CAMILLE DE TOLEDO

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CAMILLE DE TOLEDO

(1975-)

Autor francês polígrafo, dividindo-se essencialmente entre a literatura, as instalações plásticas e a filmografia documental ou experimental em vídeo, Camille Toledo tem dedicado uma atenção particular à questão da Europa. Em 2008, lançou-se numa polémica contra os argumentos do célebre manifesto «Pour une Littérature-monde en Français», por considerar que os seus signatários tinham-se iludido com uma bipolarização simultaneamente simplista, do ponto de vista estético, e engenhosa, do ponto de vista político. Na opinião do então jovem escritor, o problema não residia no facto de o Manifesto defender a «crioulização» e a «bastardia», mas de os seus signatários se terem deixado encantar pelas periferias do mundo, esquecendo ou subestimando a «bastardia original» da própria Europa. Daí que o autor de Visiter le Flurkistan sustentasse que, em vez de sobrevoarem as margens da Europa, os «voyageurs» da literatura–mundo deveriam ter antes mergulhado, como Claudio Magris no «nosso Flurkistan», cheio de ascendências, de registos vulgares,  de empréstimos e excepções; teriam assim (re)conhecido na própria história literária francesa os seus traços hibridez, creolização e pós-exotismo ( Toledo 2008: 53).

É contudo num livro seguinte, intitulado Le Hêtre et le Bouleau. Essai sur la Tristesse Européenne (2009) que Camille de Toledo desenvolve um ideário sobre a Europa dos sécs. XX-XXI, que a despeito do título geral, o autor sublinha não ser fruto nem de lamento, nem de nostalgia, mas antes de um gesto de recuo reflexivo que procura sair dos rituais da obsessão e da «hontologie» que invadem o continente, pois como então apontava: «L’Europe est ivre de sa mémoire, soûle de ses hontes» (Toledo 2009: 55). Utilizando uma metáfora botânica que envolve três tipos de árvores, a saber: a faia, cujo nome em francês (hêtre) remete, por homofonia, para «être», (ser) e por conseguinte para as questões metafísicas e ontológicas, a bétula e o baniano (ou figueira de bengala). A primeira delas possui uma grande tradição e nobreza na paisagem europeia, mas também causa demasiado sombra sobre aquilo que a rodeia; a segunda lembra sobretudo os sucessivos momentos de choro na Europa e, finalmente, a figueira de bengala que é a uma árvore diaspórica, cujos ramos se projectam sobre o solo para ganhar novas raízes. O escritor chama então a atenção para a necessidade de os europeus se libertarem da melancolia e da tristeza, simbolizadas pelas duas primeiras árvores referidas, e de se renovarem com outras folhas, leia-se, com outras fábulas fundadoras, aqui simbolizadas por uma árvore como a figueira de bengala que mais lembra a articulação expansiva, rizomática, teorizada por Deleuze e Guattari.

Embora reconheça ter sido também ele atingido pela tristeza, aquela que na sua opinião é a «doença da Europa», uma temática a que ainda recentemente De Toledo regressou em Les Potentiels du temps – Art et politique (Toledo 2016), este autor recusou sempre enveredar quer pelas «epopeias macabras do século XX», quer pelas associações e montagens pós-modernistas com que a elite artística europeia parece ter procurado imitar a América ou a Ásia (Le Hêtre et le Bouleau: p. 91). Assim, em vez de quedar-se na constatação de uma realidade que já não reconhece como sua, dedica-se no final do referido ensaio a apresentar um projecto em torno da tradução a que chama “ A utopia linguística ou a pedagogia da vertigem” (op.cit.: 171-208). Essa “utopia” passa pela constatação da progressiva instalação na Europa de três partidos ou castas irreconciliáveis: os nacionais nostálgicos, os eurófilos letrados e uma quantidade enorme de extra-castas, migrantes da última hora, julgados extra-europeus. (op.cit.: 190). Face a estas divisões simbólicas, a juntar a todas as outras fronteiras e muros que se têm agravado nos últimos anos, o escritor apresenta três pilares fundamentais para sustentar uma Europa outra: a defesa do plurilinguismo, a tradução e a literatura. Na sequência desse «programa» colectivo previsto para 30 anos (2010-2040), Camille de Toledo viria a fundar uma “Sociedade europeia dos Autores”, que se apresentou como uma «contra-instituição», simultaneamente um centro de pesquisa e uma rede de autores, com o propósito de construir uma plataforma de tradução multilingue, permitindo às obras literárias de atravessar as fronteiras na Europa e de fazer emergir uma identidade europeia, para lá das diferentes línguas e identidades nacionais.

No pensamento do autor de L’Hêtre et le Bouleau, quer a tradução, quer um manual de história da Europa, baseado não na perspectiva das diferentes nações, mas das passagens e das permeabilidades entre elas, fazem parte da utopia de um pensamento vertiginoso, que não se limita a recordar o passado, mas ousa também ou fundamentalmente lançar-se no futuro. De resto, pouco tempo depois, Camille de Toledo publicaria no jornal Le Monde uma “Carta aberta às jovens gerações”, no decurso da qual, além de denunciar o esvaziamento do discurso sobre a Europa, da parte dos políticos em geral, e dos burocratas em particular, rebatia também a tese central sobre a «Constituição da Europa», de J. Habermas (2011), ou seja, contrapunha às “solidariedades abstractas” daquele filósofo alemão, a necessidade de criar no espaço europeu «solidariedades concretas» que passam também pela solidariedade entre as línguas na Europa, ou seja, pela instauração de uma poética do “entre-línguas”, relativamente à qual o ídiche funciona como um exemplo do «élan» espiritual do ser europeu, por tratar-se de uma língua que, na diáspora judaica, era aprendida em paralelo com as outras línguas.

Em Oublier, trahir puis disparaître, última estação de uma trilogia europeia (Mendes, 2017), entretanto já com um prolongamento na forma de uma narrativa gráfica – Herzl, une histoire européenne (2018) – Camille de Toledo evoca a História entre duas datas simbólicas que se espelham entre si – 9.11 (1989) e 11.9 (2001) -, ou seja, o final do Muro de Berlim e os atentados de 11 de Setembro nos EUA, dois marcos fundamentais para a geopolítica europeia e mundial. Embora seja um livro que se apresenta genericamente como romance, o seu hibridismo discursivo – conjugando ensaio, poesia e ficção – vai exatamente ao encontro da apologia da transmissão (na narrativa entre um pai e seu filho, Elias),  da mistura e da vertigem que este autor francês, de origens marranas, defende constituírem o melhor testamento  poético e político para os vindouros e para a Europa, ou seja, uma força imaginativa de esperança a libertar uns e outros da convocação intoxicante do passado e do  pensamento único da catástrofe.

 

 

Antologia breve

«L’Europe est ivre de sa mémoire, soûle de ses hontes.
Incapable d’accueillir les trames nouvelles du monde, peinant à accepter la multiplicité des récits dans son  histoire, elle cherche à universaliser son ivresse. Elle voudrait que le monde entier boive ses hontes, et les bouteilles qu’elle ouvre, qu’elle sable, sont des monuments aux morts, des pierres dressées à ses morts. Elle boit à la mémoire de ses victimes, triant entre celles qu’elle s’autorise à oublier et celles dont elle veut infiniment se souvenir. Mais tandis qu’elle boit, elle ne parvient pas à saisir qu’il y a dans son ivresse quelque chose qui revient de son incurable fierté: son ivresse, c´est l’exaltation de son accablement . Elle en tire des airs supérieurs, voudrait que tous ceux qu’elle croise, qui lui demandent l’hospitalité ou se réfugient dans les trous de ses guerres, les allées de ses cimetières, à l’ombre de ses musées, boivent comme elle, les mêmes bouteilles de ses hontes.»

in Le Hêtre et le Bouleau (2009: 55-56)

 

«Qui saura dire à l’Europe qu’il ne faut plus craindre d’échapper à la tristesse, au chagrin, à la mélancolie des cimetières? Qui osera entailler cet ordre du passé dont l’antitotalitarisme a fait un engagement héroïque? Qui osera dire enfin qu’il faut, pour guérir de la hantise, non pas défendre infiniment le Devoir de Mémoire, mais reconnaître le travail proprement human de l’oubli?»

in Le Hêtre et le Bouleau (2009: 71)

 

«Depuis la Chute, je l’ai dit, nous avons vu en Europe le mouvement convergent de deux raisons monumentales : l’une tournée v ers la mémoire, la honte et la hantise du XXe siècle , donc postdramatique, et l’autre vers la consolation, la fierté et la grandeur nationales et patrimoniales, prétolitaires et prémodernes.Ce sont là deux formes du plein, de la peur duvide, deux modes de remplissage de ce qui, pourtant, dans l’intimité de notre conscience, ne devait, ne pouvait pas être comblé.»

in Le Hêtre et le Bouleau (2009: 117-118).

 

«Dans l’écologie générale de la culture europénne, la traduction est un déchet.
Elle est ce commun dont nul ne veut ni ne peut s’occuper. Comme es terrains vagues, les fôrets, l’air ou l’eau dont nous nous servons sans vouloir assumer le coût de notre langue ( la traduction) est en permanence pillé dans l’économie concurrentielle des langues européennes.»

in Le Hêtre et le Bouleau (2009: 193)

 

«J’ai laissé parler le vent qui souffle entre les montagnes.

Je n’ai pas essayé de t’expliquer : ni l’Islam,

Ni le Christ, ni la Croix, ni les vieilles haines d’Europe.

Je me suis retenu, car c’est de toi que je veux apprendre.

Ce monde a trop de passé, il lui faut un avenir, Elias.

Et si j’écris maintenant le récit de notre traversée,

Ce n’est pas pour remplir ta vie,

Mais pour vider la mienne.»

in Oublier trahir puis disparaître (2014: 73)

 

«Je ne suis ni un prêtre , ni un mormon, ni un entrepreneur, je ne suis pas assez juif pour te condamner à reconstruire un temple, ni assez chrétien pour te transmettre l’histoire de la pitié, et quand bien même serias-je tout ça, comment puis-je lutter? Que peut un père seul contre l’Amérique, contre le Japon et la Chine? Et s’il n’y a pas une tradition, un rituel, qui lui viennent de l’enfance ou des siécles passés, quelle mythologie peut-il dresser contre la séduction? Comment Elias, aurais-je pu te transmettre le goût du vent ? Quel père faut-il être? Où dois-je t’emmener?
Autour de nous: il y a la vieillesse. L’Europe des gisants.»

inOublier trahir puis disparaître (2014: 181-182)

 

 

 

Bibliografia ativa selecionada

DE TOLEDO, Camille / PAVLENKO, Alexander (2018).  Herzl: Une histoire européenne, Paris, Denoël Graphic.

DE TOLEDO, Camille (2016) Le potentiel du temps. Ar(t) politique, Paris, Manuella Editions.

— (2014). Oublier trahir puis disparaître, Paris, Seuil.

— (2012). «Europe : lettre aux nouvelles générations», Le Monde, 30 mai in https://www.lemonde.fr/europe/article/2012/05/30/europe-lettre-aux-nouvelles-generations_1709912_3214.html [consultado em 10 de novembro 2018]

— (2009), Le Hêtre et le Bouleau : Essai sur la tristesse européenne, Paris, Seuil, La Librairie du XXIe siècle.

— (2008) Visiter le Flurkistan ou les illusions de la littérature-monde, Paris, PUF.

 

Bibliografia crítica selecionada

DESHOULIÈRES, Valérie,  Kianush (2017).  “Entretien avec Camille de Toledo : ‘Il n’y a pas d’autre alternative que l’espoir’*ou comment habiter le xxie siècle ? “ in Villa Europa 7, (2017), pp. 55-69.

MENDES, Ana Paula Coutinho (2017). “La trilogie européenne de Camille de Toledo: une proposition du “vertige” pour le XXIe siècle”, Carnets: revue électronique d’études françaises, Nº de Série: IIe Nº. 11 p. 46-61.

http://toledo-archives.net/

 

 

Ana Paula Coutinho

 

Como citar este verbete:
COUTINHO, Ana Paula (2018), “Camille de Toledo”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.

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