(1966-)
Natural de Lisboa, Rui Cóias frequentou a licenciatura em Direito, na Universidade de Coimbra, possui uma pós-graduação em Ciências Jurídicas e dedica-se, atualmente, ao estudo de Filosofia, na Universidade Nova de Lisboa.
Publicou três livros de poesia: A Função do Geógrafo (2000), A Ordem do Mundo (2006) e Europa (2015). Os dois primeiros foram alvo de tradução em diversos países, como a Bélgica e a França. Para além destes volumes, alguns dos seus textos figuram em diversas antologias e publicações coletivas, quer em Portugal, quer em alguns países europeus e americanos, o que demonstra o largo espetro de receção da sua poética.
Em Europa, o poeta explorou algumas questões inerentes à sua visão individual do velho continente. Esta obra integra vários textos líricos já publicados em volumes anteriores, ainda que agora modificados. A este respeito, apontem-se os poemas “Sabias ser o augúrio a adivinhação do futuro pelo voo das aves?” (Cóias, 2015: 12), “Poderás afirmar” (25) e “Estreita o passo ao avistares a encosta dos rios” (20). Consequentemente, poder-se-á constatar que, em Europa, Rui Cóias levou a cabo um meticuloso trabalho de rasura e reescrita, transmutando não só a organização estrófica de diversos poemas mas também a pontuação e o leque lexical. Num nível mais profundo de análise, talvez esta reconstrução poética possa mimetizar a reconstrução que o eu lírico almeja em alguns segmentos textuais, “como se [soubesse] ainda toda a esperança” (35).
Atente-se, também, no título do livro – Europa –, que parece apontar, de modo explícito, para uma evidente reflexão sobre esse continente. Porém, os textos poéticos contidos no volume contrariam essa aparência de clareza temática. Nos cinquenta e um poemas que compõem o livro (e excluindo o texto final em prosa), o lexema “Europa” apresenta somente duas ocorrências – em “«Não distinguimos com clareza o que importa” (43) e em “Enquanto ali estamos, nem sequer” (87-88). Mais do que nomear a Europa na sua totalidade, o autor recorre à evocação de múltiplas paisagens e zonas geográficas europeias, para que, através delas, se vislumbre cada espaço arruinado. Crê-se, portanto, que esta opção opera não só como instrumento estético, como enquanto diretriz de leitura. Isto é: além de poder tomar-se, metonimicamente, cada região como sinónimo do pesar que se abate sobre os países devastados pelas Grandes Guerras, estas referências podem constituir um roteiro mental para o leitor.
Note-se que a cosmovisão do velho continente apontada pelo autor se assume disfórica, desde o início, uma vez que o território europeu vai, nas suas palavras, perdendo as suas essências territorial e ideológica, despersonalizando-se e “empalidecendo, palmo a palmo, num elo mais escasso, / nas cidades, pastagens, e portos, que são uma parte de nós, / tremulando na agonia” (11). Neste âmbito, e resgatando a perspetiva de Pedro Mexia no texto publicado numa badana da obra, é possível afirmar que a Europa que Rui Cóias almeja apresentar, além de melancólica e destruída, cultural e ideologicamente, acaba por esgotar-se, a nível geográfico, nas trincheiras dos campos de batalha. Tal nota parece propulsionar uma comunhão entre tempo e espaço: “Ao menor infortúnio só uma polha basta / para atear na trincheira o dedo estrelado da noite, / seja emanando de uma correnteza de casas ou misturando-se na noite vazia” (66), “o tempo, que é uma dura distância” (13) ou “o Ocidente simula o desconhecimento, e as fronteiras gravitam” (43).
Nesta confluência, destaque-se o facto de Europa ser depositário de uma forte componente imagética. Ao longo das suas páginas, o recetor dos poemas é conduzido pelo sujeito lírico – um viajante inspirado no flâneur baudelairiano, marcado pelo rastro sanguinário deixado pelas batalhas e pelo profundo declínio do ambiente que o envolve – a diversos espaços físicos, que se mesclam com espaços psicológicos, através do exercício de rememoração. Assim, o eu poético move-se entre paisagens perturbadoras de um passado merencório, nas cinzas do Ocidente, que é apresentado enquanto “puro horizonte” (41), memória vaga de um projeto sólido de prosperidade, transformado em “terra devastada”, aludindo à expressão de T. S. Eliot: “a dizer: lá estamos nós, como fomos, olha / ali vai a nossa estrela que acompanha como éramos noutra vida, noutra estrada” (20).
Importa recuperar, por fim, o papel dual da reminiscência. Se por um lado a recordação pode constituir um elemento omnipresente nos poemas e adjuvante da melancolia do eu poético, que descreve o velho continente através de elementos disfóricos mais ou menos concretos (tais como cinzas, sepulturas ou líquenes azuis), por outro aparenta preconizar uma tentativa de catarse quer do sujeito quer do território que este vai revisitando, verbalmente: por “planícies ficou o desespero, / a dor lilás dos homens soçobrados” (32). Não obstante, a anamnese permanece: “tange as belas histórias do mundo / na solidão de todas as horas que se cruzam” (72), podendo esboçar um distante reconforto.
Num dos poemas de Europa, pode ler-se que “as mãos se erguem pelos que morrem” (88). Parece ser essa uma das principais vertentes dos textos que integram a obra, atuando como memorial de um Ocidente devastado, onde as fronteiras espácio-temporais e ideológicas se esgotaram em vestígios da dolência dos que vivenciaram os confrontos das Grandes Guerras: “a Europa, aos pés de uma / trança extinta, derrama connosco / as cinzas das suas fronteiras” (88). Parafraseando Rui Cóias: faça-se da memória a função do geógrafo e não adormeçamos despercebidos (cf. 51).
Lista de poemas sobre a Europa
“«Não distinguimos com clareza o que importa,”, Europa (2015)
“No dossel do tempo volvido e enterrado”, Europa (2015)
“Esta é a terra nocturna. A do líquen azul do poente.”, Europa (2015)
“Na Primavera, de longos anos, ao sol”, Europa (2015)
“Antes de pousarem os anos nos nossos ombros dobrados”, Europa (2015)
“Já não tarda o novíssimo tempo”, Europa (2015)
“Enquanto ali estamos, nem sequer”, Europa (2015)
Antologia breve
«Não distinguimos com clareza o que importa,
vemos o que podemos ver, claramente, nada discernimos,
mas o Ocidente simula o desconhecimento, e as fronteiras gravitam –
Por imensos invernos permaneceram a norte,
e em vinte dias, e noites, de indigência, os fundadores
viram-se ao mar e clamam, juntando ao canto a voz contínua;
não temeram o que cantam, mas o que é audível,
erguido na vaga na escuridão de uma das estrelas
que, de cima, do silêncio, os possui, na paisagem;
e orando às previsões futuras, como o fizeram os ancestrais,
ateiam nas ravinas as fogueiras, receiam as famílias,
as mulheres que os esperam no frio disfarce do olhar,
afagando os filhos, tapando a trança sob os xailes –
«Onde o vento não passar acendei velas, raspai os cobres;
trançai os cabelos onde o azeite vos cheirar, uni as mãos,
pois é Dezembro o mês em que deveis ter medo –
E nos anos que passam, de um deles nascerá aquele que espelha
a ranhura dos mármores, e as dunas da Europa,
falará do sentido de se olhar outra fronteira da mais próxima,
disporá aos herdeiros as propriedades e as planícies centrais
e erguer-se-á nas manhãs que segredam o seu nome.
in Europa (2015: 43)
Na Primavera, de longos anos, ao sol,
lutámos em uma e na mesma batalha, e hoje
enquanto ardem as débeis velas que se tornam pó
subimos essa colina, e olhando o céu ocidental
em que nos vemos familiarmente a uma nova luz,
pensamos que ninguém pode talvez tocar
o obscuro esquecimento em que se destroem as
ilusões, sem murmurarem por elas os
dilacerados marcos e o sangue das décadas, em que
vagamente submergimos na turva solidão do mundo.
No esvaziar do seu dia, da solitária dureza,
tudo se ajusta em cabelos acinzentados desde a infância,
tudo se ajusta continuando os seus escombros,
tal o punho branco de uma caligrafia invisível,
uma perdida clemência, que chama, antes de nós,
antes de remoermos a inextinguível tristeza,
o meigo escutar dos nossos pais, atrás do ombro,
embalando velhas manhãs que não nos largam a mão,
como velhos ramos apertados de braços de
lenhadores, e velhas folhas humedecidas
no mosto, dos antepassados, da nossa morte.
Onde há assim a vida, palpitaram os mortos para a
piedade inseparável desses olhos sem par
que continuam sem fim a seguir-nos, e aquilo
que for transmitido, e que transmitiremos,
por tácitas palavras por quais se estriaram
as perguntas que nos tornam piedosos, marca
o afecto do que somos, e sabemos que seremos,
do que chamará por nosso nome, e por nossa Europa,
assim falando-nos deste nosso pão disponível,
assim marcando as gotas azuis dos afluentes,
ressoam para deixar o dia que não regressa mais
e que, sem compreendermos, mesmo sem auxílio,
soluça sob o leito de todos os olhos amados
em que parte da alma no mundo, ou o mundo
inquebrado num interlúdio, da finitude
desse embargado cristal de hoje e de amanhã,
ergue as sereias mortas da recordação
que das sombras próximas e distantes
crocitam no pálido troar que vamos pisando
bebendo a cinza do que foi, alguma vez, o Ocidente.
in Europa (2015: 79)
Bibliografia ativa selecionada
CÓIAS, Rui (2015), Europa, Lisboa, Tinta-da-China.
— (2006), A Ordem do Mundo, Vila Nova de Famalicão, Quasi.
— (2000), A Função do Geógrafo, Vila Nova de Famalicão, Quasi.
Cristina Oliveira Ramos
Como citar este verbete:
RAMOS, Cristina Oliveira (2018), “Rui Cóias”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/rui-coias/