(1937- )
Nas décadas de 1960 e 70, Dumitru Tsepeneag, romancista e tradutor franco-romeno de língua romena e francesa – traduziu, de facto, para romeno autores tão importantes como Malraux, Nerval, Derrida, Blanchot, ou ainda os escritores do “Nouveau Roman” francês Pinget et Robbe-Grillet – é o líder do movimento estético onirista que se opõe ao realismo socialista oficial vigente na república da Roménia. Em 1975, a crítica do regime autoritário e do culto da personalidade sob o reinado de Nicolae Ceaușescu vale-lhe a perda da nacionalidade romena assim como o exílio em Paris. Obtém a nacionalidade francesa em 1984, numa altura em que se pôs a escrever e publicar diretamente em francês sem, no entanto, deixar o romeno.
Numa perspetiva de cruzamento e de intercâmbio estéticos e críticos, funda e dirige os Cahiers de l’Est (1975-1980), e em seguida, após a queda do clã Ceaușescu em 1989, os Nouveaux Cahiers de l’Est (1991-1992), ou ainda Seine et Danube (2003-2005). Em 2008, Dumitru Tsepeneag recebeu o Prémio da União latina de literaturas românicas.
Autor de uma imponente obra ficcional e crítica, Dumitru Tsepeneag reata com a língua romena e com a evocação da realidade da Roménia após a revolução de 1989-90, que acarreta o fim trágico do regime do Conducator, e após a queda do Muro de Berlim, que representa uma nova era geopolítica e geo-simbólica para o continente europeu. Assim, os romances publicados nessa época – nomeadamente a trilogia da Europa pós-comunista formada por Hôtel Europa (1996), Pont des Arts (1997) e Au pays du Maramures (2001) – prosseguem o trabalho estético e literário empreendido sob o signo do onirismo e do textualismo que caraterizaram os anos 1970 em França, mas com um subtil toque realista inspirado pelos acontecimentos da história contemporânea, nomeadamente a emergência de uma Europa pós-comunista na esteira da perestroika gorbatcheviana.
É assim que em Hôtel Europa – admiravelmente traduzido para francês por Alain Paruit – deparamos com uma narrativa cujas componentes o autor expõe numa mise en abyme (vai escrevendo um romance nunca acabado (1996: 50, 88-89, 357)) e cujas personagens e explosão da intriga ele confessa não controlar: “(…). Dispersaram-se todos como um voo de perdizes. Não quero estar sempre vigilante. Há uns que vou perdendo de vista (…). Cá está o público de que gosto! Dotado de sentido de humor e que não se identifica estupidamente com esta ou aquela personagem, a ponto de temer o que lhe possa acontecer” (345).
Em pano de fundo, a narrativa evoca o contexto conturbado da Roménia logo a seguir à revolução que, em 1989, a partir de Timişoara e até Bucareste, vai levar à queda do clã do Génio dos Cárpatos, mas também às represálias da polícia política de Ceaușescu, a temível Securitate, e aos trágicos tumultos da universidade de Bucareste em que a investida dos mineiros esmaga a exigência estudantil de uma limpeza política dos antigos membros do Partido Comunista, numa sociedade em que uma parte considerável da população dependia do Partido e colaborava com o sistema de uma ou de outra forma:
Ion sabia que circulava todo o tipo de boatos a propósito dos acontecimentos de Timişoara, mas, como não tinha um feitio crédulo, dizia para si mesmo que o alarmismo e a excitação que tomaram conta de todos, nesses dias, ainda não os autorizavam a falar do que se poderia chamar, usando um termo um pouco pomposo, uma revolução (16);
Quanto ao P.C.R. e aos seus perto de quatro milhões de membros, já não se ouve falar neles. Um pouco de paciência… Primeiros nas barricadas para derrubar o ditador, os estudantes são igualmente os primeiros a lançar-se na contestação ao novo regime. Aquando de um comício que teve lugar ontem em Bucareste, levantaram abertamente a questão da representatividade do poder… (53).
Ora estes acontecimentos dramáticos têm como consequência um importante fluxo migratório rumo ao centro e ao norte da Europa, nomeadamente para França e para a Alemanha, o que permite às personagens Ion, Mihai, Gică, Marianne, Haiducu, Silvia, Fuhrmann, entre muitas outras, aliás totalmente aleatórias, evoluírem pelos trilhos do Velho Continente, reiteradamente evocado num mapa variável: “Regresso de fazer as compras, e passo diante da Europa pendurada na parede, mais abaixo” (288). Essa excursão europeia vê-se metaforizada através da estadia em diferentes hotéis invariavelmente designados por “Hotel Europa”, os quais dão o nome à narrativa.
Aliás, Hotel Europa afigura-se um romance eminente e explicitamente “europeu” pelo cenário e pelas referências diegéticas, seno que aponta para uma reflexão profunda sobre a construção pós-comunista do continente. Simbolicamente, a cidade-fronteira de Estrasburgo, onde os romenos Ion et Gică vão hospedar-se antes de irem para Paris, assume uma carga metafórica enquanto capital da “grande Europa” (300).
Antologia breve
E já estávamos a chegar à fronteira búlgara. Simpáticos ou negligentes, os agentes aduaneiros sérvios não nos pediram nada. No fundo, estávamos a deixar o seu território, boa viagem! Quanto aos agentes aduaneiros búlgaros, ficaram contentíssimos ao saberem que um francês tinha sido vítima de roubo na Jugoslávia. – Sérvios, todos ladrões, disse em francês um polícia búlgaro. Não o contestei, não queria acrescentar que a empregada de mesa era croata. Aliás nem sabia ao certo se era croata, sérvia, macedónia, bósnia, montenegrina ou talvez romena. Há tantos romenos na Jugoslávia. Mas também húngaros, checos, eslovacos, eslovenos, turcos, búlgaros, albaneses, ciganos, italianos. A minha enumeração parecia atordoar o dr. Gachet, ao passo que Roger, o motorista, dava uma risada, nem sei bem porquê. Achava provavelmente engraçado haver tantas nacionalidades na Europa.
in Hôtel Europa (1996: 36-37)
Como era grande! Se a olhássemos sem nos afastarmos demais das muralhas, ficávamos tomados de vertigem e de medo: parecia que essa enorme massa de pedra ameaçava desmoronar-se. Ion sentia-se pequeno e miserável. Um verme. Doíam-lhe a nuca e os olhos. Desviou o olhar. No passeio oposto à catedral, as lojas e as bancas de artigos para turistas, as cores estridentes, um colorido de papagaio, que pareciam descer todas ao mesmo tempo das bandeiras da Comunidade europeia com a força desta última, efémera e mesquinha, devolveram-no à realidade. Que é como quem diz, ao irrisório. A humildade foi substituída, ao menos em parte, por um sentimento de nojo e de desprezo. Era a primeira vez que ele se atrevia a nomear esse sentimento. Isso mesmo, desprezo! Nem podia chamar-lhe outra coisa. Nem sequer deceção. Esta tinha provavelmente sustentado, alimentado o desprezo. Aí, em Estrasburgo, na capital da grande Europa, Ion apercebeu-se com surpresa que desprezava essa sociedade de consumo assente numa riqueza brilhante, recente, provisória. Expressa por objetos miúdos, insignificantes e agressivos como um enxame de mosquitos comparado com a riqueza maciça e calma da catedral – verdadeira riqueza dessa terra!
Eis em suma o que Ion havia de escrever alguns dias mais tarde a Fuhrmann. A sinceridade do tom e algumas invenções estilísticas haviam de suscitar a benevolência divertida do velho alemão. Mais duas ou três críticas ecologistas, e este último teria vontade de responder – mas onde? – para felicitá-lo ou incentivá-lo: também é culpa nossa (de todos?) se a Europa chegou ao que chegou, havia ele de responder. Seja como for, não temos outra, e aliás fora dela ainda é pior…
in Hôtel Europa (1996: 300)
Será que a língua se degrada? como afirmam os velhos emigrados que, ao terem perdido o contacto com Gică e seus apoiantes, os escritores da treta, se sentem postos em causa, quando não excluídos, isto é, tais como são: exilados. Pois o verdadeiro exílio é o exílio linguístico, o resto pode ser considerado como uma viagem prolongada pela Europa, pelo mundo. Embora digam, eles, os emigrados, cheios de orgulho pomposo, “a minha pátria, é a língua romena”, o romeno continua por lá, tal como o resto, longe…
Como saber de forma segura, essencialmente aqui, em Estrasburgo, se Gică estropia a língua ou, se pelo contrário, a enriquece? Após a sua instalação no antigo hotel para animais de companhia, um dos colegas de Gică pôs-se com um spray de tinta preta ou vermelha a escrever HOTEL EUROPA nas paredes todas. Ao contar isso a Ion, Gică não estava a ser forçosamente irónico.
– A Europa é de todos nós! exclamou, e nesse momento, uma personagem que entrava precisamente no café aproximou-se da mesa e disse-lhes, igualmente em romeno:
– Rico assunto, esse!
in Hôtel Europa (1996: 319)
Bibliografia ativa selecionada
TSEPENEAG, Dumitru (1996), Hôtel Europa, Paris, P.O.L [Tradução francesa].
Bibliografia crítica selecionada
BUCIU, Marian Victor (1998), Țepeneag între onirism, textualism, postmodernism, Craiova, Aius.
GYURCSIK, Margareta (2017), “Rire de l’Europe dans les romans de Dumitru Tsepeneag” in Alastair B. Duncan e Anne Chamayou (orgs.), Rire en Europe, Perpignan, PUP, 83-94.
PAVEL, Laura (2011), Dumitru Tsepeneag and the Canon of Alternative Literature, translated by Alistair Ian Blyth, Champaign & Dublin & London, Dalkey Archive Press.
José Domingues de Almeida
Como citar este verbete:
ALMEIDA, José Domingues de (2018), “Dumitru Tsepeneag”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/dumitru-tsepeneag-2/