JOSÉ MIGUEL SILVA

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JOSÉ MIGUEL SILVA

(1969 – )

O poeta português contemporâneo José Miguel Silva (n. 1969) publicou, até 2017, os seguintes livros: O Sino de Areia (1999), Ulisses já não Mora Aqui (2002), Vista para um Pátio seguido de Desordem (2003), Movimentos no Escuro (2005), Walkmen (com Manuel de Freitas, 2007), Erros Individuais (2010), Serém, 24 de Março (2011) e Últimos Poemas (2017). Em 2002 participou na antologia Poetas sem Qualidades, organizada por Manuel de Freitas. Tem vindo ainda a publicar, com regularidade, poemas e ensaios nas revistas Telhados de Vidro e Cão Celeste. Na blogosfera mantém uma presença frequente, escrevendo em Achaques e Remoques (https://eumeswill.wordpress.com/), um blog pessoal criado em março de 2009.

Embora José Miguel Silva assuma a “vocação política” da sua poesia (apud Bonifácio 2011: s/p) e reflita com assiduidade acerca do mundo contemporâneo, a palavra Europa e as suas derivantes revelam-se praticamente inexistentes na sua poesia. Ainda assim, o leitor poderá intuir com facilidade o que este autor pensa a respeito da Europa.

No seu segundo livro, Ulisses já não Mora Aqui, há, logo no título, uma ideia de perda, reforçada por uma epígrafe de Bernardo Soares, que o autor escolhe para abrir a primeira parte do livro: “Nós herdamos a destruição e os seus resultados”. Ulisses já não mora aqui, isto é, vivemos num tempo onde não há espaço para heróis (nem mitos). Sem nunca mencionar explicitamente a Europa, José Miguel Silva não deixa de introduzir inúmeras referências à Grécia Antiga, contrapondo um passado de valores e ideais a um presente oco e desencantando. A ilustração irónica desta oposição faz-se, por exemplo, no poema “Colheita de 98”, em que o sujeito poético aproxima o “Bem, a Beleza, a Verdade” (2002: 38) a “uma garrafa de maduro tinto do Ribatejo”, comprada “ontem no supermercado” (ibidem). Numa outra epígrafe escolhida por José Miguel Silva, esta de Sophia de Mello Breyner Andresen, antecedente a um poema de Erros Individuais, pode ler-se: “O primeiro tema da reflexão grega é a justiça” (apud Silva 2010: 22). Mas a justiça, conclui José Miguel Silva num outro poema (“Lamento e exortação”), “é uma jura redigida em esperanto / e a lei o duro eixo onde circula o privilégio” (2017: 7).

Desta forma, o único ideal que o poeta observa atualmente na Europa é o do lucro capitalista, onde “apenas o espírito invisível / dos cartões de crédito perfura, roedor, / o níquel dos humanos corações” (2005: 17). Em consequência, a linguagem económica introduz-se de forma obsessiva em muitos poemas, dos quais “Too big to fail” é um dos maiores exemplos: “O meu único receio é que despertemos / a inveja dos Deuses, no Olimpo de Bruxelas, / e que Mercado, o monstruoso Titã, decida / baixar para lixo o rating da nossa relação” (2011: 18). A visão de José Miguel Silva parece aliás em concordância com a de Hans Magnus Enzensberger, que no mesmo ano publicou O Afável Monstro de Bruxelas ou a Europa sob Tutela, ensaio no qual antevê o “fracasso” do projeto europeu (idem: 68).

Por outro lado, num poema como “Feios, Porcos e Maus — Ettore Scola (1976)” (Silva 2005: 42-43), o poeta regista a promiscuidade política portuguesa (onde “só os piores” conseguem chegar aos cargos mais importantes), em sintonia com a realidade europeia (“director executivo, embaixador na Provença”). E, assim, “a bolha esburacada da democracia” (Silva 2017: 31) parece imperar globalmente: “Entre o ridículo e um buraco negro, escolhemos, / hoje e ontem, a elite que tão bem nos representa: / a diferença nenhuma” (2005: 45).

Não há, na poesia de José Miguel Silva, a crença numa Europa unida em torno de valores como justiça, liberdade ou compaixão. Há, essencialmente, pessimismo irónico, denúncia da globalização e do capitalismo. Cidades como Londres, Paris e Nova Iorque (2005: 54) equivalem-se como centros urbanos onde todas as preocupações são, em primeiro lugar, económicas. A Europa é, portanto, para o poeta, espelho de um mundo egoísta onde “a compaixão [se] reduz / ao gosto complacente de uma liberalidade baratucha” (2010: 22) e onde o apocalipse se materializa como a realidade futura mais plausível: “Enquanto omitíamos limites, / travestidos de titã desenfreado / e celebrávamos a mancha do progresso / e almoçávamos petróleo (pensando / que comíamos cozido à portuguesa!) / entropia entrava em cena e declarava, / terminante: «Acabou a brincadeira»” (2017: 41).

 

Lista de poemas sobre a Europa

“Trevas”, Ulisses já não Mora Aqui (2002)

“Colheita de 98”, Ulisses já não Mora Aqui (2002)

It’s a Wonderful Life — Frank Capra (1947)”, Movimentos no Escuro (2005)

Feios, Porcos e Maus — Ettore Scola (1976)”, Movimentos no Escuro (2005)

A Terceira Geração — Rainer Werner Fassbinder (1979)”,Movimentos no Escuro (2005)

O Ódio — Mathieu Kassowitz (1995)”, Movimentos no Escuro (2005)

“Via del Corno”, Erros Individuais (2010)

“Too big to fail”, Serém, 24 de Março (2011)

“Lamento e Exortação”, Últimos Poemas (2017)

“Teatro Político”, Últimos Poemas (2017)

“Fala o Director-Geral”, Últimos Poemas (2017)

“Fim”, Últimos Poemas (2017)

 

Antologia breve

Trevas

 

E o pior é que chamamos liberdade

a um tapete que, rolante, já não ouve

a opinião dos nossos pés, que nos leva

para onde anuímos, alheados

aos mecânicos desígnios do poder.

 

Respiramos cadeados, consumimos

injustiça, damos duas várias voltas

ao risonho torniquete que nos serve

de chapéu e permutamos a cabeça

por um prato de aspirinas.

 

Os clássicos da vida sem tristeza

nem remorso (Cinderela, Varadero,

off-shore) iluminam o cenário em que

dormimos, inocentes como balas,

e nem sei como não somos mais felizes.

 

Para o centro do inferno conduzimos

este filho, o filho deste carro, cativados

p’lo direito conquistado de entregar

os nossos dias, como reses,

ao cutelo de despachos infiéis.

 

Viver é neste cerco uma questão

de prorrogar o desalento: cerramos

uma porta suicida, desatamos

a gravata, damos graças quando o gelo

na bebida se derrete devagar.

 

Se olhamos para o chão desaparece

o horizonte, se olhamos para o céu

ficamos sós. Não percebo como rimos

quando pedem que posemos para a foto

de família. Alguém nos enganamos.

 

Confundidos pelo surto da mentira,

leiloados pela última hipnose,

enxertados no pedúnculo da morte,

dizei-me se estes rostos de cartão amarrotado,

se esta alma como um campo pedregoso,

 

se estes pés afeiçoados ao espinho,

se isto que nós vemos é um homem.

 

in Ulisses já não Mora Aqui (2002: 18-19)

 

 

Feios, Porcos e Maus — Ettore Scola (1976)

 

Compram aos catorze a primeira gravata

com as cores do partido que melhor os ilude.

Aos quinze fazem por dar nas vistas no congresso

da jota, seguem a caravana das bases, aclamam

ou apupam pelo cenho das chefias, experimentam

o bailinho das federações de estudantes.

Sempre voluntariosos, a postos sempre,

para as tarefas de limpeza após o combate.

São os chamados anos de formação. Aí aprendem

a compor o gesto, a interpretar humores,

a mentir honestamente, aí aprendem a leveza

das palavras, a escolher o vinho, a espumar

de sorriso nos dentes, o sim e o não

mais oportunos. Aos vinte já conhecem

pelo faro o carisma de uns, a menos valia

de outros, enquanto prosseguem vagos estudos

de Direito ou de Economia. Começam, depois

disso, a fazer valer o cartão de sócio: estão à vista

os primeiros cargos, há trabalho de sapa pela frente,

é preciso minar, desminar, intrigar, reunir.

Só os piores conseguem ultrapassar esta fase.

 

Há então quem vá pelos municípios, quem prefira

os organismos públicos — tudo depende do golpe

de vista ou dos patrocínios que se tem ou não.

Aos trinta e dois é bem o momento de começar

a integrar as listas, de preferência em lugar

elegível, pondo sempre a baixeza acima de tudo.

 

A partir do Parlamento, tudo pode acontecer:

director de empresa municipal, coordenador de,

assessor de ministro, ministro, comissário ou

director-executivo, embaixador na Provença,

presidente da Caixa, da PT, da PQP e, mais à frente

(jubileu e corolário de solvente carreira),

o golden-share de uma cadeira ao pôr-do-sol

No final para os mais obstinados, pode haver

nome de rua (com ou sem estátua) e flores

de panegírico, bombardas, fanfarras de formol.

 

in Movimentos no Escuro (2005: 42-43)

 

Too big to fail

 

Como pode um investimento tão fiável

garantir este rendimento crescente, numa

diária distribuição de beijos e outras mais-

-valias, ainda por cima livres de impostos?

 

Embora confiasse na tua competência

para criar valor, confesso que não esperava

tanto quando decidi aplicar nos teus títulos

sensíveis os meus parcos activos emocionais.

 

O mais estranho, no mundo actual, é ser este

um negócio sem perdedores, aparentemente

imune ao nervosismo das tuas acções

ou às flutuações do meu comércio libidinal.

 

O meu único receio é que despertemos

a inveja dos Deuses, no Olimpo de Bruxelas,

e que Mercado, o monstruoso titã, decida

baixar para lixo o rating da nossa relação,

 

deixando-nos sem crédito na praça romanesca

e em default o coração. Mas não sejamos

pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido

nos ampara com a sua mão invisível. E mesmo

 

que entrássemos ambos em depressão, tenho

a certeza de que o Estado português nos daria

todo o apoio, concordando que um amor como

este é simplesmente demasiado grande para falir.

 

in Serém, 24 de Março (2011: 18-19)

 
Bibliografia ativa selecionada

SILVA, José Miguel (2017), Últimos Poemas, Lisboa, Averno.

— (2011) Serém, 24 de Março, Lisboa, Averno.

— (2010) Erros Individuais, Lisboa, Relógio D’Água.

— (2005) Movimentos no Escuro, Lisboa, Relógio D’Água.

— (2002) Ulisses já não Mora Aqui; ed. ut.: Lisboa, Língua Morta, 2014.

 

Bibliografia crítica selecionada

BONIFÁCIO, João (2011), “Realista não, político sim”, inPúblico, www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/realista-nao-politico-sim-277204 (acesso a 15 de novembro de 2015).

ENZENSBERGER, Hans Magnus (2011), Sanftes Monster Brüssel oder die Entmündigung Europas; ed. ut.: O Afável Monstro de Bruxelas ou a Europa sob Tutela, Lisboa, Relógio D’Água, 2012.

 

Vítor Ferreira

 

Como citar este verbete:
FERREIRA, Vitor (2017), “José Miguel Silva”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/jose-miguel-silva/