JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

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JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

(1943 – )


João Miguel Fernandes Jorge nasceu em 1943 e é autor de obras de poesia, ficção e ensaio crítico. Publicou o seu primeiro livro de poesia, Sob Sobre Voz, em 1971, e participa, frequentemente, em exposições artísticas como curador.

Para estudar a representação da Europa na obra poética deste autor importa, num primeiro momento, realçar a forte presença de um imaginário vindo da cultura grega. No livro Invisíveis Correntes, publicado em 2004, encontramos o poema “Amadas imagens de Atenas”, onde é visível a solidão e a deambulação do “eu” poético pela cidade:

Abandonara tudo; desapareceram
todos aqueles de quem gostava, mas a verdade é que
partira,
demasiado cobarde para querer de novo alguém
[…]

nesse começo de tarde ao sol de inverno
descera da Acrópole – um escárnio

sobre o mundo cristão –

e perdi-me pelas ruelas no bairro da Plaka.
Na rua Pandrossou
sentei-me a uma mesa da esplanada – o ocre
da parede da taberna, o castanho queimado das

portadas das janelas, ruína tão semelhante ao confim do mundo
ao meu lado –
disposto a comer finíssimas fatias de presunto
(vindo da Líbia), cogumelos; e o branco vinho de Creta. (2004: 56)

A Grécia, berço da civilização ocidental, acolhe este “eu” que abandonou o seu país e procura refúgio na cidade de Atenas. Repare-se em como são importantes as referências específicas ao histórico bairro da Plaka e a uma das suas ruas, Pandrossou, pois é nas ruínas de uma civilização incomparável que o sujeito poético encontra uma solução hedonista para a solidão.

Na obra O Barco Vazio, publicada em 1994, surge um violentíssimo poema sobre a guerra da Bósnia (1992-1995): “[n]a Europa, se estivermos voltados para o norte, / situa-se à direita esse tão fundo pátio de / chão cimentado por cadáveres” (1994: 23). Através da evocação de figuras da mitologia que intervieram na Guerra de Troia, o poema aborda quer a violência do conflito armado na Bósnia quer os interesses e jogos políticos:

visto do lado de Sarajevo
o arrastamento do corpo de Heitor; Aquiles leva-
o ao redor dos muros da cidade. Não irá
passar de um acto de petulante criancice. À
distância o carro parece um brinquedo abandonado ao
canto
da pequena, pequeníssima voz. Ela move a dor
visível, cidade de fome que tem à sua frente
a pira funerária e os viciosos cães assaltam as casas
as vítimas, os jogadores políticos, a silenciosa
história dos actos, Menelau, Clitmenestra
Agaménnon, Páris, Efigénia pedem, p’la guerra, que
continue, porque de qualquer lado de Europa
é sempre um combate parcial. (1994: 24)

Ao mesmo tempo, o poema faz uma associação entre Cassandra, que anteviu a guerra de Troia – mas foi desacreditada (pois, apesar de possuir o dom da profecia, estava condenada a que ninguém acreditasse nas suas visões) –, e a situação que se vivia na Bósnia, na altura da escrita do poema: “[n]inguém / conhece o profeta que / a faz dizer a verdade e não ser acreditada. / Sobrevive à guerra e vive o disfarce do seu grito / num domínio da Bósnia” (1994: 23). Deste modo, a presença explícita do vocábulo “Europa” torna-se um sinal de alerta para o conflito que estava a decorrer e que dividiu a posição dos restantes países da Europa e do mundo, impassíveis à guerra e vergados a jogos políticos. O poema é, acima de tudo, uma dolorosa reflexão sobre a guerra da Bósnia e a postura da Europa: “[a] vida é um estreito golpe de ferro / em que se perde / a fatal alegria de sonhar um claro e vivo / dia de setembro” (1994: 23).

A relação entre a poesia de Fernandes Jorge e a Europa faz-se, também, por intermédio de outras representações artísticas. Vejamos o poema “Uma fotografia de Ed van der Elsken”, do livro Mãe-do-Fogo. Tal como o título indica, o poeta inspirou-se numa fotografia deste artista holandês (1925-1990), que procurou captar aspetos do quotidiano e da intimidade, como o amor, a solidão, a arte e a cultura, numa Europa entre o período da Segunda Guerra Mundial e os anos noventa.

Os primeiros versos descrevem um homem adormecido numa mesa de café; a referência aos “francos” (moeda) e a tradução do francês para o português do bilhete que se encontra ao lado do homem sugerem que se trata de uma cidade francesa:

Sobre o tampo da mesa, bem
junto à face, entre um copo e um cinzeiro
com duas amarrotadas notas de 100
francos, uma folha de papel, em notícia,
dizia
Para ir fazer amor
eu preciso de 450Frc.
Aceito todas as dádivas.

Não me acordem

O ambiente citadino do poema emerge mais sob a forma de sonho do que de realidade, isto é, trata-se de uma cidade que se apresenta enquanto espaço desconhecido, que tanto fascina como desilude. O poema sugere mesmo um sujeito poético deambulatório que é absorvido pela “cidade desconhecida”; talvez por isso apresente uma enumeração e uma descrição de características que atribuímos, muitas vezes, a cidades europeias, como as “praças” e as “estátuas”:

Também ele cantou o abrir dos sentidos ao
amanhecer. Também ele cantou as coisas
mínimas como se fossem pertença de um
gozo pleno e infindo.
A cada jogada, fora ou dentro do seu sangue,
surgia uma cidade desconhecida, com
novas praças e ruas, novas estátuas, fontes,
as trevas de um jardim. (2009: 36)

No início do poema, o homem é apresentado como “oriental muito novo”, facto que, conjugado com a atmosfera de uma cidade desconhecida, pode indicar o estatuto de estrangeiro do homem perdido e consumido pelas “praças e ruas”, pela abundância e pelo desejo e, sobretudo, pela solidão. Assim, o sujeito poético acaba adormecido, sozinho, na mesa de um café, “[f]ustigado pela abundância do sonho” (2009: 36).

No que diz respeito à ligação de João Miguel Fernandes Jorge com o cinema, é pertinente evocar a que estabelece com o cineasta francês Robert Bresson (1901-1999).

No filme Un condamné à mort s’est échappé (1956), o espectador depara-se com uma França ocupada pela Alemanha nazi e a prisão de um homem, Fontaine. No filme, vemos a rotina dos prisioneiros e, sobretudo, a solidão de Fontaine – evoquemos a sequência em que esta personagem surge de costas, com a cabeça ligeiramente encostada à parede, derrotada pelo sofrimento. No entanto, a solidão e o medo contrapõem-se à sua determinação em conseguir alcançar a liberdade, pois, ao longo do filme, Fontaine elaborará um plano de fuga. Ora, no livro Pickpocket encontramos um poema intitulado “Tu, que destruíste os pôr do sol de Caspar David Friedrick” (sic), que dialoga com o filme de Robert Bresson. O poema de Fernandes Jorge aborda a violência e a discriminação do regime nazi e, ao mesmo tempo, o título associa a brutalidade à destruição da beleza e da pureza, ao evocar a nostalgia da obra de Friedrich e as temáticas da paisagem e da natureza, características deste pintor romântico alemão:

– A crueldade é feita de medo. Matam e destroem por medo.
Não receiam a morte, nem a temem. Nem sequer o
horror do sofrimento. Têm medo de tudo aquilo que vive
de tudo o que vive para além deles
e de tudo o que deles é diferente. Têm medo dos seres fracos
e dos que estão desarmados.
Então são ferozes? É verdade que massacram sem
nenhuma piedade?
Enforcam os judeus nas praças, queimam-nos vivos
nas suas casas como ratos. Fuzilam os homossexuais, os
camponeses, os operários. Riem, comem e dormem à sombra de
cadáveres que se balanceiam nos troncos das árvores. (2009: 108)

 

Lista de poemas sobre a Europa

“Amadas imagens de Atenas”, Invisíveis Correntes (2004)
“Na Europa, se estivermos voltados para o norte”, O Barco Vazio (1994)
“Uma fotografia de Ed van der Elsken”, Mãe-do-Fogo (2009)
“Tu, que destruíste os pôr do sol de Caspar David Friedrick” (sic), Pickpocket (2009)

 

Antologia breve

Amadas imagens de Atenas

Durante muito tempo eu não queria sequer
imaginar que pudesse
a vida
acordar junto de mim, pela manhã.

Abandonara tudo; desapareceram
todos aqueles de quem gostava, mas a verdade é que
partira,
demasiado cobarde para querer de novo alguém

deixara todas as palavras caírem (aonde o vento fosse, as
levasse)
nesse começo de tarde ao sol de inverno
descera da Acrópole – um escárnio

sobre o mundo cristão –

e perdi-me pelas ruelas no bairro da Plaka.
Na rua Pandrossou
sentei-me a uma mesa da esplanada – o ocre
da parede da taberna, o castanho queimado das

portadas das janelas, ruína tão semelhante ao confim do mundo
ao meu lado –
disposto a comer finíssimas fatias de presunto
(vindo da Líbia), cogumelos; e o branco vinho de Creta.

Na mesa ao lado
sob uma toalha de quadrados vermelho e branco
dois homens jogavam pequenos ossos, mínimas contas;
caía

um som oco sobre a mesa. Aos seus pés,
um melro, ruidoso, sob o sol de fevereiro; um dos
homens, rápido, aprisionou-o
entre as mãos

e o outro lançou o derradeiro osso
do jogo – a ver quem pagava a despesa – estendeu
os dedos estreitos e longos
devagar

acariciou as penas, o negro negro das asas. E a ave sagrada
deu um grito, um fogo enamorado
na tarde do inverno.
O melro,

a um tempo, o mais terrível e o mais doce,
trouxe-me o rio tranquilo e esquecido – a vida – que
abandonara. Insinuou-se e seguiu-me sob a queda dos dados
e o som do ritmado martelo dos latoeiros.

in Invisíveis Correntes (2004: 56-57)

 
Na Europa, se estivermos voltados para o norte,
situa-se à direita esse tão fundo pátio de
chão cimentado por cadáveres. Corpos
alinhados na sombra,
superfície de parede
devorada, outono e inverno, pelo estéril
salitre. Uma voz sobrevoa. Ninguém
conhece o profeta que
a faz dizer a verdade e não ser acreditada.
Sobrevive à guerra e vive o disfarce do seu grito
num domínio da Bósnia. Voz que gravou
o que tinha sido obrigada a esquecer.
A terra possui o coração do açougueiro.

Por vingança, por contraste abandonam-se e vergam-
-se a um destino; o seus olhos estão desmesurada-
mente abertos sob uma venda de fortíssimo
sangue e segue o pesado ruído do holocausto.
A vida é um estreito golpe de ferro
em que se perde
a fatal alegria de sonhar um claro e vivo
dia de setembro.
Que Helena, agora de reduzida beleza, teria sobrevivido?
Visitará ela, ainda, a casa da voz
para saber quantos anos de guerra merecerão?
Aqui, também, as grandes batalhas estão reduzidas a
escaramuças. O que mais importa são os assuntos
da comida, da reserva de água e da prevenção da
doença. Quente, enorme animal que sangra
e morre, por contraste por vingança.

Guarda-o a voz na sua pele de Europa
e nos ouvidos, a memória.
As árvores com as suas folhas
falhas por que o sangue morre e arrefece
mesmo no jovem que conhece nas jovens forças
o repetido e sempre velho mundo

visto que lado de Sarajevo
o arrastamento do corpo de Heitor; Aquiles leva-
-o ao redor dos muros da cidade. Não irá
passar de um acto de petulante criancice. À
distância o carro parece um brinquedo abandonado ao
canto
da pequena, pequeníssima voz. Ela move a dor
visível, cidade de fome que tem à sua frente
a pira funerária e os viciosos cães assaltam as casas
as vítimas, os jogadores políticos, a silenciosa
história dos actos, Menelau, Clitmenestra
Agaménnon, Páris, Efigénia pedem, p’la guerra, que
continue, porque de qualquer lado de Europa
é sempre um combate parcial.
O cavalo de madeira
já entrou na povoação. Manso
animal de sangue, mortífero e inocente, real ou
somente a rouca visão da profecia?

in O Barco Vazio (1994: 23-24)

 
Uma fotografia de Ed van der Elsken,
de que não sei a data e que não voltei
a ver O Amor na Margem Esquerda
mostra um oriental muito novo.
Fustigado pela abundância do sonho,
sob o rumor da subterrânea corrente do
desejo, adormeceu a uma mesa de café.
Rosto de flor de cerejeira
em repouso sobre o vidro. As pálpebras
fixadas no virar e voltar do sono, que
é como quem se sente diverso no espelho
dos cafés. Sobre o tampo da mesa, bem
junto à face, entre um copo e um cinzeiro
com duas amarrotadas notas de 100
francos, uma folha de papel, em notícia,
dizia
Para ir fazer amor
eu preciso de 450Frc.
Aceito todas as dádivas.

Não me acordem

No rebordo do cinzeiro a palavra cigarra.
Também ele cantou o abrir dos sentidos ao
amanhecer. Também ele cantou as coisas
mínimas como se fossem pertença de um
gozo pleno e infindo.
A cada jogada, fora ou dentro do seu sangue,
surgia uma cidade desconhecida com
novas praças e ruas, novas estátuas, fontes,
as trevas de um jardim.
Agora, de olhos cerrados, espera o brando
pousar da última nota, o latir caído da derradeira
moeda

para diminuir a distância e
adormecer no corpo um modo de ver.

in Mãe-do-Fogo (2009: 36-37)

 
Tu, que destruíste os pôr do sol de Caspar
David Friedrick (sic)

– A crueldade é feita de medo. Matam e destroem por medo.
Não receiam a morte, nem a temem. Nem sequer o
horror do sofrimento. Têm medo de tudo aquilo que vive
de tudo o que vive para além deles
e de tudo o que deles é diferente. Têm medo dos seres fracos
e dos que estão desarmados.
Então são ferozes? É verdade que massacram sem
nenhuma piedade?
Enforcam os judeus nas praças, queimam-nos vivos
nas suas casas como ratos. Fuzilam os homossexuais, os
camponeses, os operários. Riem, comem e dormem à sombra de
cadáveres que se balanceiam nos troncos das árvores.

E na floresta vazia, Hölderlin perdeu a loucura, a invisível asa, o
seu voo de anjo. E
se a última chuva anuncia o outono, dentro
da cela ouve-se o correr de rápida batida metálica. É
o bastão do carcereiro na grade de ferro das escadas. O cinzento
desmaiado dos muros, chaga de salitre.

in Pickpocket (2009: 108)

 

Bibliografia ativa selecionada

JORGE, João Miguel Fernandes (1994), O Barco Vazio, Lisboa, Editorial Presença.
–(2004), Invisíveis Correntes, Lisboa, Relógio D’Água.
–(2009a), Mãe-do-Fogo, Lisboa, Relógio D’Água.
–(2009b), Pickpocket, Lisboa, Cinemateca Portuguesa.

 

Filmografia ativa selecionada

BRESSON, Robert (1956), Un condamné à mort s’est échappé, p/b, 95’.

 

Maria Miguel Reis

 

Como citar este verbete:

REIS, Maria Miguel (2020), “Jorge Miguel Fernandes Jorge”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6.