FERNANDO NAMORA

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FERNANDO NAMORA

(1919-1989)

Fernando Gonçalves Namora nasceu em Condeixa-a-Nova. A sua bibliografia possui cerca de três dezenas de títulos divididos em romance, poesia, novela, narrativas, biografias, crónicas e cadernos de um escritor. Foi distinguido com inúmeros prémios literários e traduções em diferentes línguas e países. Hoje figura ao lado dos melhores romancistas do neorrealismo português, apesar de ter abraçado o romance existencial a partir de Cidade Solitária (1959) e, sobretudo, de Domingo à Tarde (1961). Dostoievski, Tolstoi, Huxley, Sartre, Camus e, em especial, Malraux, são as principais vozes europeias que se escutam no romance e ensaio de Namora. A crónica romanceada Diálogo em Setembro (1966) inaugura a fase do escritor viageiro que marca não só a sua bibliografia mas também a literatura de viagens em língua portuguesa da segunda metade do século XX. Para Eduardo Lourenço, aliás, este livro é “o monumento acabado da nossa fascinação secular de provinciais em face da Europa e da sua superação em termos de convívio aberto e adulto.” (1978: 200). Porque o “encontro com os outros é o verdadeiro encontro connosco.” (idem: 201). Enquanto José Manuel Mendes observa nele “o instituir de um ciclo em que se operam, consequência ou não da crescente imagem internacional de Namora, tanto a procura de espaços geográfico-civilizacionais até então por si indesvendados e o que tal acarreta de questionamento, comparatividade, inquirição em torno dos enigmas, dos sentidos da existência, como a acareação do auctor (…) e os seus limites e insolvências, os seus desígnios.” (2004: 17).

A viagem inaugural de Namora ao estrangeiro ocorre em 1952, quando visita a Bélgica, a França e, particularmente, a Holanda do seu imaginário juvenil (o primeiro livro lido na infância, fora dos compêndios escolares, foi precisamente A Holanda de Ramalho Ortigão). Seguem-se outros países europeus e de outros continentes, embora são os primeiros que lhe merecem o maior número de textos.

Para o autor de Casa da Malta: “o que interessa apreciar lá fora é o que, de válido, acontece de diferente em relação a nós, o que nos pode incitar a uma viragem de perspectiva, a um renovo de confiança e de diligência, ainda que esse estímulo tenha de obrar contra a vaga alta de uma maioria que aceitou a renúncia.” (1969: 193). O diálogo com os escritores e editores de outros países da Europa surge igualmente, com frequência, nestas crónicas. O mesmo sucedendo com a diáspora portuguesa espalhada pelo continente europeu. Num elétrico que atravessa Genebra descobre, por exemplo, quatro jovens emigrantes “que têm escrito na cara a sua identidade lusitana.” (1969: 406). E continua: “Encontramo-los, aos milhares, por esse mundo fora, na força da vida, duros e estóicos, cerne de uma nação que se dá ao luxo de os dispensar. Na rua, num metro, nos andaimes de um prédio – onde quer que se nos deparem –, há sempre qualquer coisa que os denuncia.” (idem: 406-407). Na perspetiva de Mário Sacramento, Diálogo de Setembro prossegue, aliás, os caminhos da escrita dos nossos “escritores emigrantes ou ‘estrangeirados’ do período iluminista (e em especial o Cavaleiro de Oliveira)” (s.d.: 179).

O tema dos Encontros de Genebra de 1965, “o robot, a besta e o homem – para uma definição do humano” (1969: 20), revela o interesse dos organizadores na reflexão sobre o que separa sobretudo o homem da máquina pois, como afirma o escritor português, perante “os elementos fornecidos pela máquina e perante os serviços que ela nos presta, o comportamento humano terá de modificar-se.” (1969: 109).

Fernando Namora não assistiu à queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989 (deixou-nos no início desse ano), pelo que a Europa que questiona e descreve mantém-se nas fronteiras que resultaram da II Guerra Mundial e, consequentemente, da chamada Guerra Fria. Nas suas crónicas de viagem são várias as referências ao regime político dos países do chamado Bloco de Leste. Deste modo, apesar da “austeridade melancólica” (1979: 35) de Berlim-Leste, não deixa de elogiar a cidade e os seus habitantes, “formigueiro laborioso, que não pretende ser cartaz de coisa nenhuma e prescinde da superficial cortina de fumo da abundância.” (ibidem). Entende, assim, que Berlim-Leste “sabe o que pode possuir e exibir actualmente, mas sabe também o que possuirá amanhã; por isso, rasga largas avenidas, com soluções de tráfego para as viaturas que um dia distribuirá pelos seus habitantes (prevê-se um carro por cada três pessoas), multiplica hotéis, escritórios, alojamentos, teatros e grandes armazéns, empina restaurantes a 210 metros de altura” (idem: 35-36). Ora, o desenvolvimento em questão só acontecerá, ironicamente, após a queda do muro de Berlim e a consequente reunificação da Alemanha.

Numa outra crónica deste livro, analisa e descreve a Finlândia como “um país já alheio à Europa” (idem: 120), surpreendendo-o de forma muito positiva a ligação que os finlandeses mantêm com a natureza e a cultura, destacando, em concreto, os índices de leitura de uma população com cerca de 4,5 milhões de habitantes, mas com sensivelmente 3000 bibliotecas públicas que “absorvem boa maquia da produção editorial.” (idem: 164). E releva o facto de uma “boa percentagem” (idem: 152) do seu operariado ser constituído por mulheres. Como releva o dinamismo da mulher russa no trabalho (vd. 1986: 97). A “doença da felicidade” dos escandinavos assoma, entretanto, em Os Adoradores do Sol, onde traça um hábil diagnóstico sobre a abastança e o enfado nórdicos.

O autor de Sentados na Relva regressará à Finlândia, em 1979, para participar nas Reuniões Internacionais de escritores, em Mukkula, perto da cidade de Lahti. Os problemas colocados pela tradução e a existência ou não, nos países comunistas, de uma ditadura ou “novo terror”, como lhe chama Bernard-Henri Lévy, um dos nomes mais sonantes deste encontro, são exaustivamente debatidos nestas reuniões que tiveram como tema “A literatura como linguagem universal”.

Fernando Namora, como Eduardo Lourenço, situa a França no centro da História da Europa: “Diz-se que, quando a França adoece, a Europa tem febre, ao que se poderá acrescentar: quando a França se agita, o mundo alerta-se. Por isso, talvez, o brado [do Maio de 68] teve um eco mais amplo e as suas ressonâncias serão mais decisivas. Como em 1789.” (1979:179).

A Europa dos hippies, do Maio de 68, dos provos (grupo rebelde de jovens, nascido em Amesterdão, que tem a raiz do nome “no vocábulo correspondente a provocação” – 1974: 79) e da droga é tão causticada por Fernando Namora como a sociedade de consumo “sem outro fim que o lucro, sem outro alvo que a dominação e o privilégio” (idem: 83). Essa Europa, bem como a da arte enquanto mero divertimento, colide, pois, com o humanismo de Fernando Namora, erguido sobre os valores cristãos que se cruzam com a família, a solidariedade e a incessante procura do diálogo com o outro. Humanismo que nunca abdicou do “reino de sonho” (1974: 120) construído, um dia, por aquele miúdo de província, nas páginas do livro A Holanda de Ramalho Ortigão, e que acreditou sempre no reino do Homem, sem Deus nem deuses para redimir ou condenar a sua passagem pela Terra.


Antologia breve

“Paisagem [suíça] prevista, tão diversa da nossa Ibéria! Em Espanha, por exemplo, a paisagem é uma explosão. Seja a nudez, seja a opulência, tudo é súbito e violento. Tudo se inunda de uma glória sangrenta. Às vezes, é um berro triunfal, e todo o mundo o escuta; outras, uma alegria patética, que, do mesmo modo, exige o choro do mundo. Alegria e amargura que não se querem sós, mesmo que se repassem de solidão. Reparem : esta paisagem suíça, de paraíso encadernado, vem até nos ronceira, vaidosa ou indiferente, mas sempre sem molestar; a de Espanha, ruge, ruge, loga a distância.”

in Diálogo em Setembro (1969: 375)

“Deste modo, os Encontros [Internacionais] servem Genebra e, para lá da evidente ciumeira entre os cantões, que fingem desconhecer ou desinteressar-se pelo que se passa em casa dos vizinhos, servem a Suíça. É dinheiro bem investido. E num país que respeita o dinheiro desde o berço, que é particularmente severo com o furto, crime maior entre os maiores, que não perdoa que o dinheiro seja lançado pela janela em gastos vãos, significa muito que, desde 1946, sem uma falha, sempre se tenha conseguido reunir os fundos necessários para fazer perdurar esta iniciativa. (…). Discutir sem salamaleques académicos, sem finuras de salão, mas também sem arruaça. Aqui se reaprendeu a dialogar.”

in Diálogo em Setembro (1969: 382)

“O sistema que aboliu a miséria e a intranquilidade, democratizou a cultura e espevitou a economia do país, distribuindo o bem-estar, sem, porém, apear as oligarquias financeiras, que o neocapitalismo robusteceu, encontrou-se perante a monotonia e o enfado – pois falta-lhe a mística contagiosa que não deixa os povos esvaziarem-se do porquê. Símbolo da abastança, a Escandinávia é agora também o símbolo de uma civilização que fracassou quanto a uma determinação colectiva, liberta e desalienadora, quanto à mobilização do querer individual adentro de um património comum dirigido à esperança – embora as suas realizações materiais, fundamentadas no indivíduo bom produtor e bom consumidor, sejam impressionantes. É um fogo que não arde.”

in Os Adoradores do Sol  (1972: 42-43).


Bibliografia ativa selecionada

NAMORA, Fernando (1986), Sentados na Relva, 6.ª ed., Publicações Europa-América, [2000].

— (1986), URSS Mal Amada Bem Amada, Bertrand Editora.

(1974), Estamos no Vento, Amadora, Livraria Bertrand.

 (1971), Os Adoradores do Sol¸ 2.ª ed., Publicações Europa-América, [1972].

— (1966), Diálogo em Setembro, 3.ª ed., Publicações Europa-América, [1969].

(1968), Um Sino na Montanha, 3.ª ed., Amadora, Livraria Bertrand, [1979].


Bibliografia crítica selecionada

LOURENÇO, Eduardo, O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978

MENDES, José Manuel, “Desassossego e magnitude” in Desassossego e Magnitude. Itinerários de Fernando Namora, Mendes, José Manuel et alli., Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova / Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, 2004

SACRAMENTO, Mário, Fernando Namora, Arcádia, s.d.

Jorge Costa Lopes

 

Como citar este verbete:
LOPES, Jorge Costa (2017), “Fernando Namora”, in A Europa face a Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/fernando-namora/