JOSÉ SARAMAGO

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JOSÉ SARAMAGO

(1922-2010)

Nascido no seio de uma família de camponeses de Azinhaga do Ribatejo, aldeia do concelho da Golegã, Saramago, apenas com dois anos de idade, vai viver para Lisboa, acompanhando os pais que se mudaram para a capital por razões de trabalho. A Azinhaga da sua infância, a aldeia dos avós Josefa e Jerónimo, da miséria campesina, onde “todos andavam descalços, menos os homens que usavam botas de trabalho” (1996), é o seu lar, o sítio em que habita, não obstante ter vivido ao longo da sua vida em vários lugares.

Azinhaga impregna a alma de Saramago de uma melancolia existencial, de um inconformismo com um mundo onde se assiste à degradação ética e social do indivíduo. Definindo-se como um cético profissional e pessimista, Saramago é, acima de tudo, um homo eticus (Camacho 2010) dono de uma sólida estrutura moral e em cuja obra encontramos um compromisso com o mundo em que vive. Como afirma: “Se não me interessar pelo mundo, este baterá à minha porta pedindo-me contas” (idem: 53). É este compromisso que leva o autor a refletir sobre a Europa em que vive, sobre o modo como esta se tem relacionado com o mundo, com os países da Península Ibérica, concretamente Portugal, e sobre o papel que a estes caberá numa nova ordem europeia e mundial que Saramago apresenta em jeito de utopia. É uma reflexão que encontramos dispersa em obras literárias, mas também em intervenções em conferências, em artigos que escreve e em entrevistas que concede, e que ilustram uma existência incomodada e inconformada com a Europa e o Portugal do seu tempo.

Saramago, para quem muitas revoluções se perderam por demasiada paciência (2009: 44), é um impaciente que usa a impaciência para se insurgir contra uma Europa hegemónica onde falta a solidariedade e contra uma Europa que trata Portugal e os portugueses como se estivessem no fim do mundo (1998: 247). Distanciando-se daqueles que, como ele, fazem do ofício do pensar o seu ganha pão, mas se mantêm em silêncio (1994: 103-104), Saramago crítica de um modo incómodo e sarcástico a Europa económica esvaziada de ética, para a qual “as pessoas não passam de produtores a todo o tempo dispensáveis e de consumidores obrigados a consumir mais do que necessitam” (1994: 65). Nesta Europa dominada pela economia e pelas finanças, qualquer tentativa de promover um diálogo de culturas e assim gerar uma época de paz e concórdia resulta vã (1995:106). O autor indigna-se, ainda, com a Europa política, a Europa da construção europeia, no seu entender uma” falácia de mau gosto” (1997:34), pois não pode haver uma união genuína quando existem países que mandam e países que obedecem, países do centro e países da periferia.

É às margens da Europa, mais do que à Europa, que Saramago se liga de um modo visceral, quando afirma: “Sou em primeiro lugar português, em segundo lugar ibério e em terceiro lugar, e apenas quando me apetece europeu “(2010: 42). A ligação às margens conduz o autor à idealização de uma nova ordem mundial apresentada sob a forma de alegoria na obra A Jangada de Pedra que deu origem a uma retórica hermenêutica, nem sempre partilhada pelo autor. Publicada em 1986, A Jangada de Pedra abre com a separação geográfica da Península Ibérica do continente europeu, iniciando, então, uma navegação “sempre orientada para o Atlântico Sul, onde, enfim, a ibérica ilha se detém” (1994: 38). É uma alegoria ao jeito de Saramago que encerra as linhas mestras de um pensamento geocultural decorrente da visão crítica que o autor tem acerca da Europa e do modo como esta tem tratado os povos, nomeadamente os que habitam o extremo ocidental do continente.

Na geografia cultural de Saramago a Europa não é o lugar natural da Península Ibérica. A viagem da ilha ibérica não é, por isso, vivida com tristeza por qualquer das partes: aqueles que se encontram na jangada em navegação pelo Atlântico não têm qualquer sentimento de saudade; os que ficam no continente assistem à viagem com indiferença, chegando a “insinuar que se a Península Ibérica se queria ir embora, então que fosse, o erro foi tê-la deixado entrar” (1987: 38). Com o humor que caracteriza a sua escrita, Saramago considera ter sido um engano ocorrido durante a deriva dos continentes que agarrou a Península à Europa e, por isso, a separação da jangada de pedra é a reparação natural desse erro (1983).

Na ilha ibérica, em navegação pelo Atlântico à procura do seu lugar natural, seguem os dois povos da península. O universo geocultural de Saramago procede a um rompimento com as narrativas históricas de cada um dos povos, construídas na afirmação do seu mútuo afastamento: Portugal porque o “mal” sempre veio da Espanha; Espanha por causa de um “complexo de amputação” que sempre a levou a ignorar a existência de Portugal (2001). Em Saramago encontramos um novo paradigma narrativo assente na defesa de uma unidade ibérica com base numa identidade cultural dos dois povos. Iberismo é o termo com que Saramago designa um modo de ser comum aos dois países, caracterizado por uma capacidade de sonhar, um desejo de aventura, uma atitude vital e um olhar profundo que, ao mesmo tempo que une os povos que habitam a ilha ibérica, os separa de uma Europa dominada por um espírito cartesiano e por um sentido “eminentemente prático” (1983) O povo ibérico não é um povo europeu, defende Saramago (1983). Esta proposição justifica a viagem da jangada e legitima o olhar crítico com que analisa a integração de Portugal e da Espanha na construção europeia. A onda de europeização a que Saramago assiste, ebriamente defendida por alguns, tem, no seu entender, esvaziado os espanhóis e portugueses da sua identidade cultural (1994). Num sentido oposto ao processo de europeização, o autor reforça a necessidade de afirmação da identidade cultural da unidade ibérica, na qual vê um baluarte de luta contra o modo de ser de uma europa mercantil despida de humanismo e de moral, e a precisar de uma “boa insurreição ética” (1995: 106).

A ilha ibérica termina no Atlântico Sul, algures entre a América Latina e a África, onde finalmente descobre o seu lugar natural. A alegoria mostra que é neste lugar que os países da ilha ibérica encontram afinidades culturais e históricas. É às culturas dos povos da América do Sul e às culturas dos povos de África, que Portugal e Espanha devem estar ligados e não a uma Europa que lhes é absolutamente estranha. Na gramática geocultural de Saramago, transiberismo é o termo com o que designa esta vocação para o Sul dos povos peninsulares. É uma nova ordem mundial que se configura e que reserva à Península Ibérica um novo destino: será o interlocutor privilegiado da Europa com as culturas da América Latina e da África, mas também o rebocador de uma Europa para o Sul e “para tudo o que implica o Sul, em confronto com o Norte, com a dualidade da riqueza e da pobreza, de superioridade e de inferioridade” (2001).

“No Sul está o futuro do futuro” (1986), afirmação que confere ao pensamento geocultural saramaguiano o sentido de utopia. É um mundo novo aquele que se anuncia nas obras e palavras de Saramago. Se este novo mundo nasceu de um “ressentimento histórico “(2016:105) em relação ao modo como a Europa tratou os povos da península, a sua afirmação, ainda que como utopia, não pode ser interpretada como defesa do isolacionismo e do antieuropeísmo. Saramago é um não-europeu, um homem das margens da Europa, margens que foram tratadas com desprezo e injustiça pela Europa. Mas é nestas margens que a Europa poderá encontrar a sua salvação e redenção.

 


Antologia breve

Sou um europeu cético que aprendeu tudo do seu cepticismo com uma professora chamada Europa. […]. Rejeito a denominada «construção europeia» por aquilo que vejo está a ser a constituição premeditada de um novo «sacro império germânico», com objectivos hegemónicos que só nos parecem diferentes dos do passado porque tiveram a habilidade de apresentar-se disfarçados sob roupagens de uma falsa consensualidade que finge ignorar as contradições subjacentes, as que constituem, queiramo-lo ou não, a trama em que se moveram e continuam a mover-se as raízes históricas das diversas nações da Europa. in Cadernos de Lanzarote. Diário III (1996: 50)

A relação de poder entre os diversos Estados europeus continua a ser o que sempre foi: países que mandam e países que obedecem. Que aqueles, por táctica simulem diluir a sua autoridade e o seu domínio numa aparência de consenso geral; que estes, pelo pouco que lhes restou de soberania nacional, finjam discutir de igual para igual – é algo que só pode enganar os ingénuos. O que sucede é que ninguém se atreve a dizer que a Rainha Europa vai nua.

in Cadernos de Lanzarote. Diário IV (1997:234)

Por demais sabemos que a Europa foi a madre ubérrima de culturas, farol inapagável de civilização, lugar onde, com o passar do tempo, haveria de instituir-se o modelo humano que, seguramente, mais próximo está do projeto que Deus tinha em mente quando colocou no paraíso o primeiro exemplar da espécie. Pelo menos é desta maneira idealizada que os europeus costumam ver-se no espelho de si mesmos, e essa é a servil resposta que a si mesmos invariavelmente vêm dando: «Sou eu o que de mais belo, e mais inteligente e de mais culto a Terra produziu até hoje.» Dito o que seria a altura de começar a redigir a decerto não menos longa acta dos desastres e horrores europeus, que acabaria por levar-nos à conclusão deprimente de que a famosa batalha celeste, afinal, não foi ganha por Jeová, mas por Lucifer […]. Já não falo das guerras, das invasões, dos genocídios, das eliminações selectivas, falo sim da ofensa grosseira que é, além dessa espécie de deformação congénita denominada eurocentrismo, aquele outro comportamento aberrante que consiste em ser a Europa, por assim dizer, eurocêntrica em relação a si mesma. Para os estados europeus ricos e, segundo a opinião narcísica em que se comprazem, culturalmente superiores, o resto da Europa é algo de vago e difuso, um pouco exótico, um pouco pitoresco, merecedor, quando muito, da atenção da arqueologia e da antropologia, mas onde se podem fazer alguns bons negócios.

in Saramaguiana (2016: 99-102)

A península[ibérica] parou o seu movimento de rotação, desce agora a prumo, em direcção ao sul, entre a África e a América Central   […], e a sua forma, inesperadamente para quem ainda tiver nos olhos e no mapa a antiga posição, parece gémea dos dois continentes que a ladeiam, vemos Portugal e Galiza ao norte, ocupando toda a largura, de ocidente para oriente, depois a grande massa vai-se estreitando, à esquerda ainda com a saliência de um bojo, Andaluzia e Valência, à direita a costa cantábrica e, na mesma linha, a muralha dos Pirenéus.

in A Jangada de Pedra (1987: 281)

 

Bibliografia ativa selecionada

SARAMAGO, José (2009), O Caderno. Textos escritos para blog. Setembro2008- Março 2009, 1.ª edição, Lisboa, Caminho.

— (1998), Os Apontamentos, Lisboa, Edição Círculo de Leitores.

— (1997), Cadernos de Lanzarote. Diário IV. 1.ª edição, Lisboa, Caminho.

— (1996), Cadernos de Lanzarote. Diário III. 1.ª edição, Lisboa, Caminho.

— (1995), Cadernos de Lanzarote. Diário II. 1.ª edição, Lisboa, Caminho.

— (1994), Cadernos de Lanzarote. Diário I. 1.ª edição, Lisboa, Caminho.

— (1987), A Jangada de Pedra, Lisboa, Edição Círculo de Leitores.

 

Bibliografia crítica selecionada

Saramaguiana: Meditação sobre uma Jangada, in Blimunda, n.º 55, dezembro,2016, pp 96-105. Publicado originalmente no jornal Libération.

Entrevistas:

«Saramago, el pessimista utópico», Entrevista a Juan Domínguez Lasierra, Túria, Teruel, n.º57, 2001.

«A gente na verdade habita a memória». Entrevista de José Castello. O Estado de S.Paulo, supl. Caderno 2, n.º3513, 21 de setembro de 1996.

«As fábulas políticas de Saramago». Entrevista de Norma Curi. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de janeiro, 1994.

«A ilha ibérica. Entrevista com José Saramago». Entrevista de Jordi Costa. Quimera, Barcelona, n. º59, 1986.

«A saga dos Mau-Tempo:o descobridor do Macondo português». Entrevista de Araújo Netto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de Maio de 1983.

Webibliografia:

AGUILERA, Fernando Gómez (edição selecção) (2010). “José Saramago nas suas palavras”. 1ª edição, Lisboa, Caminho.

CAMACHO, Ignacio (2010), “El Pessimista utópico”, in ABC, periódico electrónico. http://www.abc.es/20100619/opinion-colaboraciones/pesimista-utopico-20100619.html (recuperado em 22 -03-2017.

Celestina Gomes e Silva

 

Como citar este verbete:
SILVA, Celestina Gomes e (2017), “José Saramago”, in A Europa face a Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/jose-saramago/