(1919-1978)
Nascido em Lisboa em 1919, Jorge de Sena levou uma vida de itinerâncias físicas, intelectuais e culturais, de que a intensa produção poética, ficcional e ensaística dá testemunho. Enquanto cadete da Marinha, viajou pela costa africana de expressão portuguesa. Em Portugal, viveu entre Lisboa e o Porto, cidade onde se licenciou em Engenharia Civil, em 1944. Trabalhou catorze anos na Direção-Geral dos Serviços de Urbanização de Lisboa e na Junta Autónoma das Estradas, até que motivos políticos o forçaram ao exílio. Em 1959, por oposição ao Estado Novo, foi para o Brasil, onde se doutorou em Literatura Portuguesa, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Em 1964, Sena partiu em novo e definitivo exílio para os Estados Unidos, onde faleceu em 1978.
A perspetiva acerca da Europa na sua obra poética resulta não só da itinerância física e cultural do seu trajeto de vida, pautado também por frequentes périplos europeus, como também de uma consciência aguda do poderio político-cultural deste continente. Berço da civilização ocidental, ele surge na obra seniana enquanto espaço mítico conglomerador de povos, mas também sobranceiro na sua vontade hegemónica e expansionista. Percebe-se uma oposição entre a nostalgia pelo passado greco-latino, com estátuas de deuses enquanto indício de volúpia e liberdade, pensamento e estética, e a Europa pós-império romano, marcada pelos convencionalismos de tradição judaico-cristã, quantas vezes submetidos a pretensões económico-financeiras e jogos de poder.
A crítica sardónica à superioridade e até a um certo burguesismo europeus revela-se tão acérrima quanto é imensa a emoção com que os museus, as praças e as obras de arte em geral (sejam elas um quadro de Van Gogh, uma peça de Debussy ou um poema de Keats) são evocados ao longo da vida criativa deste poeta. Assim, se em 1965, no poema “Homenagem a Tristan Tzara” (2014: 509), Sena critica a frivolidade de uma Europa que esquece os seus grandes valores culturais, já em “A uma calista de Milão”, escrito em 1971 (2014: 617), elogia o bom-senso de uns, face ao despautério de tantos com responsabilidades na construção da Europa desde o Império Romano, período que, a seu ver, assinala o declínio dos valores culturais da Grécia Antiga.
“«Eleonora di Toledo, Granduchessa di Toscana», de Bronzino” (2014: 331), poema de Metamorfoses (1963), esclarece a crítica de Sena a uma certa Europa mercantilista e fomentadora de intolerância, desigualdades, injustiça, fatores que facilmente redundam em corrupção. Nele se delineia toda a história de riqueza, escravatura, razões de Estado, poder que este continente protagonizou, a partir de um quadro de uma mulher espanhola de nascimento, mas toscana por casamento com Cosimo I. A imaginação e as fulgurantes imagens decorrem de uma perspetiva sobre a formação da Europa moderna, desigual e elitista, onde “príncipes cristãos (…) se devoram sob /a paternal vigilância de uma Roma etérea” (332).
Não sendo possível a negação das evidências históricas, Sena critica a anglicização, a germanização e o galicismo europeus, pelo esquecimento votado à diversidade que ditou a formação europeia, conforme escreve em 1957, no texto “Sobre a coerência com o cristianismo como exemplo” (1984: 145-7). Contrapondo tal tendência para a hegemonização, Sena destaca a abertura da Europa do Sul, patente até na forma como o cristianismo aceita atualizar-se, por exemplo, através da sagração de novos santos (ibidem). A mesquita de Córdova exemplifica tal abertura, num poema homónimo inserido no livro Metamorfoses (1963). O monumento mencionado, erguido sobre uma floresta, passa de templo criptocristão a mesquita até ao século XVI, altura em que é convertido numa síntese de referências culturais díspares. Idêntica perspetiva surge em nota escrita pelo autor acerca do poema “Chartres ou a paz com a Europa”, por esta catedral ter sido erigida sobre um templo pagão (2014: 804). A Europa desejada é, assim, aquela que mantém indelével uma herança cultural marcada pela miscigenação.
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969) cartografa os percursos biográficos de Jorge de Sena. A sequência das partes em que se divide antes do epílogo (respetivamente, “Portugal”, “Brasil”, “Estados Unidos da América” e “Notas de um regresso à Europa”) revela não só a itinerância que caraterizou a vida do autor, como também a consistência das suas convicções acerca dos homens que habitam os locais percorridos. Se na primeira parte, referente a Portugal, predominam poemas que retratam um país vergado a uma ditadura injustificável, cerceadora do pensamento e amesquinhadora dos homens, a última parte representa o regresso a um local de exílio e de exilados, mas também um reencontro com as referências culturais estruturantes da sua existência enquanto homem erudito.
Ele próprio um exilado, docente universitário em Santa Bárbara, Califórnia, a partir de 1970, sente com especial acuidade a Europa como local de pertença. Ainda que no poema “Em Creta, com o Minotauro”, de Peregrinatio ad Loca Infecta, Sena descreva a sua condição de apátrida, compensando o vazio com a expressão “Eu sou eu mesmo a minha pátria” (2014: 516), a viagem pela Europa esclarece os topoi que a sua obra explora, da intriga política à traição, da religiosidade ao erotismo, dos mitos fundadores aos atos do quotidiano. Donde o repúdio e a admiração pela Europa, numa paradoxal tensão que cimenta o seu estatuto de europeu exilado.
Os ecos da Europa na poesia de Sena anterior ao exílio apontam, distanciada mas dolorosamente, para um continente marcado pela carnificina da guerra, patente em poemas de Coroa da Terra (1946) ou de Pedra Filosofal (1950). O facto de não mencionar a Segunda Guerra Mundial insere-se na perspetiva de poesia enquanto testemunho, segundo a qual interessa captar a experiência coletiva humana, independentemente das particularidades histórico-culturais (vd. Jorge Fazenda Lourenço). Quando afirma “não vejo leitos de agonia, camas de hospital, campos de batalha” (2014: 129), mas percebe “que a voz pede auxílio” (ibidem), o abstracionismo patente revela a atenção do autor empírico ao momento em que vive e a necessidade de o converter em poesia para despertar consciências. O poeta visa, pois, “conhecer o mundo e envolver-se nele para o transformar” (Carlos 1999: 79), principalmente quando perante o horror inominável que a Europa produziu desde os seus primórdios.
Já durante o exílio, aprofunda-se a necessidade da nomeação de obras de arte, mitos e locais europeus, patente em livros como Metamorfoses (1963) ou Arte da Música (1968). Por isso, quando de regresso ao continente europeu, e apesar de todos os sentimentos contraditórios, prevalece o deslumbramento. No poema “Travessia” (1969: 549), o tom prosaico é quebrado pelo ritmo dos versos, dando intensidade a um momento que só não retrata uma vulgar chegada ao porto de Havre, cidade sem atrativos de maior, porque representa a chegada à Europa. E esta, para Sena, permanece paradoxalmente tão fascinante, pelo testemunho e pela grandeza criativa que escritores, pintores, escultores ou músicos expressam, quanto censurável, pelos jogos de poder, pela ganância e pela arrogância que sanciona.
Lista de poemas sobre a Europa
“De onde não há nada”, Coroa da Terra (1946)
“Cinco natais de guerra separados de um fragmento em louvor de J.S. Bach”, Pedra Filosofal (1950)
“Eleanora di Toledo, Granduchessa di Toscana”, de Bronzino”, Metamorfoses (1963)
“Mesquita de Córdova”, Metamorfoses (1963)
“«Pot-Pourri» Final”, Ensaio de Música (1968)
“Sabedoria de Calígula”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“Homenagem à Grécia”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“Homenagem a Tristan Tzara”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“Em Creta com o Minotauro”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“Travessia”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“Chartres ou as pazes com a Europa”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“À memória de Kazantzakis, e a quantos fizeram o filme «Zorba the Greek»”, Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
“Ronda europeia, nada sentimental”, Exorcismos (1972)
“Uma calista de Milão”, Exorcismos (1972)
“Atenas”, Conheço o Sal… E Outros Poemas (1974)
“Memória de Granada”, Conheço o Sal… E Outros Poemas (1974)
Antologia breve
“Eleonora di Toledo, Granduchessa di Toscana”, de Bronzino
Ao Murilo Mendes
Pomposa e digna, oficialmente séria,
é geometria ideal de príncipes banqueiros,
sobrinhos, primos, tios de toda a Europa,
de reis, senhores de terras e armadores,
severamente equilibrados entre
o sexo, a devoção e as hipotecas.
O mundo é um imenso cais de intolerância austera,
a que aportam escravos, pimenta, a caridade
à sombra de colunas sem barbárie gótica.
Na boca firme, como no olhar duro,
ou no cabelo ferozmente preso
ou nas imensas pérolas que se multiplicam,
ou nos bordados do vestido que nem seios
se alteiam muito, há uma virtude fria,
uma ciência de não-pecar na confissão e na alcova,
uma reserva de distante encanto
em que a Razão de Estado era um passeio altivo
por entre as árvores de um jardim areado,
com áleas racionais e relva em secção aúrea.
Sem dúvida que os astros presidiram,
numa ciência de terra já redonda,
às próprias proporções que o quadro regem.
Palácios, festas, complicadas odes,
e procissões e cadafalsos e a
de um céu toscano limpidez que pousa no
pó e nas ruínas da imperial Toledo,
tudo isto se condensa em penetrante
tom de ocre vago, onde as cores se opõem
como teses tridentinas muito práticas
elaboradas com paciência para o descanso eterno
dos príncipes cristãos que se devoram sob
a paternal vigilância de uma Roma etérea,
guardada pelos suíços, por cardeias e frades.
A grã-duquesa – se o foi, não foi, de quem é filha,
de quem foi mãe, ante um retrato assim
tão pouco importa! – fez-se pintar.
Mas a pintura era outra coisa, um escudo,
um escudo de armas e um broquel tauxiado,
para morrer tranquilo quando a angústia brota,
como um vómito de sangue, do singelo facto
de ter-se ou não ter alma, os mundos serem múltiplos,
e o Sol rodar ou não em torno à terra inteira,
iluminando as multidões, as raças, tudo,
e os príncipes e os súbditos, nessa harmonia do mundo,
cujo estridor silente ao madrugar se ouvia
ranger discretamente, às portas dos castelos.
(Lisboa, 6/6/1959)
in Metamorfoses (2014: 331-333)
Mesquita de Córdova
Haviam sido os fustes de pequenos bosques
a recortarem-se no azul do céu,
ao cimo das colinas, ou à beira de água
espelhando-se nelas como a cristalina
de ninfas ondulância. O dardejar do tempo
e da cristandade os fulminou. Jaziam
tombados entre as ervas, como sexos
dormindo na revolta grenha; ou, inda agudamente,
inúteis penetrando sem desejo
a macieza húmida das nuvens.
Róseos,
brancos, irisados, foram convocados
para a glória de Alá. De toda a parte vieram,
a rastros, dorso, em carros, convergindo
para a cidade branca, atravessando os rios,
as serranias áridas, as planícies pálidas;
e as chuvas lavavam-nos da poeira do tempo
e dos cantinhos.
Um a um erguidos,
já de um a outro os arcos se dobravam,
tão curvamente ultrapassados, duplos,
na intensidade tensa de reuni-los
em floresta imensa, erguidos e coroados.
E de bosquetes para, aladas frondes,
serem dos deuses o repouso, ou de
nítidas cercas em triclínios calmos,
vieram concentrar-se na penumbra
em que o mihrab a um lado é uma estridência de ouro.
De novo um tecto é o que sustentam na viril
segurança para que são fustes. Mas um tecto só:
de toda a parte vieram, ruínas fulminadas,
suportes dispersos dos deuses e dos homens,
para alinhar-se múltiplos na escrita
marmórea e colunar da inefável glória
do nome que é um tecto horizontal
sobre o deserto humano, frio como as lages,
macio como a aragem que se enrosca neles,
cruel como a faísca que os derrubaria,
e ardente como o sol que amadurece
os laranjais do pátio.
Vieram e ficaram
floresta exacta.
Alá partiu, deixando a branca
cidade às moscas, à poeira, às torres de onde
dura de sinos se tornou a voz
do muezzin cantando à tarde.
Mas
alguém pode partir
de uma tão rígida
viril floresta: deuses traduzidos
e congregados para Sua glória?
(Araraquara, 7-8/1/1963)
in Metamorfoses (2014: 315-319)
Chartres ou as pazes com a Europa
Em Chartres, ó Peguy, eu fiz as pazes
com a Europa. Não que eu estivesse zangado,
mas estava esquecido. Primeiro
o almoço num pequeno hotel da praça
nem sequer de luxo, e todavia,
no domingo burguês com as famílias
«déjeunant en ville», tão «vieille France»,
e os criados felizes de servirem bem,
e a gente feliz de assim comer com tempo,
gosto, prazer, e elegância. Da Réserve
Couronnée, ou do meio-dia planturoso e fosco,
fiquei tocado até às lágrimas.
Estou a ficar gagá, «tout doucement».
Depois, Nossa Senhora, Chartres, Idade Média,
e a paz desta saudade n’alma
e a certeza de que este mundo tem de resistir
– e há-de resistir – à grosseria,
às bestas e ao vulgar, às multidões, a tudo:
como o «veau flambé», como os vitrais de glória,
como esta flecha erguida sobre a Beauce,
imagem tão viril de Nôtre-Dame
a meio das campinas infinitas
que os séculos dos séculos calcaram
até fazê-las este plano horizontal de que,
portais de majestade, concreção de fé,
a nossa humanidade é pedra sem retorno
à natureza informe. Tal como a Deusa-Mãe
na cripta contida se transforma
nesta de vidros ascensão fremente
de cores que a luz acende mas não passa.
Europa, minha terra, aqui te encontro
e à nossa humanidade assim translúcida
e tão de pedra nos pilares sombrios.
(Chartres, 10/11/1968)
in Peregrinatio ad Loca Infecta (2014: 550-551)
Bibliografia ativa selecionada
SENA, Jorge de (2014), Poesia 1, ed. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães/Babel.
— (1984), “Sobre a coerência com o cristianismo como exemplo”, in O Reino da Estupidez I, 3ª ed., Edições 70, 1957: 143-148.
Bibliografia crítica selecionada
CARLOS, Luís Adriano (1999), Fenomenologia do Discurso Poético, Porto, Campo das Letras.
LOURENÇO, Jorge Fazenda (1998), A Poesia de Jorge de Sena. Testemunho, metamorfose, peregrinação; ed. ut.: Lisboa, Guerra & Paz, 2010.
Lígia Bernardino
Como citar este verbete:
BERNARDINO, Lígia (2017), “Jorge de Sena”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/jorge-de-sena/