(1977- )
Sofi Oksanen é uma escritora e dramaturga finlandesa – porventura a mais galardoada na Finlândia dos últimos anos –, filha de pai finlandês e de mãe estoniana imigrada na Finlândia nos anos setenta, quando a Estónia ainda era uma república socialista soviética. Bissexual assumida, escritora polémica e conflituosa, nomeadamente na sua relação com os editores, Sofi Oksanen sofreu na sua juventude de distúrbios alimentares, facto esse que inspirou a escrita do romance As vacas de Estaline (2003), em que é também abordado o tema recorrente da condição da emigração das mulheres estonianas para a Finlândia. Já no romance Baby Jane (2005), Oksanen versa o tema tabu da violência conjugal nos casais homossexuais.
Envolvendo-se frequentemente como ativista no debate público finlandês, Sofi Oksanen tem tomado posições mordazes em temáticas sensíveis do seu país e da Europa atuais em geral: a multiculturalidade, os direitos do homem, a liberdade de expressão, nomeadamente no ciberespaço.
Para além de romancista, Sofi Oksanen é autora de vários ensaios e artigos publicados em jornais finlandeses. Entre os vários prémios recebidos, destacam-se o Prémio Finlandia, o Prémio Waltari, o Prémio da União dos Escritores Finlandeses, o Prémio do Grande Clube do Livro Finlandês, o Prémio Kalevi-Jäntti (todos em 2008); o Prémio Runeberg (2009); o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, o Prémio do romance Fnac, o Prémio Femina para o melhor romance estrangeiro publicado em França, bem como o Prémio do Livro Europeu, um galardão instituído pelo Parlamento Europeu no intuito de fomentar a adesão ao espírito e projeto europeus (estes últimos em 2010), sendo que todos os galardões referidos premeiam a escrita do romance Puhdistus (2008), [A Purga], traduzido para português europeu, num trabalho de qualidade discutível, em 2011 por Anna Toivola Câmara Leme com revisão de Manuel Eugénio Fernandes, para a Editora Objetiva. Refira-se também os prémios da Academia Sueca e o Grande Prémio de Budapeste para o romance Kun kyyhkyset katosivat (2012) [Quando os pombos caíram do céu, Salamandra, 2013].
No seu romance mais premiado, A Purga, a que deu uma versão teatral, Sofi Oksanen aborda os vários temas que a preocupam na ficção e no ativismo: a crítica dos totalitarismos, nomeadamente de esquerda; a questão identitária e as vicissitudes históricas da nação estoniana; os crimes – frequentemente comparados, porque comparáveis – cometidos pelos regimes nacional-socialista e estalinista na infeliz Estónia, um país báltico que Oksanen conhece bem. Radicalmente oposta à política de “finlandização” dos países bálticos e da própria Finlândia – essa postura de quase neutralidade e de submissão política e económica face à superpotência soviética vizinha –, Oksanen questiona também aspetos e clichés da cultura e identidade finlandesas, nomeadamente a ideia de uma sociedade irénica e excecionalmente feliz.
Em A Purga, Oksanen revisita a história da Estónia e de uma parte esquecida da Europa (as repúblicas bálticas e a Finlândia) para, a partir da história trágica de uma família estoniana, que acompanhamos durante três gerações e sob três regimes políticos sucessivos, apontar para as perigosas aporias históricas da Europa.
A estrutura fragmentada da obra, assente num constante vaivém histórico, analepses e prolepses, permite o contraste de diferentes fases ou fatias cronológicas da Estónia e da Europa: a irreprimível aspiração à independência, a ascensão do nazismo e do seu ideário na juventude estoniana aquando da ocupação alemã, bem como o entusiasmo pró-soviético e socialista após a derrota nazi, para desembocar no acesso à independência em 1991. O percurso histórico pessoal da velha Aliide sintetiza e condensa em si mesmo a história dessa parte do continente europeu.
Com efeito, em 1992, a União Soviética desmorona-se e a população estoniana – à semelhança do que acontece na Lituânia e na Letónia – festeja a saída das tropas russas estacionadas no seu território. Ora, a velha viúva Aliide Truu – que já conhecera a ocupação germânica; que fora casada com Martin – um cacique local do partido comunista; que se apaixonara por Hans, simpatizante do nazismo forçado à clandestinidade por ser procurado pelas autoridades comunistas, e marido da irmã, Ingel, deportada por Aliide para a Sibéria por meio de delação na esperança de conquistar Hans – encontra Zara num dia de 1992, uma jovem completamente destroçada, que se revelará ser a neta de Ingel, logo sua sobrinha-neta:
A rapariga abriu a boca algumas vezes antes de dizer qualquer coisa – umas frases soltas sobre Tallin e sobre um automóvel. As palavras empurravam-se umas contra as outras, como anteriormente, encolhiam-se em sítios errados, uniam-se antes de tempo e começaram estranhamente a fazer comichão nos ouvidos de Aliide. (…) havia algo estranho no estónio da rapariga (…). Mas no estónio da rapariga havia um outro tom qualquer, um tom mais antigo e amarelecido. Era como se tivesse de uma maneira estranha um sabor a uma coisa morta.
Ora, com a queda do comunismo, Aliide receia provar do seu próprio veneno: a retaliação por parte das fações pró-independência da Estónia. Vive fechada em casa nessa “Estónia ocidental” que serve de cenário a vários capítulos do romance. Entre estas duas mulheres de duas gerações distantes, e que viveram contextos estonianos diferentes, há doravante um terrível segredo de família por explicar e gerir, à semelhança das complexidades históricas por que passou essa área periférica da Europa.
De certa forma, é esse passado tenebroso da Estónia e da Europa, bem como o seu presente recente, com o seu cortejo de traições, colaborações e compromissos que é “purgado” na e pela narrativa. Tanto mais que a História dá muitas voltas. Com efeito, com a derrocada da União Soviética, Zara, tal como muitas jovens do leste europeu, é atraída pelo sonho ocidental e cai nas redes organizadas e mafiosas da prostituição, precisa e ironicamente na Alemanha:
No Ocidente havia dessas revistas só com fotografias de tatuagens, imensas imagens a cores das tatuagens, daquelas que o próprio Pasha [o proxeneta] um dia faria (…). O pai tinha estado em Perm em 1936 e nas suas tatuagens lia-se ‘NKVD’ (…). Também Lavrenti [outro proxeneta] dizia de si próprio que já era um homem velho. Para trás ficavam 25 anos de KGB e o que ele desejava era que a vida continuasse tal e qual como era antes das palhaçadas de Jeltsin e do Gorbachev.
Dito isto, Sofi Oksanen não perde uma oportunidade para denegrir a existência quotidiana sob o regime soviético: “Como os anos passaram e Martin não foi chamado para Tallin, as perspetivas de progressão na carreira diminuíram e Aliide já não esperava que Martin conseguisse arranjar produtos através do partido – e punha-se então em filas atrás de filas de mão dada com Talvi, ensinando-lhe assim o que era a verdadeira vida de uma mulher soviética”.
Assim, este romance pode ser lido enquanto sinal de alerta dirigido à Europa atual, tentada (de novo) por discursos, reviravoltas e aventuras políticas de cariz populista e xenófobo. Com efeito, como não olhar para estas sequências de adesões, colaborações, delações e traições a partir do nosso confuso presente europeu? Como não imaginar – ou temer – que a História se repita? Dito de outra forma, que “purga” ou redenção se pode esperar para a Europa que construímos
Antologia breve
O olhar da avó incendiara-se, quando Zara lhe falara dos seus planos de ir trabalhar para a Alemanha. A mãe não ficara entusiasmada com o assunto, pois também não se entusiasmava com nada, mas sobretudo não gostava destes planos porque achava que o Ocidente era um sítio perigoso. Um grande salário não alterara a opinião da mãe. A própria avó não ligara às conversas de Zara sobre o dinheiro, mas exigira que com esse dinheiro Zara fosse visitar a Estónia.
in A Purga (2008: 93).
Se Aliide tivesse sido outro género de mãe, teria Talvi sido diferente? Talvez não tivesse bufado ao telefone para lhe dizer que na Finlândia se podia comprar tudo nas lojas, quando Aliide lhe perguntara se plantara alguma coisa na horta. Se Aliide tivesse sido uma mãe diferente, teria Talvi vindo ajudar na época da apanha das maçãs, em vez de se limitar a enviar-lhe umas fotografias brilhantes da sua cozinha nova, da sua sala nova, do seu novo aparelho faz-tudo, mas nunca fotografias dela própria? Talvez Talvi não tivesse começado logo desde nova a admirar a tia da amiga que vivia na Suécia, que tinha um automóvel e que enviava revistas Burda às raparigas”.
in A Purga (2008: 206)
Zara esteve para dizer que também havia lotaria na Rússia, lotarias não faltavam, mas percebeu depois que para Pasha isso era a mesma coisa. Ele podia ganhar no casino e fazer imenso dinheiro com as raparigas, muito mais do que uma pessoa normal ganharia com a lotaria, mas tudo isso era trabalho e Pasha estava constantemente a queixar-se, a queixar-se de que tinha de trabalhar muito. Na Finlândia qualquer um podia tornar-se milionário; sem nada. Na Rússia uma pessoa qualquer não podia ficar milionária com a lotaria. Nem sequer se conseguia entrar num casino sem contactos ou dinheiro. Quem é que teria sequer coragem para o fazer? Na Finlândia, bastava estar estendido no sofá em frente à televisão aos sábados à noite e esperar que aparecesse o número certo no ecrã e os milhões cairiam no colo.
in A Purga (2008: 228).
Bibliografia ativa selecionada
OKSANEN, Sofi (2008 [2011]), A Purga, Carnaxide, Editora Objetiva.
Bibliografia crítica selecionada
CLAVEL, André, “Purge de Sofi Oksanen”, Le Point,14-03-2011.
DIREITINHO, José Riço, “Sofi Oksanen e o poder curativo da arte”, Público, 22-07-2011.
LANDROT, Marine, “Purge. Sofi Oksanen”, Télérama, nº 3163, 28-08-2010.
NOIVILLE, Florence, “‘Purge’: les archives vivantes de Sofi Oksanen”, Le Monde, 09-09-2010.
OKSANEN, Sofi, “Tectonique des places”, Le Nouveau Magazine Littéraire, nº 5, mai 2018, 40-42.
José Domingues de Almeida
Como citar este verbete:
ALMEIDA, José Domingues de (2018), “Sofi Oksanen”, in A Europa face a Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/sofi-oksanen