(1944 – )
Iso Camartin nasceu em Chur, a capital do cantão dos Grisões, na Suíça, em 1944. Fez os estudos liceais numa escola do convento de Disentis. Depois estudou Filosofia e Romanística em Munique, Bolonha e Regensburg. Doutorou-se com uma tese sobre Kant e Fichte. Ensinou em algumas universidades suíças, mas também em Harvard. Entre 1985 e 1997 foi Professor de Literatura Reto-Romana na Universidade de Zurique e na ETH daquela cidade. Entre 2000 e 2003 dirigiu a secção cultural da televisão suíça. Publicou inúmeros artigos e livros, centrados sobre aspectos culturais, muitos dos quais ligados à cultura europeia e o papel do reto-romano, como exemplo de uma cultura minoritária no seio da Europa (Nichts als Worte? Ein Plädoyer für Kleinsprachen. Artemis, Zürich 1985 [Nada senão palavras? Uma defesa das línguas minoritárias]). Por esses trabalhos recebeu diversos prémios. Escreveu também o volume correspondente à Suíça numa colecção sobre os países vizinhos da Alemanha e o que os alemães deveriam saber sobre os vizinhos, neste caso a Suíça: Schweiz (Reihe Die Deutschen und ihre Nachbarn), C. H. Beck, München 2008 [A Suíça. (Colecção Os Alemães e os seus vizinhos]. Vive actualmente em Zurique. Defende uma perspectiva de dupla minoria: a de suíço no seio de uma Europa onde se integra geograficamente, mas não fazendo parte da União Europeia, e a de reto-romano, uma minoria dentro da realidade político-cultural do país.
Focarei aqui somente alguns trabalhos com ligação directa à temática da Europa.
Em 1991 publicou uma série de artigos sob o título Von Sils-Maria aus betrachtet. Ausblicke vom Dach Europas [Visto de Sils-Maria. Pensamentos a partir do tecto da Europa]. Aborda vários aspectos europeus a partir duma minoria reto-romana, exemplificada em Sils-Maria, terra onde Nietzsche passou vários verões, assim como muitos ilustres intelectuais. Aborda questões como a diferença entre uma porta, símbolo da abertura, e um muro, símbolo do fechamento, e a importância que esses dois elementos têm na construção de uma identidade. (31), assim como a diferença entre o mundo global e “a vizinhança numa dimensão pedestre” (34), no sentido em que não se pode querer construir uma Europa sem essas dimensões, por mais distintas que possam ser. O pequeno e o grande, sempre em vizinhança, podem enriquecer-se mutuamente. Os temas abordados são universais, apesar do ponto de partida de uma minoria, como, por exemplo, a coabitação das línguas, as fronteiras, as relações com os vizinhos, as religiões e o laicismo. Um dos temas que percorrem diferentes textos é a defesa de uma Europa das regiões, tema que retomará mais tarde em Die Geschichten des Herrn Casparis (2008 [As histórias do Senhor Casparis]), onde se fala demoradamente do que representa o conceito “Heimat” [‘lar’], algo que todos, individual e colectivamente, necessitam, mas que não se pode basear somente no local de origem, mas como algo num permanente processo de construção, tal como a identidade individual ou colectiva. Ou em Jeder braucht seinen Süden (2011 [Todos precisam do seu Sul]), centrando-se na necessidade de um ‘sul’, de algo diferente, de um outro, exemplificando com diferentes casos como Dante ou Jorge Luis Borges. Como nota Schwarz, Camartin chama a atenção para a necessidade de perceber as relações entre as coisas e aceitar as diferentes visões que outros possam ter. “Ele é alguém que engrandece os detalhes e não alguém que diminua as coisas grandes.” (Schwarz 1988, p.2) e, como nota Collet, liga as culturas minoritárias ao universal. Camartin escreve nucom uma linguagem ‘culta’, erudita, mas simples e cheia de humor.
Em Bin ich Europäer? Eine Tauglichkeitsprüfung (2006 [Sou europeu? Uma prova de aptidão]) Camartin reúne 25 ensaios, alguns já previamente publicados. A questão unificadora deste volume, com ensaios tão diferentes, é: O que é que um reto-romano tem que fazer para ser um europeu? Para isso escolhe diferentes aspectos da cultura europeia, que fazem também parte da reto-romana, porque esta só existe no seio da Europa, tal como o país em que se integra, partilhando três línguas europeias. O primeiro ensaio intitula-se “Quem pertence à Europa?” (9-12), a que se segue “O europeu exemplar” (13-20), sobre François Bondy, nascido em 1915 em Berlim, tendo a família mudado-se para a Áustria e desde 1926 para a Suíça. Frequentou o liceu em Lugano, enfim um homem ligado a muitos lugares e a muitas culturas. É isso que deve caracterizar um europeu (e um americano) e é isso o que o livro mostra na multitude temática, desde diversos locais, como Paris, o Reno alpino, antes de atravessar a Europa ao longo da sua longa viagem, como acontece a tantos rios na Europa, figuras, como Erasmus de Roterdão, Giordano Bruno, Brueghel, Francis Bacon, Joseph Roth, Albert Camus, Paul Valéry, figuras que ajudaram a definir o que é europeu, e, por consequentemente, também a Suíça. São poucas as figuras ou locais helvéticos, pois o que autor quer definir é o enorme grau de ‘europeidade’ que existe no seu país. Aparentemente trata-se de muitos pequenos ensaios que formam um só, nas palavras do autor. Isto porque o todo faz-se com as partes, tal como a Europa. Em muitos deles, termina-se com uma remissão para a temática europeia. O autor define a necessidade de um “Heimatschein” [‘certidão de naturalidade’, não ligado ao país, mas à região], no ensaio em que mostra a importância das regiões (67). Não se pode igualmente esquecer a importância das diferentes línguas no desenho da Europa, um autêntico “tapete linguístico” (26). Porque as línguas não conhecem fronteiras rígidas, evoluem, não se deixam prender, tal como as fronteiras políticas, tema que já vinha desenvolvendo em textos anteriores.
Quem pode reclamar o direito de ser europeu, face a outro habitando o mesmo continente? O que é que nos torna europeu? O autor cita um holandês que responde, é o meu passaporte europeu que me torna europeu. Mas os suíços, noruegueses, russos? São como que “europeus sem papéis”? É uma questão de história, de cultura, de modos de viver e de pensar, e isto não se defende em tratados, ainda que estas questões políticas possam ajudar a consolidar a ideia de uma Europa. Este espaço continental (e as ilhas a ele ligadas) é fruto da evolução desde a antiguidade (sobretudo a europeia e do Médio Oriente e Norte de África), passando pelas diversas épocas em que os ‘países’ que formam o espaço considerado europeu, exemplificando com o Renascimento, o Humanismo, o racionalismo, a época dos descobrimentos, com a importância dada aos valores judaico-cristãos, à importância do indivíduo, à evolução das línguas, das religiões e mais recentemente da secularização. Um elemento também importante para a Europa é a sua relação com as sociedades islâmicas. E hoje em dia, a luta ecológica, as visões alternativas, as questões do género, a diversidade das artes. Um dos traços europeus, dentro desta enorme diversidade, é a tolerância. A Europa é um espaço geograficamente unido (se assim o queremos ver), mas muito diversificado, uma união na diversidade: “A consciência europeia vive de uma grande tolerância face à complexidade e diversidade. […] Pensar de modo europeu significa ver como algo natural, que as minorias e culturas marginais também marcam a realidade europeia” (2006: 11). Não se fala de assimilação, mas de diversidade na unidade. Daí a importância das regiões. Camartin refere-se ainda a um dos problemas: o pensamento europeu é, por vezes, demasiado abstracto, a frieza das ideias, sendo que o que é necessário é ver a riqueza da história, com todas as suas contradições, a luta pela liberdade social, política e cultural, uma visão de “carne e osso” (idem). A história europeia, com toda a sua diversidade e mesmo conflitualidade, é algo que nos tem de unir, longe de todos os nacionalismos, que defendem o particular, que dividem em vez de unirem.
Antologia breve
De Von Sils-Maria aus betrachtet. Ausblicke vom Dach Europas:
Mas quem estiver fascinado por uma cultura marginal, está preso também a orientações alargadas. “Regionalistas” não são necessariamente pessoas limitadas à sua horizontalidade. Quem se preocupa por aquele bocadinho do mundo, que lhe é imposto pelas suas origens, pelo seu trabalho e as suas expectativas, não tem que ficar cego face ao que acontece no mundo mais vasto. (p. 13)
A Europa é o continente onde é importante, em questões linguísticas, ser-se ambicioso e generoso, se não se quer pôr em perigo uma das mais valiosas tradições, a do plurilinguismo. Um mundo que se concentra cada vez mais nas novas técnicas de comunicação, tem forçosamente que ter modificações no modo de comunicar. Quem, por comodidade, quer falar com os outros do mesmo modo, verá como rapidamente se desinteressará pelos seus vizinhos. No futuro não haverá um melhor instrumento para a descoberta do mundo do que aquele que passa pela variedade de línguas faladas pelos homens com os quais nos queremos relacionar. (p. 55)
Isto é portanto o que é irrenunciável na manifestação europeia de racionalismo: contra todas as absolutizações, estreitamentos, cortes, o que se pode conseguir com receitas simples e fundamentais, procurando soluções face à complexidade dos interesses e à pluralidade das soluções. (p. 108)
De Bin ich Europäer? Eine Tauglichkeitsprüfung:
Durante um dos inúmeros simpósios sobre a Europa, onde zelosamente se procura descobrir as características da civilização europeia, pairou depois de longos debates uma simples pergunta no ar: ‘O que nos torna europeus?’ […] Há mais pessoas a participar das conquistas da civilização europeia do que representam as uniões políticas e económicas. Definir o que é europeu não é essencialmente o resultado de uniões e contractos do pós-guerra. (p.9)
A evidência europeia não se pode escrever num catecismo. Mas talvez se possa tornar experimentável a pertença e o afecto europeus através de histórias e exemplos concretos. Com histórias, que poderiam ser como pedras de mosaicos ou – para se precisar de modo mais correcto – as células nervosas de uma consciência europeia. (p. 12)
Também uma língua minoritária é rica em palavras belas e especiais, que se ligam na música linguística das grandes línguas europeias. Também aquele que pertence a uma minoria linguística pode ser um Europeu. (p. 34)
Bibliografia ativa selecionada
Camartin, Iso (1991), Von Sils-Maria aus betrachtet. Ausblicke vom Dach Europas. Suhrkamp, Frankfurt am Main.
Camartin, Iso (2003), Jeder braucht seinen Süden. Suhrkamp, Frankfurt am Main.
Camartin, Iso (2006), Bin ich Europäer? Eine Tauglichkeitsprüfung. C. H. Beck, München.
Camartin, Iso (2011), Die Geschichten des Herrn Casparis, C.H. Beck, München.
Bibliografia crítica selecionada
Chollet, Mona (2001), Iso Camartinen son esplanade“, www.peripheries.net/article133.html.
Schwarz, Ligbart (1988), Rettung durch Lesen. Laudatio Johann Heinrich Merck Preis 1988 an Iso Camartin“, www.deutscheakademie.de/de/auszeichnungen/johann-heinrich-merck-preis/iso-camartin/laudatio.
Gonçalo Vilas-Boas
Como citar este verbete:
Vilas-Boas, Gonçalo (2020), “Iso Camartin”, in A Europa face a Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/iso-camartin/