SEAMUS HEANEY

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SEAMUS HEANEY

(1939 – 2013)

Seamus Heaney nasceu na Irlanda do Norte em 1939 e foi professor em Harvard de 1981 a 1997 e Poeta Residente até 2006. Grande parte da sua poesia relaciona-se com a sua experiência na Irlanda do Norte, mais especificamente Belfast, onde viveu até 1976 antes de se mudar para Dublin. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1995 e Harold Bloom considerou-o um dos poetas mais influentes do cânone ocidental ao incluí-lo na sua colecção Bloom’s Major Poets.

A sua posição explicitamente pró-europeia confere-lhe uma dimensão política que se articula com as suas pretensões estéticas. Defendendo o Tratado de Lisboa em 2009, Heaney afirmou resolutamente: “[Europe is] more than a bureaucracy, it’s an ideal. […] The word ‘Europe’ is one of the first cultural underpinnings to our lives in this part of the globe. It’s for Greece, Italy, Rome, England, France that I feel it” (apud Mcdonald 2009: s/p).

Heaney foi sempre explícito acerca de sentir uma crescente dificuldade em conciliar na sua identidade as cidadanias britânica e irlandesa. Declarou sentir-se como um agente duplo, desvestido de lealdades políticas: “I moved like a double agent among the big concepts” (Heaney 1991: 54), afirma num poema de Stations (1975), cujo título engloba a primeira parte do slogan nacionalista irlandês “England’s difficulty is Ireland’s opportunity”. O poeta recusou inclusivamente fazer parte de uma antologia de poesia britânica contemporânea – The Penguin Book of Contemporary British Poetry – em 1982. Como motivo para recusar o convite, Heaney referiu o facto de, apesar de ter nascido na Irlanda do Norte, ter um passaporte da República da Irlanda.

O discurso imperialista prevalecente no Reino Unido do século XX e o forte desejo de independência que florescia na República da Irlanda eram duas forças opostas que colocavam a Irlanda do Norte no epicentro do conflito. Heaney admitiu sentir-se dividido por ser “Irish in a province that insists it is British” (apud O’Brien 2003: 36). A dualidade de Heaney é nitidamente percetível quando afirma: “I speak and write in English, but do not altogether share the preoccupations and perspectives of an Englishman. I teach English literature, I publish in London, but the English tradition is not ultimately home. I live off another hump as well” (ibidem). É talvez devido a esta ausência de uma identidade nacional manifesta que Heaney se sente mais confortável a escrever acerca da sua terra natal inserindo-a num panorama mais abrangente, olhando do geral para o específico, e assumindo-se nas entrelinhas enquanto cidadão europeu.

Em “Beacons at Bealtaine”, um poema escrito para a cerimónia de alargamento da União Europeia em 2004, que celebrou a integração de dez novos Estados Membros (Chipre, Malta, Hungria, Polónia, Eslováquia, Letónia, Estónia, Lituânia, República Checa e Eslovénia), Heaney comprovou a sua tendência para enquadrar a Irlanda do Norte num contexto europeu. Na veia da mitologia irlandesa relatada no Livro das Invasões (Leabhar Gabhála), o poeta comparou este virar de página na história da Europa à chegada das primeiras divindades pagãs, os Tuatha Dé Danaan, ao seu país durante o festival de verão de Bealtaine. O poema foi lido no primeiro dia de maio, e no preâmbulo Heaney explica que “May Day, known in Irish as Bealtaine, was the feast of bright fire, the first of summer, one of the four great quarter days of the year” (Heaney 2004: s/p). O poeta menciona ainda a tradição dos druidas de acenderem duas fogueiras e passarem entre elas com os seus rebanhos de modo a serem purgados de quaisquer impurezas. No evento em Phoenix Park, declarou:

There is something auspicious about the fact that a new flocking together of the old European nations happens on this day of mythic arrival in Ireland; and it is even more auspicious that we celebrate it in a park named after the mythic bird that represents the possibility of ongoing renewal (ibidem).

Assim como o festival de Bealtaine assinalava o início de uma nova estação através de uma purificação ritual, o poema aponta para a possibilidade da regeneração simbólica do continente através da União Europeia, garantia de uma identidade comum. De facto, apesar de ter escrito maioritariamente acerca da sua experiência irlandesa e britânica, Heaney não ignorou como esta se definiu pelo intercâmbio cultural com as tradições europeias:

Strangers were barbaroi [sic] to the Greek ear.
Now let the heirs of all who could not speak
The language, whose ba-babbling was unclear,
Come with their gift of tongues past each frontier
And find the answering voices that they seek (ibidem)

O próprio Heaney citou os poetas leste-europeus enquanto grandes influências, mas também como responsáveis pelos temas políticos em muitos dos seus poemas dos anos ’80. Admirou principalmente a obra dos polacos Czeslaw Milosz e Zbigniew Herbert e dos russos Joseph Brodsky e Osip Mandelstam, tendo-se inspirado nos seus poemas alegóricos ao escrever The Haw Lantern (1987). Além de possuir um interesse estético pela poesia destes autores, Heaney asseverou: “there is something in their situation that makes them attractive to a reader whose formative experience has been largely Irish” (1988: xx). De acordo com o poeta, a Irlanda do Norte podia ser analisada num contexto semelhante ao dos países comunistas da Europa de Leste, conectados pela perda de identidade em função de anos de opressão e conflitos etno-religiosos que culminaram em guerras civis e divisões territoriais. Do mesmo modo, muitos poemas de Heaney abordam o conflito conhecido como “The Troubles”, de 1968 a 1998: um período violento de tensões entre a maioria protestante da Irlanda do Norte, que procurava preservar o seu estatuto enquanto parte do Reino Unido, e a minoria católica, que ambicionava unir-se à República da Irlanda enquanto país independente.

Talvez um dos poemas mais marcantes em relação a estes incidentes seja a quarta parte de “Singing School”, presente na coletânea North (1975), intitulada “Summer 1969”. Após ouvir os relatos acerca dos conflitos em Ulster, o sujeito poético retira-se para o Museu do Prado para observar quadros de Goya, pintor que também se defrontou com um cenário de caos político em Espanha. O distanciamento físico em relação aos acontecimentos perturba-o, assoberbando-o de sentimentos de culpa e impotência: “O While the Constabulary covered the mob / Firing into the Falls, I was suffering / Only the bullying sun of Madrid” (Heaney 2001: 82). Em seguida, num dos quadros, observa dois guerreiros em conflito, relembrando-o da violência bárbara, sem sentido, que o sectarismo religioso provocava na Irlanda: “Also, that holm gang / Where two berserks club each other to death / For honour’s sake, greaved in a bog, and sinking” (83). Embora algumas pessoas o aconselhem a regressar (“‘Go back,’ one said, ‘try to touch the people’” (82)), o sujeito poético entende que o seu papel consiste na utilização da arte para revolucionar o pensamento político-social, assumindo a responsabilidade de formalizar uma posição política contra o massacre, como Goya havia feito um século antes: “He painted with his fists and elbows, flourished / The stained cape of his heart as history charged” (83).

Heaney volta a identificar-se com um artista europeu no último poema de Field Work (1979), “Ugolino”, uma tradução de um excerto do Inferno de Dante. Rand Brandes explica que, para Heaney, “Dante becomes a paradigm of the exiled European political poet confronted with religious violence and seeking justice” (2009: 25). Assumindo o papel de guia moral perante o cenário de canibalismo (desta vez metafórico) no seu país, Heaney critica ambos os lados do conflito: a descrição do conde Ugolino como sendo uma “famine victim” (1979: 61) remete para a Grande Fome do final da década de 1840 na Irlanda, assemelhando-o àqueles que se sentiam injustiçados pela governação opressiva do Reino Unido. Paralelamente, Ugolino culpa o Arquebispo Ruggieri e os habitantes de Pisa pela sua morte e pela dos seus filhos; porém é o próprio conde que canibaliza os seus descendentes, tal como os próprios irlandeses perpetuavam uma guerra civil. O pai que consome os filhos torna-se símbolo de violência cíclica, tanto em “Ugolino” como em “Summer 1969”, onde o sujeito poético observa: “Saturn / Jewelled in the blood of his own children” (Heaney, 1992: 64-65), evidenciado por que motivo Heaney ansiava por uma iminente regeneração europeia.

Proveniente de County Derry (ou Londonderry, como é preferido pelos unionistas), Heaney apreciava a estética de uma poesia paroquialista, influenciada pela sua própria experiência rural, como havia defendido o poeta irlandês Patrick Kavanagh. Contudo, Heaney reconheceu que, ao longo dos anos, o célere crescimento da tecnologia permitiu a existência de uma maior globalização e, como consequência, os indivíduos perderam a capacidade de se cingir a um só lugar: “We are no longer innocent, we are no longer just parishioners of the local. We go to Paris at Easter instead of rolling eggs on the hill at the gable” (1980: 148). Ainda assim, Heaney não encarou este facto como negativo; pelo contrário, a sua constante mobilidade conferiu-lhe uma identidade mais definida, menos marcada pela escolha de lados em Belfast e mais assente no constante diálogo com outras culturas europeias. Suzanne Lynch faz questão de relembrar:

In 2009, [Heaney] spoke of having been in Italy for the result of the first Lisbon referendum; when he was awarded the Nobel Prize he was holidaying on a remote island in Greece. For all his Irishness, Heaney was always inclusive, outward-facing and open; in this sense he was the true inheritor of literary predecessors such as Joyce and Beckett (2013: s/p).

Apesar de ter adotado um estilo de vida itinerante, espaços físicos sempre foram encarados por Heaney como quase insubstanciais; a sua experiência fundou-se em circunstâncias políticas, históricas, religiosas e numa miríade de contingências adicionais. Basta atentar nos poemas de Electric Light (2001), onde “’home’ exists both as a physical location and as an interiorised state that enables Heaney to travel in Greece, France, Spain and into the remembered past” (Cowper 2009: 161-162) ou em “The Placeless Heaven: Another Look at Kavanagh”, um ensaio do seu volume de prosa The Government of the Tongue (1988). Neste último Heaney descreve o local onde se situava uma árvore plantada pela sua tia no dia do seu nascimento, e que entretanto fora abatida:

The new place was all idea, if you like; it was generated out of my experience of the old place but it was not a topographical location. It was and remains an imagined realm, even if it can be located at an earthly spot, a placeless heaven rather than a heavenly place. (Heaney, 1988: 4)

Os lugares, para Heaney, são semi-imateriais; derivam de um sítio concreto, mas são as associações, as memórias e a imaginação que os formam. Daí a Europa ser um ideal para Heaney, delimitada por fronteiras arbitrárias, mas ao fim e ao cabo conectada por um passado e um futuro comuns. A distância espaciotemporal entre a Irlanda do Norte de Heaney e a Itália de Dante ou a Rússia de Mandelstam é encurtada não só graças ao apreço partilhado pela literatura, mas também devido à influência mútua proporcionada por séculos de constantes interseções entre arte, cultura e antepassados. Assim, a Europa metamorfoseia-se: de um espaço físico num paradigma dos ideais de paz, união e fraternidade – um farol capaz de guiar uma Irlanda do Norte fraturada.

 

Lista de poemas sobre a Europa

“The Peninsula”, Door into the Dark (1969)
“The Tollundman”, Wintering Out (1972)
“North”, North (1975)
“Singing School”, North (1975)
“The Stations of the West”, Selected Poems, 1966-1987 (1990)
“Known World”, Electric Light (2001)
“Beacons at Bealtaine” (2004)

 

Antologia breve

England’s difficulty

I moved like a double agent among the big concepts.
The word ‘enemy’ had the toothed efficiency of a mowing
machine. It was a mechanical and distant noise beyond that
opaque security, that autonomous ignorance.
‘When the Germans bombed Belfast it was the bitterest
Orange parts were hit the worst.’
I was on somebody’s shoulder, conveyed through the starlit
yard to see the sky glowing over Anahorish. Grown-ups lowered
their voices and resettled in the kitchen as if tired out after an
excursion.
Behind the blackout, Germany called to lamplit kitchens
through fretted baize, dry battery, wet battery, capillary wires,
domed valves that squeaked and burbled as the dial-hand ab-
solved Stuttgart and Leipzig.
“He’s an artist, this Haw Haw. He can fairly leave it into
them.’
I lodged with ‘the enemies of Ulster’, the scullions outside
the walls. An adept at banter, I crossed the lines with carefully
enunciated passwords, manned every speech with checkpoints
and reported back to nobody.
(Heaney 1991: 54)

 
Singing school

[…]
4. Summer 1969

While the Constabulary covered the mob
Firing into the Falls, I was suffering
Only the bullying sun of Madrid.
Each afternoon, in the casserole heat
Of the flat, as I sweated my way through
The life of Joyce, stinks from the fishmarket
Rose like the reek off a flax-dam.
At night on the balcony, gules of wine,
A sense of children in their dark corners,
Old women in black shawls near open windows,
The air a canyon rivering in Spanish.
We talked our way home over starlit plains
Where patent leather of the Guardia Civil
Gleamed like fish-bellies in flax-poisoned waters.

‘Go back,’ one said, ‘try to touch the people.’
Another conjured Lorca from his hill.
We sat through death-counts and bullfight reports
On the television, celebrities
Arrived from where the real thing still happened.

I retreated to the cool of the Prado.
Goya’s ‘Shootings of the Third of May’
Covered a wall—the thrown-up arms
And spasm of the rebel, the helmeted
And knapsacked military, the efficient
Rake of the fusillade. In the next room,
His nightmares, grafted to the palace wall —
Dark cyclones, hosting, breaking; Saturn
Jewelled in the blood of his own children,
Gigantic Chaos turning his brute hips
Over the world. Also, that holmgang
Where two berserks club each other to death
For honour’s sake, greaved in a bog, and sinking.
He painted with his fists and elbows, flourished
The stained cape of his heart as history charged.
[…]
(Heaney 2001: 82-83)

 
Beacons at Bealtaine
Phoenix Park, May Day, 2004

Uisce: water. And fionn: the water’s clear.
But dip and find this Gaelic water Greek:
A phoenix flames upon fionnuisce here.
Strangers were barbaroi to the Greek ear.
Now let the heirs of all who could not speak
The language, whose ba-babbling was unclear,
Come with their gift of tongues past each frontier
And find the answering voices that they seek
As fionn and uisce answer phoenix here.
The May Day hills were burning, far and near,
When our land’s first footers beached boats in the creek
In uisce, fionn, strange words that soon grew clear;
So on a day when newcomers appear
Let it be a homecoming and let us speak
The unstrange word, as it behoves us here,
Move lips, move minds and make new meanings flare
Like ancient beacons signalling, peak to peak,
From middle sea to north sea, shining clear
As phoenix flame upon fionn uisce here.
(Heaney 2004: s/p)

 

Bibliografia ativa selecionada

HEANEY, Seamus (1979), Field Work, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux.
— (1991), Selected Poems, 1966-1987, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux.
— (2001), North, Londres, Faber and Faber.
— (2004), “Poem delivered at EU Enlargement Ceremony by Irish Poet Laureate Seamus Heaney”, https://web.archive.org/web/20041221223016/http://www.eu2004.ie/templates/news.asp?sNavlocator=66&list_id=641 (acedido em 11 de abril de 2020)

 

Bibliografia crítica selecionada

BRANDES, Rand (2009), “Seamus Heaney’s working titles: from ‘Advancements of learning’ to ‘Midnight anvil’”, in Bernard O’Donoghue (ed.), The Cambridge Companion to Seamus Heaney, Cambridge, Cambridge University Press.
COWPER, Joanna (2009), “‘The places I go back to’: Familiarisation and estrangement in Seamus Heaney’s later poetry”, in Brewster S. & Parker M. (Eds.), Irish Literature Since 1990: Diverse Voices, Manchester, Manchester University Press.
HEANEY, Seamus (1980), Preoccupations: Selected Prose 1968-1978, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux.
— (1988), The Government of the Tongue: Selected Prose 1978-1987, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux.
LYNCH, Suzanne (2013), “Heaney. An intensely international and European poet”, in Irish Times, www.irishtimes.com/news/ireland/irish-news/heaney-an-intensely-international-and-european-poet-1.1511053 (acedido em 11 de abril de 2020).
MCDONALD, Henry (2009), “Seamus Heaney launches fierce attack on Irish opponents of Lisbon Treaty”, in The Guardian, www.theguardian.com/world/2009/sep/13/seamus-heaney-ireland-lisbon-referendum (acedido em 10 de abril de 2020).
O’BRIEN, Eugene (2003), Seamus Heaney: Searches for Answers, Londres, Pluto Press.

 

Ana Catarina Anjos

 

Como citar este verbete:

ANJOS, Ana Catarina (2020), “Seamus Heaney”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/seamus-heaney/