NATÁLIA CORREIA

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NATÁLIA CORREIA

(1923-1993)

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Natália Correia aborda no seu poema “Manhã cinzenta”, datado de abril de 1946 (um dos primeiros inéditos da sua poesia completa), o acontecimento que marcou toda a sua vida-obra: a partida da ilha de São Miguel, nos Açores – onde nasceu em 1923 –para Lisboa, onde viria a falecer cerca de setenta anos depois, em 1993. No livro Poemas (1955), o leitor reencontra o olhar levemente nostálgico e lúcido de Natália em relação à sua ilha, em “Retrato talvez saudoso da menina insular”. Este dado biobibliográfico entrelaçar-se-á com a visão que Natália possui da Europa: um espaço heterogéneo e devastado, em relação ao qual a Ilha adquire o valor simbólico de um paraíso perdido, uma nova Ítaca a que se deseja regressar.

No livro Comunicação (1959), surge a primeira referência explícita à Europa. Como introdução ao “Auto da Feiticeira Cotovia”, Natália anuncia, com o seu humor singular, a descoberta de uma cidade chamada Lusitânia, localizada a sudoeste da Europa, soterrada pela opressão do regime salazarista vigente. A realidade lusa, que a autora veementemente pretende denunciar, é, por sinédoque, retrato de uma Europa destruída pela segunda Guerra Mundial. O continente será referido, a par com Portugal, no livro Cântico do País Emerso (1961) – cujo intertexto é a “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos –, como um lugar antigo, indelevelmente associado a um navio-nação, chamado Portugal, que o tempo afundou.

Em O Vinho e a Lira (1966), começa a vislumbrar-se com maior nitidez a Europa de Natália: um lugar que perdeu a sua identidade. O poema “Requiem por nossa mãe Cibelanaítariadne” simboliza essa perda: Auschwitz, lugar de destruição, foi dos últimos a avistar Ariadne, figura da mitologia clássica cujo novelo conduziria a Europa de volta ao centro do labirinto, onde começou a sua história. Herdeira de um legado surrealista, Natália defende sempre a anulação da “obscena oposição entre a verdade e o mito” (Correia 1999: 325), pelo que Ariadne é possível no local simbólico do holocausto. De facto, a Europa de Natália é lugar de morte, como se pode verificar no poema da mesma obra “As silvas do mandala”: a uma África branca, Natália opõe uma Europa preta, cor que remete para um espaço consumido pelo fogo. A poesia nataliana denuncia, a cada passo, a situação precária de uma Europa reprimida pelo fascismo, regime em teia onde Portugal (dramaticamente) também se insere. A única salvação que parece restar é dada pelo verso do fecho deste poema: “Por amor tudo recomeça” (idem: 275), compreensível numa poética fortemente influenciada pela lírica camoniana.

Esta mesma Europa surge no singular livro Mátria (1968). No poema I, vislumbra-se uma “europa” em ruína, ardida, grafada com letra minúscula. No poema IX, Natália declina o motivo do desaparecimento de Anaíta, deusa primitiva da terra e da fertilidade, raiz de uma Europa marcada pela banalidade do mal, expressão célebre de Hannah Arendt. Em A Mosca Iluminada (1972), Natália regressa a Auschwitz, mas também não esquece Hiroxima. Na poesia de Natália cabem todos os lugares onde há sinais visíveis do mal. Logo no poema seguinte, brota na autora o desejo da Ilha, local de pureza absoluta. O texto “Na fossa dos mais acreditados dicionários” desvaloriza a definição dicionarizada do termo ilha, e enfatiza-a como um lugar único, misterioso, objeto perfeito, porque distante, “a mãe que se fecha na sua insânia de morta a percorrer impudicamente as nossas artérias” (idem: 315).

Natália vai revelando a sua visão da Europa de uma forma dispersa ao longo da sua poesia. Contudo, acaba por centralizar o seu olhar sobre o velho continente em 1973, num livro intitulado OAnjo do Ocidente à Entrada do Ferro. No texto “No topázio mais triste da minha clarividência”, a autora chora “trevos de cinza pela Europa” (idem: 361), continente que descreve como “triste viuvinha”. O poema “Dedicatória” sintetiza a visão eclética que Natália possui do continente europeu. Aborda o mito clássico de Europa, sublinhando o desejo como central na formação da identidade do velho continente, descrito como lugar de heterogeneidades, profundamente associado a uma tradição judaico-cristã, espaço de lutas permanentes pelo poder. Foi ainda berço de uma civilização, palco de revoluções políticas e industriais, moldado por mitos intemporais que definiram a sua identidade. Mais do que uma entidade geográfica, a Europa é, em Natália, uma entidade cultural, fundada pelas civilizações pré-clássicas, simbolizadas em Creta, das quais apenas restam ruínas. Neste contexto, enquadra-se o poema “Excursão às ruínas da valsa”, onde a Áustria surge como “maxilar caído da Europa” (idem: 367). Adiante, em “Do sagrado meretrício”, Natália dialoga com Roma e procura um sentido para o “pútrido século” em que veio desaguar a cultura europeia. Encerra este livro com um poema de cinco partes, “Pranto dos europeus à saída do festim”, onde clama por uma Europa um dia existente, perdida por ódios e guerras. As interrogações de Natália são significativas da inexistência de rumo para o velho continente, um dia fértil em heróis e alimentado pelo sonho: “Que direcção tomar?”, “Que fizemos das árvores?”, “Que resta deste campo de girassóis recentes?” (idem: 400-402). Ao leitor parece não ser dada qualquer resposta. Contudo, há uma salvação: “a actuação dos ossos que procuram / o centro de uma casta e eterna fixidez / onde os deuses nos fitam com a frieza das jóias / e a vida nos espera para ressurgir de vez” (idem: 402).

O último livro de poesia onde Natália aborda a Europa data de 1976 e intitula-se Epístola aos Iamitas. A reflexão poética enquadra-se num contexto pós-revolucionário, onde Natália mantém a sua voz crítica e conclui a sua falta de apetência para revoluções como a do 25 de Abril, que, segundo a poeta, falhou nos seus propósitos. A maior revolução permanece por fazer: “a abertura da psique humana à plenitude do ser” (idem: 413). As referências à Europa surgem, como nas primeiras obras, cruzadas com referências a Portugal: no poema III, Natália projeta o fracasso da revolução portuguesa na Europa, e, no conjunto “Urna Áurea”, constituído por três sonetos, surgem as últimas referências à Europa, com claras marcas de um nacionalismo místico-pessoano assumido pela autora na introdução do livro. A pátria amada de Natália, rosto da Europa, não vê fim à decadência denunciada por Camões nas reflexões do seu poema épico, não vê fim ao nevoeiro anunciado pela Mensagem de Pessoa. Recorrendo a motivos do livro do Apocalipse de S. João, Natália profetiza um Portugal futuro, com um tom pessoano, que recuperará a sua dimensão perante a Europa. A partir deste livro, cremos que desaparecem da obra nataliana as referências ao mítico continente. Movida pela urgência de a “poesia ser praticada” (idem: 33), pois afinal nela “se incuba a transformação da alma da humanidade” (idem: 34), a Natália parece restar a esperança numa Europa renascida, com uma pátria que dará ainda cantos a escutar, esperança que surge da crença sintetizada no seu soneto “Creio nos anjos que andam pelo mundo” (idem: 616). Afinal, a poética de Natália não se autodestrói, mas renova-se pelo sonho, pela palavra e pelo Amor que faz a Obra: “Creio no incrível, nas coisas assombrosas / Na ocupação do mundo pelas rosas / Creio que o Amor tem asas de ouro. Amém.” (ibidem). Reste ao leitor uma possível imagem do paraíso futuro: uma nova Europa pacificamente invadida por rosas.

 

Lista de poemas sobre a Europa

Comunicação (1959);

Poemas II e V, Cântico do País Emerso (1961);

“Requiem por nossa mãe Cibelanaítariadne”, O Vinho e a Lira (1966);

“Os dias do teu reino estão contados”, O Vinho e a Lira (1966);

“As silvas do mandala”, O Vinho e a Lira (1966);

Poemas I e IX, Mátria (1968);

“Árvore géniológica”, A Mosca Iluminada (1972);

“Não sei se todos vós chegareis”, A Mosca Iluminada (1972);

“No topázio mais triste da minha clarividência”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“Dedicatória”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“Wien Flug”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“Excursão às ruínas da valsa”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“Do sagrado meretrício”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“Último canto de Luís o Cisne”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“Pranto dos Europeus à saída do festim”, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973);

“O sacrifício” – poema III, Epístola aos Iamitas (1976);

“Urna Áurea”, Epístola aos Iamitas (1976).

 

Antologia breve

Dedicatória

 

A ti ó dança de água bandarilhando o touro

fonte de sete véus dos deuses bebedoiro

arte de flancos mornos versificando o cio

que te raptou em rio no crescente dos cornos

 

que a graça plena foste do desejo quadrúpede

do deus que trabalhando o lenho do teu útero

o ovo afeiçoou à sesta vertical

de uma história dormindo de pé em catedral

 

A ti que lá de Creta erguendo a tromba lenta

em séculos de marfim mostraste a paciência

da obra de metal que agora te asfixia

na crónica fraudulenta de uma fotografia

 

A ti que das indóceis distâncias gastronómica

dos oceanos foste a suma teológica

crucífera e cruzada de sífilis e de azul

ao norte amealhando o que gastas ao sul

 

A ti que numa inglesa escrita comercial

a cânfora roubaste do sono oriental

na prática pimenta dos exóticos pratos

de um menu colonial roído pelos ratos

 

A ti ó insaciável que para mudar de anéis

dos reis decapitaste os turvos capitéis

com o capitalado dos novos capitães enfarinhando a

cara

fazendo de tetrarcas (que outro pano não guarda o

imo das tuas arcas)

engomada com a gosma da bronquite burguesa

quando lá na bastilha ganhou a espadilha da revolução

francesa

 

A ti hagiológica

das sacristias rata beata quando lógica

entre o incenso e a prata dos gomis por que bebes

agora gasolina

trôpega de elefantíase com tromba telescópica

das luas arrombando os lagos de parafina

de que o empíreo acabe empírica e raivosa mordendo

os astro lábios

 

A ti laboriosa laboratório antera

com o pólen dos sábios na proveta da rosa verificando

a fera

A ti vitoriosa que a tudo respondeste

na língua cavernosa de ferida examinada

A ti ó instrumento polífono dos êmbolos

com tremedal e trémolos na voz desafinada

pelos espúrios dezembros das máquinas que embalam

teus membros em geada

 

Ó transistorizada de trânsito transida

eléctricas espáduas caindo entre parêntesis de bar e

barbitúrico

A ti iluminada pelo gás dos abrenúncios

no castanho apagado de uma ânfora grega

brincando à cabra-cega com uma venda de anúncios

 

A ti ó acrobata no arame que vai do paul ao paiol

com bemóis de sucata do teu requiem erguendo a

escada em caracol

A ti puta compósita do jónico e do ágio

repesa no adágio da sonata de cristo

ó Europa enlatada

ó cisne

ó cista

ó cisto

numa ígnea membrana de américa enquistada

ó repertório vário de proletária ténia

trabalho solitário de famintos projectos

com juízos finais pintados nos teus tectos

 

A Ti porém dedico

o motivo da lira que em glóbulos herdei

sangue do teu fabrico parágrafo da cítara

levantada nos cornos do deus que em musical compasso

genital

cozeu nos altos-fornos do céu em liberdade

a gélida faiança da imortalidade

 

Ao fermento da origem que provocou teus seios

odres dos vinhos velhos que em sangria escorrendo

argolam-se nas lágrimas que tanges nos artelhos

 

À nave zodiacal que desbravou as curvas

dos teus quadris infusas de leite filosofal

coalhado em semifusas de betão e metal

 

ao paciente arcano que com o silabante vagar das

colunatas

metrificou teu crânio de fábulas e flautas

 

aos plátanos que sofrem na medalha cretense

do fundo dos teus olhos a tua dor rodada

na lôbrega pronúncia dos fios telefónicos

ó estopa     ó Europa do linho separada!

 

in O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973)

 

 

Pranto dos Europeus à saída do festim

 

V

Chamávamos Europa ao sítio onde parou

o sangue que a estrela de seis pontas buscava

onde a sede do corpo por fim chegasse à alma

Esquecidas as letras que a labareda obscura

sabiam apagar ensanguentou-se o livro

Que resta deste campo de girassóis recentes?

um bosque desabado de verticais caídas

com morangos de plástico e crianças perdidas

em corpos estranhados como números chamados

por uma aritmética de vozes sem destino

Por certo nos vestimos de carne prematura

e neste claro escuro de templos e desastres

nos salva a actuação dos ossos que procuram

o centro de uma casta e eterna fixidez

onde os deuses nos fixam com a frieza das jóias

e a vida nos espera para ressurgir de vez

 

in O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973)

 
Bibliografia ativa selecionada

CORREIA, Natália (1999), Poesia Completa. O sol nas noites e o luar nos dias, Lisboa, Dom Quixote.

 

Gil Clemente Teixeira

 

Como citar este verbete:
TEIXEIRA, Gil Clemente (2017), “Natália Correia”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.

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