(1949 – )
Escritor libanês radicado em França, desde que para lá se deslocou na sequência da guerra no Líbano, Amin Maalouf tem vindo a repartir a sua obra literária pelas áreas da ficção, do ensaio e dos libretos de ópera, sendo, desde 2011, membro da Académie Française.
Exemplo vivo do fronteiriço, como ele próprio se considera, por ser atravessado por várias linhas de fratura (étnicas, religiosas, linguísticas e culturais), o autor sabe-se em posição privilegiada para servir de estafeta e ajudar a lançar pontes de diálogo e de entendimento entre culturas, vendo na literatura, sobretudo na ficção, um território de eleição pela mediação simbólica que esta permite. A sua obra propõe, à imagem do que fazem outros escritores árabes modernos, uma releitura da História, que equaciona as tensões entre Oriente e Ocidente e abre para novas interpretações, partindo do que na História oficialmente consagrada poderá ter havido de dúvida ou equívoco, fornecendo assim um outro tipo de olhar e uma nova forma de conhecimento.
Na obra maaloufiana, Literatura e História aliam-se na configuração de quadros históricos de convivência, onde, através de uma mitificação positiva da História e de estratégias de reconfiguração identitária, o leitor acede a plataformas de reflexão sobre o mundo e as relações de força que determinam o seu movimento. Os contextos escolhidos obedecem a uma lógica de descentramento e de desequilíbrio, de sociedades em ebulição e em processo de se repensarem, onde naturalmente sobressaem melhor as diferenças, o confronto de ideias e onde, oscilando entre culturas e diferentes perspetivas do mundo, o indivíduo é conduzido a repensar-se, num exercício fermentador individual e coletivo. Este ângulo diferente de perspetivação foi primeiramente usado em Les croisades vues par les arabes (1983) e iniciou um ciclo de reequacionamento das relações entre a Europa e o mundo árabe.
Frequentemente bipolarizada, o que é compreensível por um percurso de vida balizado entre um meio social árabe e uma formação escolar de matriz europeia, a abordagem de Amin Maalouf fornece, porém, suficiente matéria de reflexão sobre as fricções que têm vindo a opor o Ocidente e o Oriente e têm estado na origem dos vários extremismos e fervores identitários que assolam a contemporaneidade.
Crítico do mundo árabe, no que ele mantém de cegueira face à evolução do mundo e de cristalização na negação, Maalouf não isenta, porém, a Europa de culpas na deriva obscurantista do Médio Oriente. Na verdade, o autor põe o dedo na delimitação aleatória de fronteiras, operada pelos países europeus na sequência de conflitos bélicos, e na ganância europeia (mas também norte-americana) que o petróleo veio alimentar, determinando jogos de poder político que melhor favorecessem os interesses ocidentais, mesmo se à custa da derrocada de esforços consistentes de democratização das sociedades árabes e do seu desenvolvimento cultural e civilizacional (2009:27).
Embora claramente europeísta, pela crença nos valores humanos e democráticos que erigiram o velho continente em farol civilizacional do mundo, o escritor não poupa as potências ocidentais à acusação de terem inquinado as relações entre Ocidente e Oriente, dificultando a capacidade humana de gerir a diversidade e de se abrir a um futuro coletivo, alicerçado em valores comuns (idem:52). O espírito combativo e reformista do avô Botros, em Origines (2004), de Benjamin Lesage, em Samarcande (1988) e de Tanios, em Le Rocher de Tanios (1993), defendendo um sistema de ensino moderno e laico, a rejeição de tradições seculares, obscurantistas e castradoras do desenvolvimento são esforços que esbarram não só numa cegueira atávica do mundo árabe, mas também nos interesses políticos e económicos das potências europeias, incapazes de perceberem a hipocrisia de reprimirem os valores de que se ufanam quando está em causa a possibilidade de dominarem o mundo. O fracasso dos esforços árabes de modernização, nomeadamente na implantação da Constituição na antiga Pérsia (Samarcande), da convivência e da partilha étnica e religiosa pacífica e dialogante (Les Echelles du Levant – 1996) e no diálogo cultural e ecuménico (Léon l’Africain – 1986; Le Périple de Baldassare – 2000) é frequentemente imputado à hipocrisia de instâncias europeias que, agindo na dupla pulsão de civilizar o mundo e de o dominar, não compreendem que o comunitarismo étnico ou religioso não pode constituir base legítima de representação política, por ser contrário ao espírito democrático e de cidadania (2009:58).
O escritor acusa a Europa de, nas últimas décadas, ter perdido o norte e de, na sequência do maravilhamento perante a queda do muro de Berlim, se ter narcisicamente fechado sobre si própria em autocontemplação, julgando ingenuamente que, a partir do desmoronamento soviético, a democracia se espalharia pelo mundo (idem:18). Tal ilusão terá, na perspetiva do autor, dispensado o debate democrático, entendido doravante como redundante, o que terá determinado uma deriva das questões ideológicas para as questões identitárias, questão a que Maalouf é especialmente sensível e que explanou circunstanciadamente no seu primeiro ensaio, Les Identités Meurtrières (1998).
Apesar da sua visão dolorida e crítica (2009:62 e 64) e de claramente manifestar algumas reservas no seu otimismo, Maalouf acredita na capacidade de a Europa se regenerar, por entender que esta sabe medir os riscos e tem a ética e as instâncias necessárias para levar a bom porto o seu projeto agregador. O escritor defende sobretudo que a equanimidade entre povos e culturas, transcendendo a sua diversidade cultural, é o rumo certo na direção de uma pátria ética (idem:310) que suplante todos os impulsos essencialistas. A sua fé radica sobretudo nas potencialidades do Homem e na sua vocação aventureira e desassossegada. O elogio da viagem e da travessia erige-se, por isso, também, num tópico fundamental da sua ficção, de tal forma que todas as suas personagens empreendem longas travessias, cientes de que o confinamento a um lugar se torna atrofiador, e que a estrada traz conhecimento e riqueza interior. A frase “Ma patrie est caravane”, de Léon l’Africain (1986:s/p), é emblemática do entendimento maaloufiano de que os homens se definem por um itinerário e radica na convicção de que a desterritorialização faz estremecer alicerces culturais, desloca a perspetiva e abre pontes interculturais.
É no desassossego que atribui ao homem europeu que Maalouf ancora a esperança de que as nações saberão transcender o colapso moral em que mergulhou a civilização (2009:32) e se reinventarão, não à custa de um relativismo moral egoísta e negacionista, mas através da aposta sempre refrescada na cultura, na literatura e no ensino, que o autor erigiu, desde cedo, como portas de acesso a laços interculturais sólidos e dialogantes.
Antologia breve
« La Perse est malade (…). Il y a plusieurs médecins à son chevet, modernes, traditionnels, chacun propose ses remèdes, l’avenir est à celui qui obtiendra la guérison. Si cette révolution triomphe, les mollahs devront se transformer en démocrates ; si elle échoue, les démocrates devront se transformer en mollahs.»
in Samarcande (1988: 227)
« Contrairement à l’idée reçue, la faute séculaire des puissances européennes n’est pas d’avoir voulu imposer leurs valeurs au reste du monde, mais très exactement l’inverse : d’avoir constamment renoncé à respecter leurs propres valeurs dans leurs rapports avec les peuples dominés. Tant qu’on n’aura pas levé cette équivoque, on courra le risque de retomber dans les mêmes travers.
La première de ses valeurs, c’est l’universalité, à savoir que l’humanité est une. Diverse, mais une. De ce fait, c’est une faute impardonnable de transiger sur les principes fondamentaux sous l’éternel prétexte que les autres ne seraient pas prêts à les adopter. Il n’y a pas des droits de l’homme pour l’Europe, et d’autres droits de l’homme pour l’Afrique, l’Asie, ou pour le monde musulman.»
in Le dérèglement du monde (2009: 62-63)
« (…) Je voudrais que l’Europe donne l’exemple de la coexistence, aussi bien entre ses peuples fondateurs qu’à l’égard des immigrés qu’elle accueille ; je voudrais qu’elle se préoccupe bien plus de sa dimension culturelle, qu’elle organise bien mieux sa diversité linguistique ; je voudrais qu’elle résiste à la tentation d’être un «club» des nations chrétiennes, blanches et riches, et qu’elle ose se concevoir comme un modèle pour l’ensemble des hommes ; et je voudrais aussi qu’elle ose bâtir, sur le plan institutionnel, une seule entité démocratique, un équivalent européen des États-Unis d’Amérique, avec des États dotés d’une plus grande spécificité culturelles et qui se préoccuperaient de la défendre et de la promouvoir, mais avec des dirigeants fédéraux élus le même jour sur l’ensemble du continent, et dont l’autorité soit reconnue par tous ; oui, je m’inquiète des frilosités que je perçois, et de certaines myopies morales.
Mais ces réserves que je formule ne diminuent en rien ma foi en la valeur exemplaire du «laboratoire» que représente la construction européenne à l’étape cruciale où se trouve l’humanité.»
in Le dérèglement du monde (2009: 310-311)
Bibliografia ativa selecionada
MAALOUF, Amin (2009), Le Dérèglement du Monde, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (2006), Adriana Mater, Grasset & Fasquelle.
— (2004), Origines, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (2001), L’amour de loin, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (2000), Le Périple de Baldassare, Paris, Éditions Grasset & Fasquelle.
— (1998), Les Identités Meurtrières, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (1996), Les Echelles du Levant, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (1993), Le Rocher de Tanios, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (1992), Le Premier Siècle Après Béatrice, Paris, Grasset & Fasquelle.
— (1991), Les Jardins de Lumière, Paris, J.-C. Lattès.
— (1988), Samarcande, Paris, J.-C. Lattès.
— (1986), Léon l’Africain, Paris, J.-C.Lattès
— (1983) Les croisades vues par les arabes, Paris, Jean-Claude Lattès.
Bibliografia crítica selecionada
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DIAS, Maria José Carneiro (2009) Amin Maalouf: a literatura como mediação entre Oriente e Ocidente, tese de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 19 de dezembro de 2009.
— (2011) « Amin Maalouf: le chemin vers l’autre se fait en voyageant – l’itinéraire comme stratégie de reconfiguration identitaire », in Revista Intercâmbio, 2ª Série, nº 4, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
— (2011) “Os homens definem-se por um itinerário”: ‘a viagem como possibilidade de reconfiguração identitária em Amin Maalouf’, comunicação apresentada no colóquio “Construção de Identidades, Globalização e Fronteiras”, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 11 de novembro de 2011.
CORM, Georges (2002), Oriente Ocidente – A Fractura Imaginária, Paris, Éditions de la Découverte & Syros.
ETTE, Ottmar (2009), “ «Nos ancêtres sont nos enfants.» Les voyages à l’envers dans l’oeuvre de Amin Maalouf”, in Voyages à l’envers Segler-Messner, Silke – org., Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, pp. 125-149.
HALL, Stuart (2006), Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.
LAZURE, Stéphanie (2007), “Écrire au confluent des appartenances – Dossier de Recherche”, in L’Encyclopédie de la Création, juin 2007, Contact TV Deux Inc, www.contacttv.net.
MENDES, Ana Paula Coutinho (2000), “Representações do Outros e Identidade: um estudo de imagens na narrativa de viagem – I – Imagologia Literária: Contornos históricos e princípios metodológicos”, in Cadernos de Literatura Comparada, nº 1, Porto, Flup, pp. 93-100.
TOMLINSON, John (1999), Globalization and Culture, Paris, Polity Press.
Maria José Dias
Como citar este verbete:
DIAS, Maria José (2017), “Amin Maalouf”, in A Europa face a Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/amin-maalouf/