GOLGONA ANGHEL

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GOLGONA ANGHEL

(1979 – )

 A Europa de Golgona Anghel esquiva-se a uma identificação imediata: o lexema está praticamente ausente dos seus quatro livros de poesia publicados. No entanto, a Europa entrevê-se a cada imagem que desponta nos seus poemas, a cada vivência que transparece nas vozes por trás dos seus versos, a cada grande espaço comercial referido, a cada alusão aos ditames do mercado único tão europeiamente construído. Nota-se, assim, uma filiação à cultura europeia, que surge na poesia de Golgona Anghel como exercendo uma influência determinante, capaz de condicionadar atos, pensamentos e expectativas, e manifestando-se poeticamente numa itinerância de vozes, locais e tempos.

As sucessivas referências à cultura europeia resultam numa cartografia de vivências diversas partilhando os mesmos espaços urbanos. Assim se constitui o ser individual da cidade de Golgona Anghel, tornado supérfluo e precário (Eiras 2017), submetendo-se a ritmos e regras impostos e abafando revoltas. Nesta Europa burocrata, tecnocrata, os pontos de referência existem, mas não resultam em orientação: “Vejo-me a mim, na fila das finanças, / um naco de carne agarrado a um recibo verde. / Estado: fora do prazo. / Origem: descontrolada” (Anghel 2017: 46). A descrição no mesmo poema de um matadouro e da clausura dos animais na sua própria carcaça resume toda a tensão acumulada pelas várias personagens da poesia desta autora e que só em pensamentos, quantas vezes violentíssimos, encontra um ponto de fuga.

Sendo uma cidadã oriunda da Roménia, mas com formação universitária em Portugal, onde é investigadora na área da literatura na Universidade Nova de Lisboa, não é o seu percurso individual que transparece nos versos que escreve. Só no primeiro livro de poesia, Crematório Sentimental (2007), Golgona Anghel alude, eventualmente, a um aspeto autobiográfico, ao descrever a dificuldade sentida em obter a prorrogação de permanência em Portugal, a ser atribuída pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Nessa instituição pública portuguesa, é significativamente atendida por “Franz Kafka, Inspector-Adjunto” (2007: 51).

Ora, a invocação do escritor checo insere-se numa poética que põe a nu o absurdo da existência quotidiana, onde os eus se sucedem como se fossem personagens de uma narrativa, e se conformam a uma existência tão pálida quanto desconcertante. Apesar dos sonhos e pulsões interiores, persiste a inércia e a falta de expectativas. Conforme Golgona Anghel escreve no seu terceiro livro de poesia, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (2013), “a batalha é nossa, / já alugámos as trincheiras, / mas custa tanto tirar os pijamas” (19). O laxismo aqui sugerido talvez esconda uma outra realidade patente em “Acham-te todas um puto”, do mesmo livro: a personagem a quem o eu poético se dirige mora na casa dos pais, nos subúrbios ignotos de Lisboa e assiste todas as noites àquelas “esfinges domésticas” (2013: 44) que

continuam lá, a falar do preço certo
e das notícias das cinco,
antes de adormecerem,
às escuras,
como nós. (idem: 45)

A primeira pessoa do plural manifesta claramente a intencionalidade dramática deste poema, senão mesmo de todos os poemas de Golgona Anghel: diagnosticar a classe média de uma sociedade de consumo que cede ao alheamento como forma de existência. Daí advém uma dificuldade de comunicação tanto nos relacionamentos amorosos quanto nas amizades ou em qualquer outro tipo de relação social. Como escreve no poema “Quando é que percebes aquilo que digo?”, “cada um de nós tem uma fábrica caseira de sentido / e uma despensa onde guarda as certezas junto com as conservas” (ixe: 49). Os europeus comuns alimentam, assim, uma espécie de fechamento que contradiz um discurso de pluralidade e abertura propalado pelas instâncias de poder, incluindo a comunicação social.

De resto, a informação permanentemente difundida pela rádio e pela televisão é satirizada através da cacofonia que se pressente na sociedade europeia tal como figura na poesia de Golgona Anghel. O poema “A rádio é um meio de comunicação”, de Vim Porque Me Pagavam (2011), desfia uma sucessão de eventos díspares e de relevância desigual desde 1896 até ao presente, culminando numa sugestão de suicídio. O fim do poema evita o toque emocional, substituído apenas pelo valor facial da morte, plasmado num linguajar de advogado: “sem mais alegações nem assuntos mor, / deixemos agora os herdeiros legais / usufruírem dos direitos de autor” (2011: 68).

O tom sarcástico dos poemas de Golgona Anghel descreve uma sociedade experimentando uma doença civilizacional, que invade as circunstâncias mais banais do quotidiano. No poema “Não gosto de contar os desastres em detalhe”, menciona a “civilização em queda” (2013: 18), negando a possibilidade da esperança, esta que o eu poético “[afiará] com a flor branca de um cancro” (ibidem). A violência de imagens semelhantes repete-se por esta poesia, compondo o retrato de uma Europa decadente, que, por metáfora, pode ser “este comediante de rua / que serve a desconhecidos, em copos pequenos, / a medida certa da sua agonia” (ibidem).

Este abstrato “comediante de rua” representará uma sociedade europeia que vive momentos de difração constante, o que se manifesta na poesia de Golgona Anghel pela junção semântica de elementos díspares, mas ilustrativos de uma desorientação que parece invadir as personagens. Versos como “ir, antes de tudo, sem imitar as horas, / com o ritmo dos desejos posto em mínimo” (2011: 44), ou “não se iludam, / guardem os passarinhos para um churrasco gourmet. / Este caminho não leva a lado nenhum” (2013: 59), ou ainda “Aceitávamos, no entanto, / que os nossos corpos continuassem um caminho / para o qual nós não tínhamos explicação” (2017: 56) denotam esse sentimento de perdição.

De facto, está em causa uma cultura que é tanto erudita (cf. a referência explícita a múltiplos autores, cineastas e artistas de outras expressões sobretudo europeus) quanto marcada pela trivialidade do quotidiano (com alusões, por exemplo, ao Ikea e ao Lidl, à Praça da Alegria e aos santos populares). Não se trata de um discurso de estratificação social: Golgona Anghel privilegia um nivelamento denotador de um destino comum, pelo que a mesma pessoa que faz compras num supermercado pode ser um intelectual, um bolseiro (neste caso, remetendo para a própria realidade empírica da autora), ou qualquer outra pessoa. Por isso não surpreende que pondere esclarecer uma citação de Hölderlin, “Deus puxa os poetas pelos cabelos”, com umas mulheres que estavam “a fazer fila / à entrada do Ginásio Clube Português” (2011: 63).

A ironia revela a permanente sensação – ou o desejo – de um inebriamento que apazigue a frustração de um quotidiano hostil. “Vem, Senhora, mulher sócia da compaixão, / vem pingar-me uma gota de Dostoiewhisky na goela” (2017: 28) são versos retirados do poema “Vem, noite coisíssima e pindérica!” (ibidem) e glosam o Fernando Pessoa/Álvaro de Campos de “Vem, Noite antiquíssima e idêntica”. Neste exemplo de colagem, Golgona Anghel descreve uma Europa cujo percurso ébrio e louco engendra uma sociedade tão fútil quanto perigosa, uma sociedade cuja noite tanto pode ser de Natal, como de cristal (alusão à Kristalnacht), ou simplesmente a noite dos museus que pela Europa se tem vindo a celebrar.

Essa rede de referências comuns europeias, portanto, é tão inócua quanto nefasta e pode remeter ainda para uma reflexão histórica, principalmente pensando nas ditaduras que assolaram tantos países europeus. No presente, porém, vivendo a democracia, não há ainda a sensação plena de liberdade. Se as ditaduras geraram dissidentes, como no poema “Não interessa o que” (2011: 13) ou movimentações múltiplas de emigrantes, como em “Vim porque me pagavam” (idem: 59), se o sonho era a conquista de vidas mais livres, o fim das deslocações representa para muitos a criação de novos muros. Em “Não me interessa o que”, o sujeito poético descreve a vida de alguém que tem saudades de uma infância num país sob um regime ditatorial, por se ter transformado em mero “caniche de apartamento” (idem: 13), quando dantes, em tempos de fuga, fora uma “loba solitária” (ibidem).

Não é, portanto, gloriosa a vida nos países inseridos no mercado comum. Os seus habitantes submetem-se a empréstimos e leis que tornam infrutíferos grandes sonhos. De facto, frise-se, não existe, na poesia de Golgona Anghel, um sinal nítido de esperança. Antes, as ilusões facilmente caem por terra, como se percebe no poema “Olhe, preciso de dinheiro”, em que alguém pede um empréstimo para “abrir um negócio. / Algo meu, sabe como é. Estou farto de patrões” (2013: 38), predispondo-se, no final, a dar a própria vida para o conseguir. Afinal, diz ainda este eu poético, “Entrada, não sei. / Só se for o coração” (ibidem).

Sarcasmo, ironia, disfemismo são processos recorrentes na poesia de Golgona Anghel que acentuam uma perspetiva pouco abonatória para a Europa. Esta constrói-se deixando na margem muitos dos seus cidadãos, que escondem pulsões e violências enquanto vivem quotidianos frustrantes e anódinos. Como escreve no seu último livro de poesia publicado, Nadar na Piscina dos Pequenos (2017), o destino augurado parece resumir-se à queda:

Dia após dia a arregaçar as mangas e treinar
o orgulho de sermos menos forma-de-vida
e mais pão-de-forma,
lembrando, porém, heróis, construindo impérios,
para perceber, no fim,
que, mesmo com mil anos de história,
há povos inteiros
que ainda assim
acabam por
cair. (Anghel 2017: 51)

 

Lista de poemas sobre a Europa

“Ministério da Administração Interna. Notificação”, Crematório Sentimental (2007)

“Acabada a segunda guerra mundial”, Vim Porque me Pagavam (2011)

“Não interessa o que”, Vim Porque me Pagavam (2011)

“Encontrar-te-ás sozinho à porta do delírio”, Vim Porque me Pagavam (2011)

“Vim porque me pagavam”, Vim Porque me Pagavam (2011)

“A rádio é um meio de comunicação”, Vim Porque me Pagavam (2011)

“Comodista hesitante”, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (2013)

“Não te escrevi no outro dia, Timur”, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (2013)

“Olhe, preciso de dinheiro”, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (2013)

“Acham-te todas um puto”, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (2013)

“Antigamente os bisontes eram gente”, Nadar na Piscina dos Pequenos (2017)

“Escreve sobre os coitadinhos, os feios”, Nadar na Piscina dos Pequenos (2017)

“Vem, noite coisíssima e pindérica”, Nadar na Piscina dos Pequenos (2017)

“Furtei-me a um almoço com quarentonas New age”, Nadar na Piscina dos Pequenos (2017)

 

Antologia breve

Não me interessa o que

dizem os dissidentes da ditadura.

Mas confesso que gostava dos chocolates Toblerone

que a minha tia me trazia no Natal.

 

Não acredito nos detidos políticos,

nem me impressionam os miúdos descalços

que mostram os dentes para as máquinas Minolta

dos turistas italianos.

 

Não vou pedir asilo.

Desconheço os avanços

ou retrocessos económicos do meu país.

Já falei de Drácula que chegue.

Já apanhei morangos na Andaluzia.

Já fui cigana, já fui puta.

Escusam de mo perguntar outra vez.

 

O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante

para o fim da história – é saber

quando é que me transformei,

eu que era uma loba solitária,

neste caniche de apartamento que vos fala agora?

in Vim Porque Me Pagavam (2011: 13)

 

Acabada a segunda guerra mundial,

fez a finura de me visitar,

nessa altura em que a terra

ainda não tivera tempo para engolir os defuntos

e a ruína era servida como prato principal aos turistas.

Tentava passar a limpo as minhas incertezas e

usava como estendal a hélice de um avião inglês.

 

«Terá de mergulhar as recordações todas no passado.»

«O pacto de Varsóvia recompensá-lo-á

por todas as perdas

e eventuais danos colaterais.»

«É complicado, certamente;

Sismos luminosos ainda fulminam os seus silêncios.»

 

Na repetição do programa, aqui,

havia espaço para a pequena publicidade.

Nos hiatos, um pássaro.

Uma sombra fazia-me vacilar as ideias,

mas eu apoiava os dias por vir no meu andar seguro,

na evidência dessa madrugada de Janeiro.

Media com a minha altura todas as portas de saída.

Contava os faróis a andarem em sentido contrário.

Lia em voz alta as placas que indicavam

o caminho para fora, longe,

o nome das localidades,

tascas e lojas de conveniência,

frango assado a 100 m,

temos carvão, balas perdidas e achadas,

tabaco, botas pele em vários tamanhos, etc.

 

Tinha, certamente, o regresso programado,

a bagagem encostada à madrugada

e os dedos a disparar

sem parar. Contra o destino,

contra a personagem principal.

 

A última carta recebida em meu nome

contemplava tudo isto.

Davam-me até uma medalha

por compreender que,

apesar de me cansar mais,

ficar enterrado de pé

ocupa menos espaço.

in Vim Porque Me Pagavam (2011: 16-17)

 

Portugal, dia um de Maio de dois mil e oito.

As nossas janelas têm vista para o Mediterrâneo.

Os nossos turistas são ingleses. As nossas cozinheiras angolanas.

As nossas empregadas brasileiras.

Os nossos pedreiros ucranianos.

Os nossos comerciantes chineses e indianos.

As nossas amantes baratas.

As nossas putas disponíveis – agora, se faz favor.

Os nossos sonhos transatlânticos.

Os nossos hábitos light, soft, ecológicos, se possível.

Os nossos medos hoje são negros.

Os nossos dias contados.

As cegonhas têm a cor do querosene

e o sentido apurado dos Airbus 380.

Sobeja alguma caixa de Pandora,

com alguns dentes de ouro guardados lá dentro.

No Outono, iremos apanhá-los quais frutos maduros

caídos no chão das câmaras de gás da nossa consciência.

 

Até lá, vamos diariamente povoando

o nosso jardim zoológico com animais virtuais.

O ambiente está bom. O tempo provável.

As modelos dos clipes publicitários da Colgate,

os bushes e as torres gémeas, o sarkozy e as carlas bruni

etc., estão todos a sonhar os nossos sonhos

desde uma margem da história

que não vinha nos manuais,

desde o outro lado do ecrã dos nossos plasmas philips,

desde o real socialismo

que falhou, falhou, falhou tantas vezes

melhor no sonho da sua realidade,

desde uma união aduaneira cada vez mais integrada,

do banco europeu onde o próprio presidente nos sonha

na fossa comum da política agrícola (PAC)

desde a altura do seu bigode,

desde a fofura da sua almofada,

com fantasias em seda bordadas nas margens

e uma palavra com letras pequeninas,

preto sobre branco,

a-r-m-a-n-i.

in Vim Porque Me Pagavam (2011: 71-72)

 

Não gosto de contar os desastres em detalhe

mas, se quiserem, posso escrever uma lista com nomes e camas.

 

Sou bem capaz de molhar o pezinho na história da barbárie,

condecorar o medo,

cortar-me a mão com que limpo as feridas

de uma civilização em queda.

 

Posso perfeitamente

ir afiando o gume da esperança

com a flor branca de um cancro.

 

Sou, em definitivo, este comediante de rua

que serve a desconhecidos,

em copos pequenos,

a medida certa da sua agonia.

Descobre sonhos

onde outros só encontram coelhos.

Hoje, por exemplo, quando tirou as luvas,

viu que lhe faltavam dedos.

in Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho (2013: 18)

 

A sombra era mais pequena do que eu.

Depois vieste tu mostrar brinquedos,

Ensinar-lhe a crescer depressa.

Já devias saber, a morte é um negócio unipessoal,

sociedade limitada.

 

Eu também sei de sítios onde se engorda a moral.

Ângulos rectos para ajustar princípios e códigos de boa-fé.

 

O meu primeiro assalto

não foi publicitado, mas salvou-me do frio,

da ditadura e da cadela da dona Arlete.

 

Agora como então

as televisões trituram festas,

atiram iscos,

mas a fome bate tanto aqui, na Bobadela,

como em Bruxelas.

 

Plátanos capazes de devorar uma praceta

abundam em todo o lado.

 

Já dizia a tia Ermelinda Freitas:

o melhor, meu filho, é ficar quieto.

Encher o copo

e aguardar que o mundo dê mais uma volta,

sem que a roda nos pise os pés.

in Nadar na Piscina dos Pequenos (2017: 67)

 

Bibliografia ativa selecionada

ANGHEL, Golgona (2018), Nadar na Piscina dos Pequenos, Porto, Assírio & Alvim [2017].

— (2017), Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, Porto, Assírio & Alvim [2013].

— (2011), Vim Porque Me Pagavam, 2ª edição, Lisboa, Mariposa Azual.

— (2007), Crematório Sentimental. Guia de bem-querer, Vila Nova de Famalicão, Quasi.

 

Bibliografia crítica selecionada

EIRAS, Pedro (2017), “Na cidade de Golgona Anghel”, in Relâmpago, nº 38: O Poeta na Cidade, www.relampago.pt/opoetanacidade/o-poeta-na-cidade-sumario.html (último acesso em 3/01/2019).

 

Lígia Bernardino

Como citar este verbete:

BERNARDINO, Lígia (2019), “Golgona Anghel”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/golgona-anghel/