(1966-)
Nascido em Lisboa em 1966, José Gardeazabal (pseudónimo literário de José Tavares) passou grande parte da sua vida a percorrer o mundo, mais especificamente Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles, onde viveu, estudou e trabalhou. O seu primeiro e por ora único livro de poesia, História do Século Vinte (2015), venceu o Prémio Imprensa Nacional Casa da Moeda/Vasco Graça Moura, impulsionando José Gardeazabal para o primeiro plano do panorama literário português. José Tolentino Mendonça, presidente do júri, enfatiza que a poética de Gardeazabal “arrisca alimentar e transcender o esquema das oposições, num exercício invulgar, notável e vertiginoso, que conduz a literatura para um lugar novo” (2015: s/p).
Apesar do seu nomadismo, que também lhe confere uma posição de observador exterior face à Europa, José Gardeazabal atribui uma relevância particular na sua obra ao quadro europeu, desde o passado de guerras e revoluções até ao presente marcado por crises migratórias e tensões político-sociais. Confrontando-se com temas tão controversos, José Gardeazabal procura fornecer uma perspetiva objetiva e quase científica. O próprio título do seu volume de poesia sugere um conteúdo puramente técnico, um relato de factos delimitados por este século, aproximando-se os poemas por vezes de uma narrativa prosaica, num estilo “quase neutro, enumerativo, sem pathos, sem retórica” (Silva 2016: 71). Esta sugestão de realismo é, contudo, quebrada pela ausência de um fio condutor linear, conferindo à obra uma maior abstração. Como afirma o próprio autor, trata-se de uma “literatura de fragmentos” (2016: s/p) que procura retratar um século através de acontecimentos normalmente relegados para pano de fundo, por meio dos quais conseguimos entrever uma Europa destruída por inúmeras tragédias.
Na poesia de Gardeazabal é impossível dissociar a literatura do seu enquadramento histórico. Em História do Século Vinte o “narrador implicado” tanto é “autor” como “ator da História” (Cortez 2016: s/p). Gardeazabal apresenta o seu ponto de vista através de uma Europa vincada por contradições, em que “um escravo livre é assassinado, / e é um voto a menos para a democracia / um candidato arrasta o derrotado numa carroça” e no final “ganha a democracia” (2015: 21). Estas críticas, sombreadas por um clima de cultura bélica moralmente questionável que remete para um historial de imperialismo e colonialismo europeu (“assim chegam ao fim os leões extravagantes / que comem indianos, / centenas de africanos e um europeu, / um supervisor educado e gordo.” (ibidem)), acentuam a posição do autor face a uma Europa em declínio desde o século XX.
A guerra é um elemento de inevitável destaque na poesia de José Gardeazabal: as duas Grandes Guerras surgem como ponto de viragem ao anunciar “o fim da costa dourada, das regras europeias” (2015: 153). Com ironia e sarcasmo, Gardeazabal apresenta uma Europa apática face à carnificina da guerra, mencionando “câmaras com horrores” como uma “imagem radical inventada na europa”, e apelando: “deixemos de ser vítimas / e criemos empresas, associações de entreajuda / regressemos a áfrica com a ajuda de formas aéreas e submarinas / para matar.” (ibidem). Esta banalização da tragédia culmina com inúmeras analogias entre a guerra e um espetáculo teatral, incluindo versos sardónicos como: “preparemo-nos para os holocaustos como para a chuva”, que demonstram uma insciência predominante face ao “horror” e à “selvajaria em todos os cantos europeus” (2015: 13).
Tal como os poemas de História do Século Vinte aparecem em fragmentos, a Europa propriamente dita surge fragmentada no livro. Gardeazabal não se foca em eventos específicos e documentados, mas nas situações apresentadas “com sombras, como no cinema” (2015: 47), quase como se nos permitisse espreitar, através de uma pequena ranhura, imagens de um quotidiano europeu numa dimensão pessoal que alastra para uma escala político-social, que por sua vez se manifesta historicamente.
Não obstante um louvor à evolução tecnológica e ao progresso científico ao longo da obra, Gardeazabal expõe uma Europa sistematicamente obcecada por uma ideologia que tem na sua base “o comércio e a cristandade” (2015: 21): “precisamos de socialistas suaves e de mais conforto, / mais cristãos, / fronteiras pré-industriais sem cicatrizes e com matérias-primas. / inimigos, vamos construir uma nova europa? / há carvão e aço, lembram-se? / e uma agricultura sensível.” (2015: 153).
Gardeazabal explora a relação entre o capitalismo e o consumismo vigentes numa Europa onde “uma barra de sabão vale mais que o sabão / um carro não é só um carro” (ibidem) e os valores cristãos que regem o velho continente desde há cerca de dois milénios (“as cinco nações novas, a sul, / pobres mas cristãs” (2015: 15); “o fantasma da gravidez assusta os machos da medicina / porque não falamos já de monstros e de inferno?” (2015: 22)), apontando-os como causas do deterioramento europeu durante o século. Neste cenário aparatoso de “dinamismo do ocidente, (…) / que deseja um espetáculo fulminante, um negócio com a salvação” (2015: 10), os “bancos e profetas lembram que a nova guerra é impossível” ao mesmo tempo que os soldados são “convidados para um teatro” (ibidem) que certamente terminará com a sua tragédia. Assim, a hipocrisia velada nos conceitos de “sucesso” e “religião” contribui para o crescente distanciamento de um sentimento coletivo, substituído por uma obsessão pelo “ich” dos psicanalistas e o “ego” dos seus tradutores. A amoralidade e a superficialidade verificadas neste contexto são explícitas através do uso irónico da expressão “«declínio dos valores da família»” (2015: 47), que se revestem de um significado oco, epidérmico.
O aparecimento de Gardeazabal no plano literário europeu contribui para uma desconstrução da Europa moderna, mesmo quando o espaço temporal da sua obra remete para acontecimentos do passado. Afinal, como afirma o próprio, “o pior do século passado está presente, em pessoa ou na sombra” (2016: s/p).
O trauma, a desolação, a violência e a falta de um código moral assombram a Europa de Gardeazabal, e a sua poesia reflete a impassibilidade de um continente que foi vítima de um século conturbado e das suas próprias armadilhas encadeadas num passado imperialista. Porém, apesar das “bombas” e das “barbáries”, ainda somos capazes de vislumbrar no meio deste caos um resquício de humanidade e esperança nas “pessoas a sorrir no canto das fotografias” (ibidem).
Lista de poemas sobre a Europa
“5. não há bem, mal ou claridade”, História do Século Vinte (2015)
“7. os jovens vivos, amigos das emergências”, História do Século Vinte (2015)
“11. a moda dos automóveis não é prática”, História do Século Vinte (2015)
“13. morre o presidente e morre victoria“, História do Século Vinte (2015)
“36. procuramos a imagem radical inventada na europa”, História do Século Vinte (2015)
“44. da primeira guerra à segunda”, História do Século Vinte (2015)
“46. as nações vencedoras e as destruídas”, História do Século Vinte (2015)
“59. o hospício é esta europa entretida com mágicas de montanha”, História do Século Vinte (2015)
“101. viajamos pela europa à procura de gente em perigo”, História do Século Vinte (2015)
“118. recapitulemos antes de esquecer”, História do Século Vinte (2015)
“138. o fim da costa dourada, das regras europeias”, História do Século Vinte (2015)
“146. aceite-se que o amor derrotará os estados militares”, História do Século Vinte (2015)
“215. as enfermidades antigas conservam a juventude”, História do Século Vinte (2015)
Antologia breve
13.
morre o presidente e morre victoria,
um novo presidente torna-se célebre entre os ursos,
indestrutível, ginasta, e mais jovem que as grandes árvores americanas.
quando esta mulher morreu a inglaterra tinha a mesma rainha
há sessenta anos
e as prostitutas
(de londres)
choraram
tornando-se britânicas nesse instante
de dor, por isso, universal.
assim chegam ao fim os leões extravagantes
que comem indianos,
centenas de africanos e um europeu,
um supervisor educado e gordo.
todos os querem, o comércio e a cristandade
a mulher do engenheiro terminará a sua obra por instinto,
dizem que também por amor.
no trânsito, como um sonho,
as mulheres de negro desvirtuam o álcool com machados
nunca entenderás essa alegria até esmagares, esmagares assim.
um escravo livre é assassinado,
e é um voto a menos para a democracia
um candidato arrasta o derrotado numa carroça
e apostamos?
ganha a democracia
36.
procuramos a imagem radical inventada na europa
câmaras com horrores,
homens extraordinários de famílias científicas, antigas.
deixemos de ser vítimas
e criemos empresas, associações de entreajuda
regressemos a áfrica com a ajuda de formas aéreas e submarinas
para matar.
novas instruções rigorosas para magoar apenas os militares
façamos as contas às narrativas bíblicas
seriam uma ou três pessoas?
«ainda imagino quem poderá ser a terceira».
porque nos ares, nos ares são os individualistas que permanecem
um nobre britânico faz o mesmo que os outros.
toma a mulher nos braços e transporta-a para o interior da selva
divertido a disseminar a contraceção,
mas tudo com sombras, como no cinema.
ich é a palavra preferida dos psicanalistas,
ego uma invenção pobre de tradutores
em todas as cidades lê-se em subtítulo:
«declínio dos valores da família»
101.
viajamos pela europa à procura de gente em perigo
a américa entretém-se,
provinciana e espiritual.
a luta nos desertos parece-se com a luta no mar,
«vi londres pela primeira vez de cima de um bombardeiro
e tive pena,
nunca mais a visitei»
assim que vimos moscovo produziu-se um fenómeno
os combatentes experientes e os jovens sofriam,
(os cavalos sofriam)
o frio sofria,
curiosos, começámos a falar em voz alta de uma vitória (mundial),
nesta segunda guerra.
os desastres gregos não atormentaram os alemães,
a maior heresia: ignorar a literatura dos inimigos.
o homem não é verdadeiramente livre
e esta é uma diferença importante na língua dos deuses
tratemos animais e crianças com a bondade que queremos para nós.
o mar afoga-nos
e o deserto, afinal, não
nos abriga da aviação
138.
o fim da costa dourada, das regras europeias
precisamos de cacau e ouro, precisamos de infraestruturas
de três universidades importadas em caixas da américa
fronteiras pré-industriais sem cicatrizes e com matérias-primas.
inimigos, vamos construir uma nova europa?
há carvão e aço, lembram-se?
e uma agricultura sensível.
uma barra de sabão vale mais que o sabão,
um carro não é só um carro
as falhas de higiene, as experiências sexuais,
os mitos, os males, os verbos humanos
todas as formas e alfabetos sociais,
todos procuram uma saída.
a ação passa-se numa varanda entre figuras de autoridade:
um juiz,
o gene de um general,
um cliente que ninguém quer
em baixo e a sul decorre uma revolução
ideias verdes furiosas, entre criados
e descendentes de escravos.
Bibliografia ativa selecionada
GARDEAZABAL, José (2015), História do Século Vinte, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Bibliografia crítica selecionada
CORTEZ, António Carlos (2016), “História do Século Vinte: Recortar figuras humanas”, in Jornal de Letras, http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/letras/2016-06-27-Historia-do-Seculo-Vinte-Recortar-figuras-humanas (acedido em 18 de outubro 2018).
GARDEAZABAL, José (2016), “José Gardeazabal em entrevista — «A poesia deste século vinte é como a história, trabalha sobre as sombras»”, entrevista concedida a Tânia Pinto Ribeiro in Prelo, http://prelo.incm.pt/2016/05/jose-gardeazabal-em-entrevista-poesia.html (acedido em 18 de outubro 2018).
MENDONÇA, José Tolentino (2015), “José Gardeazabal vence primeira edição do Prémio Vasco Graça Moura”, reportagem da agência Lusa in RTP Notícias, http://www.rtp.pt/noticias/cultura/jose-gardeazabal-vence-primeira-edicao-do-premio-vasco-graca-moura_n869964 (acedido em 18 de outubro 2018).
SILVA, José Mário (2016), “E, Culturas, «Livros»”, in Expresso de 10-09-2016, p. 71.
Ana Catarina Anjos
Como citar este verbete:
ANJOS, Ana Catarina (2018), “José Gardeazabal”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/jose-gardeazabal