(1967 – )
Ler a Europa na poesia de Rui Pires Cabral implica penetrar num universo de experiências íntimas e referências comuns. O propósito desta poesia não é tanto uma reflexão profunda em termos políticos quanto um olhar emocional sobre protagonistas indistintos, ampliando a mundivisão retratada a um acontecimento geracional dos que entraram na idade adulta entre as décadas de 1980 e ’90, que o sujeito poético nostalgicamente expressa.
Morada (2015) reúne os poemas de Rui Pires Cabral publicados desde 1994 até 2013. Logo o título aponta para a ideia de espaço. No entanto, contrariamente à fixidez sugerida, a morada destes poemas desloca-se pelos diversos pontos europeus que o poeta convoca por ter neles circulado e vivido. Assim, inviabiliza-se a intimidade de uma casa, ampliando-se o espaço para lugares concretos percorridos e experienciados, entre Portugal e (quase exclusivamente) o resto do continente europeu. Essa morada pode pois ser sinédoque da própria Europa.
Desse ponto de vista, a poesia de Rui Pires Cabral parece encarnar uma persona coletiva, manifestada, por exemplo, através da primeira pessoa do plural, como os seguintes versos de “Celetnà” exemplificam: “nós cúmplices e desconhecidos / debaixo da chuva até ser dia outra vez” (Cabral 2015: 35). Mais do que o retrato de um cidadão português viajando pela Europa, este poema (que remete para a rua onde Kafka viveu em Praga) explicita a coincidência de prazeres, vícios e dissabores comum ao já referido grupo geracional.
A intimidade perspetivada nos poemas de Rui Pires Cabral prende-se a uma certa forma de vida contemporânea, não elitista e indiferente à sociedade de consumo instalada neste amplo espaço geográfico. Por isso, versos como “Onde estão as tuas razões, o que fizeste / com a tua juventude?” (87) remetem menos para a recriminação de um tu do que para a consciência de uma desesperança coletiva. A presença das mesmas referências civilizacionais – sejam os charros fumados em Amsterdão (31) ou no Porto (250); os livros dos Cinco lidos numa qualquer Páscoa (361), ou a música dos Smiths (36); um parque nacional, como o retratado em “Charlecote Gardens” (130), ou a montanha da infância, permanentemente evocada nos diversos livros publicados –demonstra esse espírito coletivo que os poemas tentam captar.
O tempo é outro eixo estruturante da poesia de Rui Pires Cabral, tanto por remeter para a questão geracional quanto por confirmar a consciência do irrecuperável. “Onze Cidades” é a segunda parte de um livro denominado Música Ontológica & Onze Cidades, publicado em 1997. Nele se lê: “Às vezes era doloroso viver atrás / das montanhas, pressentíamos a distância do mundo como uma faca” (121). Ora, este poema tem por título “Vila Real”, e esta é uma das cidades europeias evocadas (a única outra cidade portuguesa é o Porto). A infância e a juventude têm a propriedade dúplice de revelação tanto do passado quanto do presente. Se o primeiro surge como fascinado pela evasão, que filmes e músicas ouvidas no Marão alimentavam, o segundo observa o que passou com um carinho desencantado: as expectativas ficaram distantes da realidade. No mesmo poema, surge entre parênteses a miscelânea de referências do passado: “(alguma desenquadrada peça de Satie / entre Polly Jean e Tom Waits a uivar como um cão)” (ibidem). Ícones da música erudita, por um lado, e da música indie anglo-saxónica, por outro, constituem-se como elementos-base para uma mundivisão em crescendo, mas baseada sobretudo em ilusão.
O sujeito poético que transparece nesta poesia é, pois, marcadamente português, mas também, de modo mais amplo, europeu. O primeiro livro publicado por Rui Pires Cabral foi Geografia de Estações, em 1994. O percurso poético parte das suas referências locais e culturais para as recordações, permitindo o estabelecimento de um contraste entre o passado que essas recordações evocam e o presente experienciado. Assim se vislumbra um modus vivendi que sugere uma doença civilizacional intensamente europeia, de um “inquilino contrafeito / da sua pele” (16), como se lê no poema “O heterónimo no Inverno”, desse mesmo primeiro livro.
A Europa em Rui Pires Cabral revela-se multifacetada. Há a Europa vivida num Portugal distante dos grandes centros cosmopolitas, numa infância e adolescência rememoradas, por oposição à Europa vivida enquanto turista ou residente no estrangeiro, antecipando nas viagens a confirmação da expectativa criada no passado. Por isso percebe-se o entusiasmo quando escreve que “atravess[a] Belgrave Road de olhos ateados” (34), ou demonstra o enlevo sentido em Viena, por contraste com “a indiferença / dos empregados poliglotas” (40).
O périplo pela Europa permite detetar uma padronização de comportamentos. Assim, no poema “O Star Princess entrando no Canaledi San Marco em 5 de Agosto de 1992”, os turistas em Veneza observam o voo das pombas e dizem “oooooh” (38), numa expressão de prazer que contagia o sujeito poético, levando-o a exclamar, no final, “que talvez sim” (ibidem), num raro abalo ao pessimismo persistente desta poesia. Por outro lado, no poema “Hall’s Croft”, de Longe da Aldeia (2005), o turismo na Europa deforma o passado, pelo restauro artificial do antigo. De novo se evidencia o irrecuperável do tempo, donde talvez o desinteresse relativo às informações transmitidas pelo cicerone. Nesta casa do genro de Shakespeare, o pensamento do sujeito poético deleita-se com a imaginação de diálogos, preocupações, vivências do passado que nenhuma visita guiada poderá recuperar:
Tento imaginar John Hall
e sua mulher sentados à mesa num qualquer
serão de outono, digamos
por exemplo, em 1614 – receberiam aí o sogro
para a ceia íntima? Dar-lhe-iam a fruta da quinta,
um copo de sidra, carne vermelha com sal a gosto?
(183)
Este pensamento distancia-se de um turismo europeu cada vez mais estandardizado, talvez porque não seja a materialidade dos sítios que verdadeiramente interesse à observação do sujeito poético. Ainda no mesmo poema: “nada vejo senão / fantasias e abstracções, é tudo opaco e um pouco triste” (184).
O retrato melancólico da Europa em Rui Pires Cabral expressa um sentimento de grupo marcado pela crescente individuação, resultante em desconhecimentos coletivos e efabulações, mais do que numa vontade de intervenção efetiva sobre o mundo. Por isso, tudo parece fruto do acaso, por isso esse acaso fascina, como no poema “Shirley Ann Eales”, de Longe da Aldeia (2005): o sujeito poético compra num alfarrabista inglês um livro em cujo frontispício aparece o nome de uma anterior proprietária do livro e uma morada. Resta apenas o olhar perplexo de quem olha “a imensidão do mundo / onde trafica o acaso” (188).
O acaso, o irrecuperável, os anónimos marcam a Europa presente na poesia de Rui Pires Cabral, e que se estende para além das palavras: há “qualquer coisa acima das palavras / que não se deixa decifrar. Em cidades estranhas / dispomos melhor dos sentidos, somos arriscados / nas nossas intuições” (131). Nas obras mais recentes, os poemas combinam palavras e imagem, através de colagem de fotografias e versos ou frases, algumas delas retiradas de livros lidos em tempos remotos (como em Biblioteca de Rapazes, publicado em 2012). A sucessão de gente anónima que as fotografias trazem ao presente expõe a precariedade da existência humana, apesar das ilusões prometidas por uma Europa aberta ao olhar divagante do turista. A “promessa de vida” questionada em Manual do Condutor de Máquinas Sombrias (2018) explicita essa desesperança que nenhum lugar europeu vivido ou visitado parece atenuar:
(2018: s/p)
A melancolia incita não só a uma demanda pelo passado, mas à consciência da impossibilidade desse resgate: apenas a imagem se salva, ainda que de modo precário, já que a identidade dos fotografados é incerta. Nos trabalhos de poesia-colagem, as fotografias de figuras e paisagens anónimas servem de inspiração para palavras que tentam encontrar nexo no aleatório. Oh! Lusitania (2014) é um exemplo dessa estratégia. Constituído por recortes de fotografias onde se destacam ruínas, sobre as quais são coladas frases do livro The Last Voyage of the Lusitania, escrito por A. A. Hoehling e Mary Hoehling (Pan Books, 1959), o livro relata a tragédia do navio Lusitânia, afundado por um torpedo alemão na primavera de 1915. A evocação desta guerra devastadora para a Europa coincide com um imaginário poético que se distancia de uma plena ou sequer hipotética felicidade.
Esta poesia tenta assim captar o espírito do século XXI, marcado pela memória, pelas vivências e pela vacuidade do quotidiano. Circulando pela Europa desde finais do século XX até ao presente, Rui Pires Cabral adota um permanente confronto entre o sentimento despertado pelo que vê e a amplificação do que sente a um destino coletivo. A Europa é aqui marcada pela melancolia da não consumação, a melancolia de ter estado perto, de ter pressentido o que a paisagem sugeriu mas não revelou. E nesta experiência destaca-se apenas uma cidade de desconhecidos, que partilham o facto de ser “domingo em toda a parte, / de nenhures, de Deus / nenhum” (361).
Lista de poemas sobre a Europa
“Hoje à noite não voamos sobre Budapeste”, Geografia das Estações (1994)
“Celetnà”, Geografia das Estações (1994)
“Belgrave Road”, Geografia das Estações (1994)
“O Star Princess entrando no Canale di San Marco em 5 de Agosto de 1992”, Geografia das Estações (1994)
“Europa”, Geografia das Estações (1994)
“Paris”, Música Antológica & Onze Cidades (1997)
“The heart of England”, Longe da Aldeia (2005)
“Alexandra Road”, Longe da Aldeia (2005)
“Peace festival”, Longe da Aldeia (2005)
“Hall’s Croft”, Longe da Aldeia (2005)
“Tudor”, Longe da Aldeia (2005)
“Diana of love”, Capitais da Solidão (2006)
“Não há serviço de mesas”, Capitais da Solidão (2006)
“Raven”, Evasão e Remorso (2013)
“Sétimo dia”, Mixtape: 13 avulsos (2015)
Antologia breve
Europa
Truncada na moldura do vidro,
a superfície do mundo
é opaca como tu o foste
para o meu desejo.
Não me faz impressão
a queda ou o vazio: olho
para dentro dos lugares
onde me dói ter estado
perto demais
demasiadas vezes.
Ofereço o passaporte
à inspecção, deslizo
confortavelmente
na trepidação da paisagem
até outro país.
in Geografia das Estações (1994: 42)
Paris
Quando vi o mar nas janelas, achei que podia alterar
o meu itinerário. Ao descer para a praia
já era quase escuro, havia um casal de aspecto tristonho
sentado nas dunas. Não estava à espera de qualquer revelação
mas as ondas recurvavam com fastio e eu regressei ao molhe
onde todas as famílias eram negligentes
e estavam em férias.
O coreto tinha sido assaltado
por jovens excursionistas no engate, velhos em calções
falavam nas cervejarias a coçar os joelhos, riam com estridência
para dentro dos copos. O verão ia no seu segundo dia
e parecia ter-se desdobrado no céu da Gasconha
como um lençol gasto. Nunca saberei se havia
uma história à minha espera na Gare du Nord essa noite.
in Música Antológica & Onze Cidades (1997: 120)
Capitais da solidão
A cada país do mapa
uma mancha de cores macias
e a negra capital
com a sua teia de estradas
e o seu enxame de nomes
e pontos mais finos.
Capitais da solidão –
recordam-nos o quanto
as quisemos,
esperando talvez
que o amor fosse justo
e a vida mais pródiga
em Roma, Budapeste
ou Paris entre Abril
e Junho.
Podemos agora
percorrê-las a eito
no papel, onde estão
imóveis e nunca anoitecem,
emblemas duradouros
de uma esperança
que não foi, neste caso,
a última a morrer.
in Capitais da Solidão (2006: 227)
Não há serviço de mesas
A integração europeia, eis um tema
de inesgotável fascínio para os especialistas.
Esta tarde traduzo as minudências do caso grego
com muitas notas de rodapé. Por volta das 6,
entorpecido, saio para tomar qualquer coisa,
esqueço-me de cumprimentar um vizinho.
A rua, uma imagem mental, não me confunde
nem perturba. Mas dou por mim a pensar (é
estranho) naquele riacho que descobrimos à ida
para Lordelo, perto do hospital novo. Não sei
o que me prende agora aos domingos dos nossos
20 anos, mas a memória é uma rede de túneis
cheia de portas súbitas e imprevistos alçapões.
No café varia pouco a freguesia. Não tenho
moedas, causo transtorno à rapariga bisonha
que atende ao balcão. Volto para casa
com o bolso cheio de trocos, abro a porta
da varanda e reparo que deixei morrer
a violeta que me deste.
in Capitais da Solidão (2006: 244)
Bibliografia ativa selecionada
CABRAL, Rui Pires (2014), Oh, Lusitania!, Edições Paralelo W.
— (2015), Morada, Lisboa, Assírio & Alvim.
— (2018), Manual do Condutor de Máquinas Sombrias, Lisboa, Averno.
Lígia Bernardino
Como citar este verbete:
BERNARDINO, Lígia (2020), “Rui Pires Cabral”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/rui-pires-cabral/