Deus ou não, estatuto do alcorão, planeamento familiar, etc., nomeadamente a partir da perspetiva da irmã de Emma, Florence, instalada desde há muito tempo na Austrália.
Det gør du ikke afigura-se desde logo como um romance de uma impressionante atualidade europeia, em que são questionados os desafios identitários, migratórios e de coabitação multiculturais que inquietam e dilaceram a Europa contemporânea em busca de uma certa “complementaridade” inalcançável.
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¹ Refira a tradução de Jorge Braga de Silêncio em Outubro, 2000, pelas edições ASA
² https://www.dn.pt/mundo/interior/antonio-lobo-antunes-junta-se-a-intelectuais-de-21-paises-contra-o-populismo-na-europa-10489480.html [acedido a 08/06/2019]
Antologia breve
Ele [David] apreciara sempre o tacto superficial dos moradores das grandes cidades. Na carruagem onde se encontrava, estavam certamente representadas todas as religiões do mundo, e era bem possível, pois os passageiros eram bem-educados e permaneciam indiferentes ao passageiro do lado. Desconheciam tudo dos outros. O vestuário e os traços étnicos eram tão pouco relevantes a seus olhos quanto o mapa da rede do metro ou as publicidades nas janelas que davam para os cabos e a fuligem do túnel. (Les Complémentaires, 13; tradução minha).
Ela deitou chá na chávena de David. “Odeiam-nos”, declarou, antes de se sentar no sofá à frente dele.
“Eles?”
Fez um sorriso cheio de indulgência enquanto se ia servindo chá. Eles vão ser cada vez mais. Sim, claro, ele bem podia tratá-la como quisesse, mas o que ela pensava não mudaria lá por isso. Em 2050, serão… O que é que se dizia no jornal, já agora? Sim, acabarão por estar em número suficiente para instaurarem a sharia de forma democrática, exatamente como procederam os nazis na Alemanha nessa altura…(idem: 29; tradução minha).
Ficou surpreendido ao ouvi-la divagar dessa maneira acerca dos muçulmanos. Ficou espantado pois, durante esses anos todos, ele suspeitara que ela sempre nutrisse um pouco de antissemitismo, como um animal de companhia, no fundo do subsolo mudo da sua personalidade. E porque não teria a sua fobia do Islão grassado aí também? Estaria a sua paranoia latente a fazer com que se espantasse do facto de, com o seu antissemitismo oculto, ela não sentir a necessidade de aplaudir os árabes que, esses sim, odeiam os judeus de forma maquinal? (idem: 30; tradução minha).
E hoje, nem por isso apetecia a Emma fazer uma sessão de sauna. As tábuas das paredes estavam repletas de nós semelhantes a olhos, e ela tinha a impressão que eles a fitavam. Os abetos com nós, tinha sido isso mesmo a sua primeira impressão da Escandinávia, muito antes de conhecer David. Escandinávia, Balcãs, Japão, sem olhar às diferenças, as pessoas eram loucas por abetos nesses três lugares, envernizados ou não, com montes de nós pretos. (idem: 67; tradução minha)
Florence acostumara-se às aves. Neste momento, estava a tomar um drink com um homem que talvez só conhecesse a Europa pela televisão. (idem: 162; tradução minha)
Bibliografia ativa selecionada
Grøndahl, Jens Christian (2010), Det gør du ikke, Copenhague, C&K Forlag.
— [(2013)-2015], Les Complémentaires, Paris, Gallimard, col. “Folio” pour la traduction française d’Alain Gnaedig.
Webgrafia crítica selecionada
https://blogs.lexpress.fr/les-8-plumes/2016/02/08/les-complementaires-de-jens-christian-grondahl-un-veritable-petit-bijou/ [acedido a 08/06/2019]
https://www.franceculture.fr/emissions/la-grande-table-1ere-partie/grand-entretien-avec-jens-christian-grondahl [acedido a 08/06/2019]
https://www.lemonde.fr/livres/article/2018/03/21/jens-christian-grondahl-ecrire-c-est-s-efforcer-de-vivre-avec-la-perte_5274323_3260.html [acedido a 08/06/2019]
http://www.lefigaro.fr/livres/2018/02/14/03005-20180214ARTFIG00145–quelle-n-est-pas-ma-joie-de-jens-christian-grondahl-une-femme-blessee.php [acedido a 08/06/2019]
José Domingues de Almeida
Como citar este verbete:
ALMEIDA, José Domingues de (2019), “Jens Christian Grøndahl”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/jens-christian-grondahl/