FILIPA LEAL

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FILIPA LEAL

(1979-)

Em 2008, Filipa Leal escreve, no livro O Problema de Ser Norte, “Trazia a consciência de ser europeia (…) e de não querer escrever sobre esse assunto” (31), contudo, quatro anos depois, participa no Festival de Poesia de Berlim, colaborando com vinte e oito outros jovens autores europeus num poema em cadeia sobre a ideia de Europa e o seu futuro. Assim, em 2012, Filipa Leal descreve uma Europa cética, desconfiada, amarga, pouco inclusiva, desconectada das necessidades dos seus «filhos». Uma Europa que, segundo a autora, responde à pobreza, à devastação e à aridez com um  “relatório de contas (…) um deputado, uma cimeira”, como se lê num poema precisamente intitulado “Europa”, do livro Vem à Quinta-feira (2016: 46); uma Europa que esconde o desinteresse pelos seus cidadãos por trás de intrigas políticas e burocracias.

Segundo Filipa Leal, as novas gerações europeias querem estabilidade e uma oportunidade para trabalhar – não esmolas: “Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar” (ibidem); o que a Europa disponibiliza não está ajustado, afirma a autora, às necessidades daqueles que a suportam, não serve para suprimir as carências do século. No entanto, perante esta Europa desadequada, perdida, em crise, a mensagem não é de abandono. Em versos como “contrários ao teu gesto, / Nós não queremos disparar” (ibidem) sobressai uma esperança obstinada, um desejo de mudança e de reinvenção. Filipa Leal tece duras críticas à Europa, não com o intuito de a desconstruir, mas como uma europeia inconformada com a resignação.

Há ainda no fim do poema “Europa” uma pequena referência à temática dos migrantes, profundamente relacionada com a temática europeia (“Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos”), mas é essencialmente em “Manual de despedida para mulheres sensíveis”, de Vem à Quinta-feira (2016: 48), que Filipa Leal dá voz a um estilhaçante testemunho de impotência perante a injustiça de um futuro roubado sem justificação ao emigrante e aos seus: “e não pensar que nunca mais seremos pequenos outra vez, / cheios de Mãe e de Pai no quarto ao lado, / cheios de emprego no quarto ao lado quando ainda existia Portugal” (ibidem). Apesar das menções a Portugal e ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, a escassez de referentes no poema permite sugerir uma leitura mais geral, europeia. A verdade é que a situação evocada pelo poema não é singularmente portuguesa e podia ser transposta para qualquer país do continente. Não é sequer necessário lê-lo à luz da atualidade – não há nada que impeça o poema de ser transportado para a década de 1970, ou qualquer outro momento de emigração massiva. A universalidade do sentimento de desconcerto face a uma situação inesperada, e contudo tão familiar, ultrapassa as fronteiras do espaço e do tempo. Concentremo-nos, contudo, na experiência europeia: a permeabilidade do espaço europeu e a ubiquidade de comunidades emigrantes por todo o continente são em parte responsáveis pelo caráter repetitivo da prática de emigração (cf. “a medalha que a mãe usava sempre que partia” (ibidem, itálico meu)); o facto de o sujeito poético poder descrever um processo detalhado para esta eventualidade sugere-nos que era uma prática relativamente recorrente, mesmo dentro da sua família.

Curiosamente, e apesar do tom geral de inquietação, há no poema uma certa resignação, veiculada pelo caráter iterativo do poema, pelo facto de quase definir um manual de instruções práticas, implicando a aceitação de algo já sistematizado (cf. “dobrar-lhe as camisas, limpar-lhe as sapatilhas / (…) três pares de sapatos, um jogo de lençóis, o corta-vento, / oferecer-lhe a medalha que a Mãe usava sempre que partia” (ibidem)), como se a imigração fosse, ainda que injustamente, uma das circunstâncias da vida – acrescentamos – europeia.

Muitos dos poemas de Filipa Leal (sobre a tragédia experienciada dentro da cidade, a civilização, os prédios e as estradas, os vizinhos e os jardins de varanda) merecem ser lidos à luz da realidade europeia. “Entrevista de emprego”, de Vem à Quinta-feira (2016: 51), por exemplo, retrata a desvalorização dos licenciados em Letras no mercado de trabalho e a dificuldade em ver as suas aptidões reconhecidas como mais do que “só [saber] ler e escrever / (…) apenas o contrário de um analfabeto” (ibidem) – uma situação concorrente com a ilustrada em “Livraria Sá da Costa” (71), relativa às provações passadas por quem escreve para (sobre)viver, à precariedade da posição de escritor(a) empregado(a) e ao desprestígio do trabalho artístico: “Digo o nome dela para que saibam que é tudo verdade. / E porque a única diferença entre mim e a Nair Eleonora / é que eu ainda tenho emprego. E editora” (ibidem). Estamos perante problemas recorrentes em Portugal, na Europa e no mundo.

Em 2010, o poema “Nocturno para Varsóvia” foi selecionado para a edição polaca do projeto “Poems on the Underground”, que visa aproximar os cidadãos europeus da poesia, afixando poemas nas paredes das estações de metro. “Nocturno para Varsóvia” é pungente na ilusão que cria: começa por evocar o que o leitor supõe ser a relação entre dois amigos que não se juntam há muito tempo, a dificuldade em manter o contacto num mundo sobre-acelerado e sobre-preenchido, atos negligenciados em prol de promessas (“Gostava de te convidar para minha casa, / como aos amigos nos velhos tempos. / Abria uma garrafa de vinho e contava-te de quando era pequeno / e tu contavas-me como te corre o emprego, o amor. / Vemo-nos todos os dias e falamos tão pouco.” (2016: 55)), mas acaba por se revelar o humilde lamento de um sem-abrigo:  “Gostava de te convidar para minha casa / mas não tenho casa, vai ter de ficar para a próxima” (ibidem). Esta provocação ataca diretamente o horizonte de expetativas do leitor, obrigando-o a constatar que nem todos os cidadãos europeus possuem condições mínimas de sobrevivência. A concessão de voz a uma classe que não tem voz, que não deixa registo, nem história, para ser exibida nas paredes de uma estação de comboios europeia, é um gesto profundamente político, na aceção mais original da palavra. Notemos ainda que o sujeito poético não gostaria de ter uma casa para proveito próprio, mas para poder acolher outros, alimentar outros, aliviar outros. Ainda assim, em todos estes poemas que criticam a situação europeia, apontando desigualdades, desumanidades, falhas, há uma corrente constante de esperança (cf. “vai ter de ficar para a próxima”, ibidem).

É muito difícil não reagir ao tom de prenúncio dos dois últimos versos de “Escrever depois da segunda guerra” (também publicado em Vem à Quinta-feira), numa altura em que o crescimento na vocalização do discurso de extrema direita na Europa parece afirmar-se mais conspicuamente – “À terceira / é de vez” (56). Quando Filipa Leal escreve: “O Senhor Adolfo não é uma personagem do Gonçalo M. Tavares. O Senhor Adorno também não”, lembra que as circunstâncias que promoveram a II Guerra Mundial não são eventos imaginários e distantes, narrados num livro, mas episódios reais que entram pela porta dentro (“Eu só cá vim trazer um recado do Senhor Adolfo para o Senhor Adorno que encontrei no chão da cozinha” (ibidem)). O tom artificial que a autora adota com a rima isolada a meio desta prosa poética (“Eu não venho aqui para contar historinhas. Eu não venho aqui para fazer metáforas minhas”) e todo o imaginário pseudo-infantil evocado pelo poema chocam estranhamente com a seriedade do conteúdo – sugere-se a dificuldade em encontrar um tom adequado a estas temáticas, a potencial desadequação da poesia (de novo: “Trazia a consciência de ser europeia (…) e de não querer escrever sobre esse assunto”), contudo, tal como em “Europa”, sobressai a vontade de resistir. Filipa Leal deixa um aviso; há esperança – não uma esperança cega, antes uma expetativa aguçadamente atenta.

Em 2004, com Talvez os Lírios Compreendam, Filipa Leal tinha já avançado uma ideia central da sua visão de Europa, a ideia de cidade-língua/país-língua: Varsóvia não é Varsóvia e o Porto não é o Porto, espaços físicos delimitados pelas suas fronteiras, mas sim entidades herdeiras da evolução das suas culturas e das suas línguas: “Porque Varsóvia não é uma cidade. / Agora sei. / É uma Língua inacessível” (2004: 69); “Não posso escrever-te desta cidade à beira-mar. / Não posso escrever-te porque esta é uma cidade língua inacessível, / como a língua-cidade que habitas. / Não posso escrever-te porque não compreenderias / a madrugada de língua portuguesa, nesta varanda atlântica” (70). A Europa é possível, conclui Filipa Leal, porque há uma história e uma cultura partilhadas, porque a matéria que constitui as suas cidades se mistura e enriquece, porque os seus cidadãos se reconhecem uns aos outros e às suas vivências: “E sei que sabes este travo marinho de cor, / como eu sei o teu caminho nostálgico no gueto / de qualquer lugar” (ibidem). Filipa Leal descreve a sua cidade, o Porto, como uma qualquer cidade europeia, as suas vivências como as de qualquer cidadão deste continente, as suas preocupações e dificuldades e alegrias e desgostos como transversais à cultura em que se insere e em que se reconhece: europeia.

 

 

Antologia breve

Europa

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno

E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?

É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.

Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.

Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,

Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.

Tu disparas contra a luz.

Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.

Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.

Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.

Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.

Há tantos meses que não chove – reparaste?

A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.

Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.

Quem deve. Quem empresta. Quem paga.

 

Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.

Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.

Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.

Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,

Nós não queremos disparar.

in Vem à Quinta-feira (2016: 46)

 

Manual de despedida para mulheres sensíveis

Ser digna na partida, na despedida, dizer adeus com jeito,

não chorar para não enfraquecer o emigrante,

mesmo que o emigrante seja o nosso irmão mais novo,

dobrar-lhe as camisas, limpar-lhe as sapatilhas

com um pano húmido, ajudá-lo a pesar a mala

que não pode levar mais de vinte quilos

(quanto pesará o coração dele? e o meu?),

três pares de sapatos, um jogo de lençóis, o corta-vento,

oferecer-lhe a medalha que a Mãe usava sempre que partia

e que talvez não tenha usado quando partiu para sempre,

ter passado o dia à procura da medalha pela casa toda

(ninguém sai mais daqui sem a medalha, ninguém sai mais daqui),

pensar que a data escolhida para partir é a da morte da Mãe,

pensar que a Mãe não está comigo para lhe dobrar as camisas

e mesmo assim não chorar, nunca chorar,

mesmo que o Pai esteja a chorar, mesmo que estejam todos a chorar,

tomar umas merdas, se for preciso: uns calmantes, uns relaxantes,

uns antioxidantes para não chorar; andar a pé para não chorar,

apanhar sol para não chorar, jantar fora para não chorar, conhecer gente,

mas gente animada, pintar o cabelo e esconder as brancas,

que os grisalhos são mais chorões, dizer graças para não pôr também

os amigos a chorar, os amigos gostam é de nós a rir, ver séries cómicas

até cair, acordar mais cedo para lhe fazer torradas antes da viagem,

com manteiga, com doce de mirtilo, com tudo o que houver no frigorífico,

e não pensar que nunca mais seremos pequenos outra vez,

cheios de Mãe e de Pai no quarto ao lado,

cheios de emprego no quarto ao lado quando ainda existia Portugal.

 

É tanto o que se pede a um ser humano do século vinte e um.

Que morra de medo e de saudade no aeroporto Francisco Sá Carneiro.

Mas que não chore.

in Vem à Quinta-feira (2016: 48)

 

Nocturno para Varsóvia

Gostava de te convidar para minha casa,

como aos amigos nos velhos tempos.

Abria uma garrafa de vinho e contava-te de quando era pequeno

e tu contavas-me como te corre o emprego, o amor.

Vemo-nos todos os dias e falamos tão pouco.

Estendo-te a mão e às vezes dás-me uma moeda,

mas falamos tão pouco.

Gostava de te convidar para minha casa

mas não tenho casa, vai ter de ficar para a próxima.

in Vem à Quinta-feira (2016: 55)

 

Bibliografia ativa selecionada

LEAL, Filipa (2016), Vem à Quinta-feira, Porto, Assírio & Alvim.

— (2008), O Problema de Ser Norte, Porto, Deriva.

— (2004), Talvez os Lírios Compreendam, [Porto], Fundação Ciência e Desenvolvimento.

 

 

 

Ana Cunha

Como citar este verbete:
CUNHA, Ana (2018), “Filipa Leal”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.

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