ALBERTO PIMENTA

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ALBERTO PIMENTA

(1937- )

Mais do que um poeta português, Alberto Pimenta é, desde cedo, um poeta da Europa. É ainda um poeta cujo conhecimento linguístico, cultural e até mitológico do continente no seu todo e de alguns dos seus países singularmente lhe permite adotar um posicionamento poético-político não só questionador, quanto antecipador dos destinos europeus. Se durante muitos anos este poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, performer, figura televisiva de “Arte de ser Português” esteve votado à marginalidade, a tendência tem sido – embora sem acomodação do autor – para um crescente interesse na leitura e estudo da sua obra. Falar de Alberto Pimenta é falar de política e de crítica aos poderes instituídos, como a Igreja, o Estado, o capitalismo. E a Europa, ou mais propriamente a União Europeia, não poderia sair impune, estando frequentemente presente ao longo da sua obra quer de modo mais elegíaco, quer mais analítico ou premonitório.

Pimenta vai para Heidelberg (Alemanha) em 1960 como leitor de língua portuguesa ao serviço do Estado português. É, no entanto, despedido três anos depois devido à sua forte oposição ao regime fascista, sendo, porém, contratado pela própria universidade de Heidelberg, onde fica até 1976. São dezasseis anos fora de Portugal, afastado da ditadura e do país, para voltar apenas dois anos após a revolução de 25 de abril de 1974. O seu primeiro livro de ensaios, O Silêncio dos Poetas (1978) é publicado inicialmente em italiano, com o título In Modo Di-verso (1983), em Salerno; Adan (1984) é publicado em Espanha; Verdichtungen (1997), em Viena. O Discurso sobre o Filho-da-Puta é traduzido para espanhol, francês e italiano.

A propósito de títulos, a “Homilíada de Joyce” (em Joyciana, com Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro e António Aragão) dialoga quer com Joyce, quer com a tradição de epopeias clássicas. Em 1986, a sua segunda antologia – Metamorfoses do Vídeo – remete diretamente para a obra Metamorfoses, de Ovídio, e, em 2006, o título Imitação de Ovídio volta a dialogar com o autor clássico. Em toda a sua obra, quer nos momentos mais humorísticos, quer em momentos mais elegíacos – como Marthya de Abdel Amid (2005) ou Indulgência Plenária (2007) –, as referências às mitologias grega e romana (mas também finlandesa e alemã) são constantes e sintoma de que Alberto Pimenta nunca deixou de ser um poeta da Europa, no que toca às referências interculturais que povoam o universo da sua escrita. A presença destas referências é bastante clara no sentido em que é transversal e constante a toda a obra de Pimenta.

Quando, porém, a Europa invade crítica e politicamente o plano da temática, a perspetiva do poeta raramente é idílica. Pelo contrário, nota-se uma visão desencantada, que começa por ser satirizante e fazer uso de um humor cáustico, nomeadamente na viragem de milénio e na adoção da moeda única, mas que vai escurecendo, tornando-se melancólica, numa postura talvez mais revoltada por um destino que já se parecia adivinhar em livros anteriores e que veio a confirmar-se e intensificar-se. Já em 1977, em Ascensão de Dez Gostos à Boca, podemos ler no pequeno poema “Les polichinelles”: “lado a lado / os dois chefes de estado / posam para o futuro / com um gesto do passado” (1977: 30). Toda a lógica daqui para a frente parece ser esta: uma repetição da história, no que Pimenta chama o IV Reich, mas desta feita com outro tipo de formalidades encapotadas, estratégias de uma diferente sociedade de controlo, mais dedicada a impulsos positivos, a slogans políticos eufóricos que roçam o discurso publicitário. No livro IV de Ouros (1992), o poema “Nas esplanadas do Chiado” traz um discurso quase homilíaco por uma nova Europa que se avizinha: “A delegação da pastoral do Turismo acaba de publicar o livrinho «Rotas da Fé». Recomendo que sigais alguma destas rotas, para poder rezar conscientemente pela construção da Europa da fraternidade dos povos” (idem: 37).

Em 1998, ano anterior à inserção do euro no mercado financeiro, o livro As Moscas de Pégaso traz um poema curto, mas cáustico sobre uma Europa do euro que parece já adivinhar-se intolerante e uniformizada: “falemos antes do Euro: / porque há quem não trabalhe / tanto quanto lhe competia” (1998: 27). No mesmo ano, é publicado Ainda Há Muito para Fazer, um dos longos livros-poema de Alberto Pimenta, no qual são constantes as referências à União Europeia, à moeda única, ao Banco Europeu, ao repetitivo discurso financeiro oficial pejado de expressões vazias, clichés e estrangeirismos que Pimenta subverte com manobras linguísticas satirizantes tão comuns na sua obra:

claro que o contributo

da moeda única

para um espaço integrado

onde há que gerir

défices de desenvolvimento

vai promover mais clareza

no grau de solução

isto é de liquidez

e profundidade

das relações

 

[…] deve haver também

um atento outplacement

depois do incontornável outsourcing

por downsizing

isto hoje

em democracia

é normal. (idem: 19)

Em 2000, dois anos antes de o euro entrar em circulação, mais um longo livro-poema, desta feita intitulado Ode Pós-Moderna, vem arrasar os discursos eufóricos em torno da moeda única, trazendo já uma visão pessimista sobre a nova Europa em preparação. Logo no aspeto gráfico, encontramos na capa o símbolo da moeda (€) e todos os números de página são circundados pelas estrelas da União Europeia. O discurso é significativamente mais disfórico, e o final do livro não deixa espaço para dúvidas: “estabelecimento / aberto também aos domingos / navio calafetado / sem mais interpretações / a caminho do seu iceberg / lugar sem fronteiras / portanto / sem mais nenhuma possibilidade de fuga” (2000: 57).

Daí para a frente, se a visão da Europa era já de si desencantada, o discurso transparece cada vez mais essa imagem, com menos humor, menos sátira, mais clareza e um tom talvez mais elegíaco. Em Prodigioso Acanto (2008), conta-se uma história da Europa através dos seus grandes edifícios e monumentos, ou melhor, conta-se a história oculta dos trabalhadores e prisioneiros que morreram a construí-los (um pouco ao estilo de Brecht), repetindo o “não / aqui não há nada para cantar / só guerras / desencantos / desencontros” (2008: 31). Já em De Nada (2012), fala-se de gestos bárbaros e de um labirinto vazio (sem Apolo, Orfeu, Prometeu, Dédalo, Minotauro), uma Europa que vai perdendo as suas referências para se lembrar e repetir apenas o pior de si. No mesmo livro diz-se: “moeda única / chama-se esporra / […] / a oferta de trabalhadores / torna o trabalho barato / permite progresso e / crescimento” (2012: 30).

Ainda mais recentemente, o livro Nove Fabulo, o Mea Vox / De Novo Falo, a Meia Voz (2016), por entre tanto cansaço dito a meia-voz, traz um poema absolutamente demolidor – “Entre o Norte e a Morte” –, sobre a Europa das fronteiras, dos refugiados, da morte sem rosto nem nome, das não-pessoas, de “nós e os outros”, terminando com “Isso é depois, / primeiro é sempre o ouro. / Depois é que é o euro / e então a morte” (2016: 57).

É assim a Europa vista por Alberto Pimenta. Uma Europa que se esquece da história, uma Europa dos números acima das pessoas e da dignidade, do calculismo acima da abertura e da honestidade, do ódio acima da fraternidade, do medo acima da coragem de construir em comum. Ou, como diria o autor em As Moscas de Pégaso, “mais fácil / do que Hitler pensava” (1998: 27)?

 

Lista de poemas sobre a Europa

“Les pollichineles”, Ascensão de Dez Gostos à Boca (1977)

“Nas esplanadas do Chiado”, IV de Ouros (1992)

Ainda há Muito Para Fazer (1998)

“Dia Mundial da Bexiga…”, As Moscas de Pégaso (1998)

Ode Pós-Moderna (2000)

Prodigioso Acanto (2008)

“7”, De Nada (2012)

“Entre a Morte e o Norte”, Nove Fabulo, o Mea Vox / De Novo Falo, a Meia Voz (2016)

 

Antologia breve

1

(…)

Ao escrever o Deus vos Guarde deste ano, vejo no horizonte o ano de 1993, no qual entrará em vigor a Acta Única Europeia.

(…)

Temos a consciência de que somos protagonistas duns anos que hão-de marcar profundamente a história. Até este momento, os grandes projectos da Comunidade têm tido como motor principal a economia.

(…)

Quando se trata de regular os direitos e os deveres dos Estados é a dinâmica económica que dá o tom. As instâncias políticas, de momento, têm menos peso, assim como as culturais.

(…)

E as relações humanas? As relações humanas não podem regular-se por uma Acta e, no entanto, estão na base de tudo. Mal de nós se tudo se limitasse a uma base estrutural.

(…)

Conscientes de que à nossa geração cabe ser co-fundadora duma nova Europa, sejamo-lo com responsabilidade cristã.

(…)

A delegação da pastoral do Turismo acaba de publicar o livrinho «Rotas da Fé». Recomendo que sigais alguma destas rotas, para poder rezar conscientemente pela construção da Europa da fraternidade dos povos.

in IV de Ouros (1992: 28-37)

 

2

“[…] já muita gente

em vez do aperto de mão

virtual

tem ficado com a cabeça rachada

ou em vistosa agonia

ao bater à sua antiga porta

onde agora moram

os escolhidos do

IV REICH

também conhecido cabalisticamente por

EUROPA

 

sempre os Impérios

tiveram

os seus escolhidos

cavalheiros, aristocratas, gente de bem…

mas nunca pretenderam

como agora

negá-lo ou ocultá-lo

atrás das duplicações da própria bebedeira […]”

in Ainda há Muito Para Fazer (1998: 81)

 

3

dia mundial da bexiga             ah! que engraçado

dia mundial do sabão              oh! é bom

dia mundial do aborto             ih! ih!

dia mundial do cancro             uf! essa…

dia mundial do ouro                oh não, por favor! nojentos…

falemos antes do Euro:

porque há quem não trabalhe

tanto quanto lhe competia.

esses

alguma vez terão de começar

a assumir as suas dívidas,

isto é, o Euro.

 

mais fácil

do que Hitler pensava.

in As Moscas de Pégaso (1998: 27)

 

4

se continuarem

estes gestos bárbaros

este pão vazio

este labirinto

sem Apolo e Orfeu

nem Prometeu

nem ao menos

Dédalo e o Minotauro

só este labirinto vazio

 

se não houver outro remédio

a solução é capaz de ser

a granada

uma pedra bem bonita

e dizem

os livros antigos

que se trocam pedras destas

antes da despedida

 

ou na falta dela

o tijolo de César

 

ele continua aí

in De Nada (2012: 97)

 

Bibliografia ativa selecionada

PIMENTA, Alberto (2016), Nove Fabulo o Mea Vox / De Novo Falo, a Meia Voz, Lisboa, Pianola.

— (2012), De Nada, Lisboa, Boca.

— (2008), Prodigioso Acanto, Lisboa, &etc.

— (2000), Ode Pós-Moderna, Lisboa, &etc.

— (1998a), As Moscas de Pégaso, Lisboa, &etc.

— (1998b), Ainda Há Muito Para Fazer, Lisboa, &etc.

— (1992), IV de Ouros, Lisboa, Fenda.

— (1977), Ascensão de Dez Gostos à Boca, Edição de autor.

 

Leonor Figueiredo

 

Como citar este verbete:
FIGUEIREDO, Leonor (2018), “Alberto Pimenta”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/alberto-pimenta/