(1966-)
Manuel Xestoso é escritor, editor, tradutor, crítico literário e, há vinte anos, jornalista cultural em A Nosa Terra, Grial, Faro de Vigo, Sermos Galiza e ainda na Revista Galega de Teatro (RTG), de que é subdirector. Publicou Teoría del Ruido em 1995, uma plaquette ilustrada por Viola Siruthairath, inicialmente escrita em galego e que o próprio autor traduziu, a que se seguiu Antón Reixa: ghicho distinto (2012), em colaboração com Xosé Cid Cabido. Em 2017 publicou As Ruínas de Europa, na colecção Dombate da editora Galaxia. Tem ainda numerosos artigos de crítica teatral publicados em diferentes revistas.
A capa de As Ruínas de Europa reproduz uma gravura de Carceri d’Invenzione, de Giovanni Battista Piranesi. Estas prisões que o artista italiano imaginou a partir das ruínas romanas introduzem-nos noutro cenário mais amplo, a Europa e a viagem que Manuel Xestoso recria em torno das suas ruínas, contorno de silêncio para um tempo aprisionado. O autor parte de duas peças de teatro. A primeira é The Europeans, de Howard Barker, escrita em 1984 e representada em Maio de 2009 no Teatro Carlos Alberto, no Porto. Xestoso comentou numa entrevista concedida ao jornal digital Praza que começou a escrever os poemas nessa data, enquanto assistia a diferentes representações da peça em Portugal (pela companhia de teatro As Boas Raparigas, enc. Rogério de Carvalho) e França (pelo Théâtre de l’Odéon, enc. Christian Esnay) (cf. Dopico e Xestoso 2018). A obra de Barker recria o tema da ruína e da reconstrução da Europa tomando como ponto de partida a batalha de Viena, em 1683, entre a Europa cristã e a Turquia otomana.
A segunda peça é Die Hamletmaschine, de Heiner Müller (1977), donde Xestoso tira o título, conforme indica na primeira citação (“…ás miñas costas as ruínas de Europa”) e numa das partes do livro, Scherzo.
A obra As Ruínas de Europa tem como temas principais o conceito de ruína e a ideia da Europa. A ruína é o que permanece depois da violência, do cerco, da guerra e do sangue; portanto, como ossos e cinza, esqueleto da Europa actual. Mas existe também o conceito antagónico da ruína como beleza sublime que soterra cadáveres e memória; da ruína clássica dos templos e da que emerge dos bombardeamentos; bem como da ruína industrial. À ideia romântica de contemplação estética da ruína, contrapõem-se o abandono, o horror e a necessidade da reconstrução da Europa. O autor indica numa entrevista concedida a Montse Dopico que “Ruína implica algo que acabou pero que ao mesmo tempo perdura. Por iso é un sinal de resistencia” (cf. Dopico e Xestoso 2018). De seguida, apresenta-se a ideia de Marc Augé, para quem a ruína é um conceito europeu, ausente nas outras culturas, e, à imagem do que faz Augé, o livro leva-nos a cidades como Berlim e Paris, numa viagem de Inverno: “It is cold. It is Europa” (Xestoso 2017: 20), evocando referências a Barker, a pássaros feridos ou quase inexistentes: “Coñezo máis nomes de multinacionais / que de árbores e de paxaros. (…) Albisco a silueta dun albatros ferido / na pintura esportelada” (11).
A devastação, a ruína, a paisagem deserta, silente, coabita com a Europa de George Steiner (2004), repleta de hotéis, cafés, museus; a música, a poesia e a filosofia fazem parte da nossa história. Sobreviverá a Europa à profecia de Steiner? Emergirá da ruína? Ainda há esperança, a da luz e dos pássaros, da música e do poema, sempre no limiar dum precipício:
Exploremos a posibilidade
de precipitarnos nun ceo
inacabado. (81)
A Europa gélida que Xestoso atravessa faz lembrar a instalação de Francesc Torres Continent de Cristall, em que uma escavadora destrói milhares de garrafas de vidro, símbolo da nossa civilização; Torres conclui que “cando a civilización se rompe o único que resta é lixo, lixo fermoso, belido porén, lixo finalmente” (1994).
Deambulamos com o autor pelas ruínas históricas, acompanhamo-lo até às “sacras pedras de Stonehenge”, à fonte de Apolo, às pedras do muro de Berlim, ao templo de Bóreas. Estão presentes também as ruínas de Pompeia, com os seus cadáveres petrificados (51); a Europa industrial e a sua ruína, em contraposição com a natureza que depois invadirá o abandono; finalmente, a devastação das guerras.
A cidade europeia contemporânea é fruto da passagem da história: a sua arquitectura constrói-se sobre a estrutura de antigos edifícios; pelas suas ruas, cafés ou museus transitam diferentes personagens da mitologia, da história, da literatura, da música ou do cinema. E esse espaço contrapõe-se a um lugar idílico, natural, o de partida do autor: a casa e a tribo, onde repousam a memória e o conhecimento adquirido na viagem, um espaço habitado por pássaros, em que a luz invade tudo. A Europa por onde viaja o autor é uma amálgama de memória e vida, a sua identidade é formada pelos depósitos históricos que se acumulam sobre o território, sobre as pedras.
Xestoso oferece-nos trinta e três poemas, cheios de citações e de diálogos. No seu caminhar pelo antigo continente, aproxima-nos da literatura, do cinema, da arte, da música e da filosofia. Personagens reais e fictícias misturam-se e conversam no correr dos versos: Sócrates, Fedro ou Alcmán de Esparta convivem com Lady Julia Flyte, Napoleão, Schubert, Lully, Alain Resnais, Dostoiévski ou Visconti, Verhaeren, Rimbaud, Walter Benjamin, Brecht, Goethe, Valéry, Mahler ou Lotte Kestner. A sua leitura obriga a uma atenta revisão de outras obras.
O livro divide-se em três partes, como – esclarece Xestoso – uma composição musical em três andamentos. Começa com “O camiño está cuberto de neve”, alusão clara à Winterreise de Schubert. O segundo andamento tem como título “Átomos de ámbar”, possível referência às três peças para piano de Erik Satie, Gymnopédies, e ao poema de Latour que inclui o verso “Où les atomes d’ambre au feu se miroitant”, impresso nas partituras. O último andamento, “A primavera chegou durante a noite”, relembra um verso de um poema de Li Po utilizado por Gustav Mahler no quinto andamento de Das Lied von der Erde. A música é, assim, um dos pilares dos poemas.
A maior parte dos textos pertence ao primeiro andamento. Como indicámos, poetiza uma viagem de Inverno realizada pelo autor, real ou imaginária, numa paisagem desolada pela guerra e pela destruição, mas onde habita a força da cultura. Os três primeiros poemas têm títulos que poderiam resumir a obra: “Leaving…” – “Retorno” – “Restauración”.
A viagem começa no Reino Unido, em Nether Stowey (Somerset), onde, em 1798, Coleridge e Wordsworth escreveram as Lyrical Ballads. Assim, o poema estabelece um paralelismo com The Rime of the Ancyent Marinere, um diálogo entre o autor e o marinheiro, numa viagem nocturna em que as sensações se confundem com as vivências do último. O albatroz ferido (morto) é a imagem mais poderosa que Xestoso recupera do poema romântico: “Albisco a silueta dun albatros ferido / na pintura esportelada”. Manifesta-se aqui o domínio industrial e a sua ruína sobre a natureza: “Unha nave industrial no fondo da noite / Semellaba un paquidermo extinto” (11). Novamente temos a ruína industrial no segundo poema: “asenta sobre os restos dun antigo polígono industrial / bombardeado polos nazis” (14). Visitamos aqui os restos megalíticos por onde deambula o olhar de Lady Julia Flyte, personagem da novela Brideshead Revisited, the Sacred and Profane Memories of Capt. Charles Ryder, de EvelynWaugh; as referências à Segunda Guerra Mundial, ou a difícil tarefa de manter vivas as línguas menorizadas.
O poema intitulado “O ano pasado” resulta do filme L’Année Dernière à Marienbad, de Alain Resnais, permitindo-nos acompanhar o autor no seu passeio pelos jardins de Frederiskbad, por geometrias fotográficas intermináveis, para finalizar com uma referência à “Marienbader Elegie” de Goethe: “Eramos ti e mais eu: / os favoritos dos deuses” (22), que remete também para a saudade total dos versos de “Sós” de Manoel Antonio (1928).
Em “Estratexia” descreve-se a partida de xadrez que Bertolt Brecht e Walter Benjamin jogavam todos os dias na residência do primeiro em Svendorg, no Verão de 1934, e de que existem três fotografias. Neste poema também se remete para o diálogo platónico entre Fedro e Sócrates na obra Eupalinos ou l’Architecte, de Paul Valéry, publicada em 1923 na revista Architecture; manifesta-se aí a beleza, a arquitectura como arte sublime, a sua relação com a música e a palavra e, finalmente, a procura dum conhecimento interior. Também não devemos esquecer que Bóreas era o vento do norte, responsável pelo frio do Inverno, no já citado diálogo de Valéry. Não é casual a escolha de Benjamin, um autor que explorou a ideia de Baudelaire de destruição e ruína provocadas pelas grandes massas e pelo capitalismo, procurando compreender o mundo moderno a partir das ruínas de Paris; um autor que, como Brecht, foi também perseguido pelo regime nacional-socialista e obrigado ao exílio.
Em “Noites brancas” há o frio e o sol da meia-noite dos países nórdicos, agora evocando a lembrança de Dostoiévski e do filme de Visconti.
O cinema é uma constante nos poemas, e o próprio autor indica que tentou aproximar-se da linguagem cinematográfica de Godard. Reconhece ainda a dívida para com o grupo poético galego Rompente e Manuel Antonio (cf. Dopico e Xestoso 2018).
Como já dissemos, as guerras na Europa são uma das causas da sua ruína. Recuperar a palavra dos mortos faz parte do convívio com a memória, para podermos continuar. Relembrando Paris, Xestoso remete-nos para a revolução francesa nos poemas “Restauración” e “O rei divírtese” e, na sua viagem para leste, detém-se na chegada de Napoleão ao poder, a 18 de Brumário (9 de Novembro) de 1799, no mesmo dia em que, em 1938, na “noite de cristal”, noventa e dois judeus viriam a ser assassinados e trinta mil deportados; em 1989, noutro dia 9 de Novembro, cairia o Muro de Berlim. Inclui, igualmente, alusões à batalha de Viena (29) e ao cerco de Sarajevo (30).
Só três poemas formam o movimento “Átomos de ámbar”. São muito menos narrativos do que os anteriores, como um repouso ou um silêncio depois da batalha e da barbárie. Estabelecem um intervalo rumo ao desenlace, no último andamento. Uma esperança de retorno ao início, à identidade, à avó e à tribo: “os paxaros (…) / constrúen niños / contra o vento / en forma de nube” (63). É a invasão da luz.
O último andamento inicia-se com uma citação de Benjamin: “…e ata onde só murmuran as plantas, / sempre resoa un lamento” (1983). Regressamos ao modelo de composição poética da primeira parte. “Xerome” introduz o tema da identidade: “Je est un autre”, extraído das Lettres du voyant de Rimbaud. Começa igualmente a luta entre a luz e o ocaso, e a ideia circular do tempo e do eterno retorno de Nietzsche, para quem o tempo devém e corre, mas nunca começou a devir e nunca parou de correr:
No inacesible fondo da furna
Rabuñou un signo na pedra
cruz, enigma, labirinto,
círculo onde nace o griñido. (77)
Lista de poemas sobre a Europa
“Retorno”
“Restauración”
“Hotel”
“Estratexia”
“Paisaxe”
“Freyung”
“Parhelio”
“Esta historia”
“Berlín”
Antologia breve
HOTEL
Busquei a Lotte Kestner
por todos os camiños:
do Courel a Compostela,
de Iásnaia Poliana a Stalingrado.
Á noite,
no hotel Elephant de Weimar,
a locutora recitaba titulares
cun inquietante estilo monocorde:
“Hoxe, 18 de brumario,
esboroáronse as pedras do Muro.
Os cristais sementan as rúas.
Noventa e dous xudeus asasinados
e trinta mil deportados.
Gari Kaspárov, campión do mundo
tras bater a Anatolii Karpov.”
O serán xacía no silencio
cun despotismo de felino.
Chiaban as avelaionas e os proverbios.
Sería bonito atoparte agora, Lotte.
Bonito e triste,
coma dúas salamántigas
amándose nun terrario.
Preguntaríache:
“Por que se comprime tanto
o aire que aínda nos queda nos pulmóns?”
E ti contestarías imperturbable:
It is cold. It is Europe.
Logo,
Escoitariamos un cuarteto de Lachenmann
e ningún xine te acudiría
ao chamado da catástrofe.
Lotte,
cara a onde flúe o río do desexo?
in As Ruínas de Europa (2017: 19-20)
FREYUNG
Confundo a pedra co outono
e o sol desménteme.
Todos estes palacios,
os sibilantes ecos nos salóns galantes,
as brillantes clepsidras,
as pasaxes baixo arquitecturas sinuosas
ocultan unha mensaxe
esculpida – tal vez – nas mitocondrias.
[– Escoitas?
É a artillaría de Solimán o Magnífico
bombardeando Karl-Marx-Hof
dende a mesa de negociacións
do Palais Kinsky.]
E seguen así, as pedras,
En marcando o bafo da morte, da vida,
the horror, the horror,
esas emisións radiofónicas en onda curta.
Valses,
polcas,
marchas.
salvas de artillaría.
[– Isto non é Saraxevo
non mestures os escenarios.]
Estou canso,
sento,
e miro as pedras máis unha vez.
Abrázame a nitidez das verbas non pronunciadas;
a transparencia dos murmurios.
Gravilo Princip berrou:
“o rei vai espido, o rei vai espido”.
E choveu sobre a cidade
lume e sofre dende o ceo.
in As Ruínas de Europa (2017: 29-30)
S/T
Viven tras o bombardeo ás veces
a vida no ruedo os cigarros
raspillados na procura de auga
de alimentos os francotiradores
unha vaca sagrada pasea
polos bulevares place de l’etoile
abaixo até o arco do triunfo
dos stukas dos pogroms
sempre triunfando portaavións
kamikazes as forzas da paz
vendendo camel sen filtro
o dialecto anglosaxón un dous en finta
violonchelos cantan firmes
o himno á alegría as vacas
sagradas bradando en ollos
de celuloide (yeah yeah) o inverno
en saraxevo as películas
e un minuto antes
a carta de axuste
in Teoría del Ruido, versão original em galego, inédita (1995)
Bibliografia ativa selecionada
DOPICO, Montse/ XESTOSO, Manuel (2018), “A cultura oficial cheira a incenso, ten algo sempre de culto aos mortos” – Praza Pública, 15 de Junho de 2018. Disponível em https://praza.gal/cultura/manuel-xestoso-la-cultura-oficial-cheira-a-incenso-ten-algo-sempre-de-culto-aos-mortosr, consultado em 2/12/2020.
XESTOSO, Manuel/ SIRUTHAIRATH, Viola (1995), Teoría del Ruido, Madrid,Galeria Tripas Corazo.
XESTOSO, Manuel/ CID CABIDO, Xosé (2012), Antón Reixa: ghicho distinto, Vigo, Xerais.
XESTOSO, Manuel (2017), As Ruínas de Europa, Vigo, Galaxia.
Bibliografia crítica selecionada
STEINER, George (2004), The Idea of Europe, Tilburg, Nexus Institute.
TORRES, Francesc (1994), Continent de cristall. Disponível em https://vimeo.com/128797783.
Inma Doval-Porto
Como citar este verbete:
DOVAL-PORTO, Imna (2020), “Manuel Xestoso”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/manuel-xestoso/