(1911-1994)
Ernesto Guerra da Cal foi o vulto galego mais importante da segunda metade do século XX, a nível internacional. Licenciou-se em Filosofia e Letras e exerceu a actividade de professor nos Estados Unidos de América. Para além de poeta e ensaista, foi ainda colaborador em trabalhos de investigação para universidades de Portugal e do Brasil, países aonde se deslocou para proferir diversas conferências e seminários.
Foi um dos mais reconhecidos especialistas em Eça de Queirós, autor sobre quem versou a sua tese de doutoramento, a primeira tese sobre literatura portuguesa nos EUA. Participou na vida cultural galega no exílio, colaborando na Unity Gallega de Nova Iorque, entre outros coletivos de emigrantes. Foi membro da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e da Academia de Ciências de Nova Iorque. Recebeu diversas honras, entre as quais podemos destacar a Medalha do Padre Anchieta, o Oficialato da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a Medalha Oskar Nobiling e a Medalha Honoris Causa pela Universidade de Baía (Brasil); a Ordem Militar de Santiago-da-Espada, a Ordem do Infante Dom Henrique, a Ordem Militar da Nossa Senhora da Conceição de Vila-Viçosa e a Medalha Honoris Causa pela Universidade de Coimbra (Portugal); recebeu a medalha da Hispanic Society of America e foi homenageado pela University of California como pioneiro dos Estudos Luso-Brasileiros nos Estados Unidos.
Publicou diversos ensaios, entre os quais destacamos Lengua y Estilo de Eça de Queiroz, publicado pela Universidade de Coimbra, e a monumental Bibliografia Queirosiana. A maior parte da sua poesia, cerca de 300 poemas, está recolhida nos volumes Lua de alén Mar (1959), “Poemas” (revista Papeles de Son Armadans, 1961), Rio de Sonho e Tempo (1963), “Seis motivos do eu” (Papeles de Son Armadans, 1966), Futuro Imemorial (1985), Deus, Tempo, Morte, Amor e outras bagatelas (1987), Espelho Cego (1990) e Caracol ao Pôr-do-sol (1991). Quer nos seus ensaios quer nas suas escolhas poéticas, sempre defendeu que a língua galega era uma variedade da portuguesa, devendo normativizar-se conjuntamente com esta e sob os mesmos critérios. Os poemas que incluímos a seguir fazem parte dos livros Futuro Imemorial e Caracol ao Pôr-do-sol.
Embora a palavra “Europa” não surja na produção poética de Guerra da Cal, a verdade é que essa obra relata continuamente a história da Europa. Os temas fundamentais que podemos achar na sua poesia são a guerra e a emigração, que chegam a fundirse num só poema, ambos ligados à memória, a experiência vital. O primeiro é “Guerra – No esquecimento”, onde assistimos à representação do espaço bélico inspirado, possivelmente, pela guerra civil espanhola: “toco o meu camarada / aqui / ao meu lado / na trincheira avançada: / Morto!”. No segundo, “Campanha”, a linguagem bélica traduz a infeliz situação dos emigrados por culpa do conflito: “Filho perdido / da minha Mãe / Moço arrancado / da minha Terra / Morto soldado desconhecido”. No terceiro, “Pátria, A Galiza”, temos as lembranças da terra abandonada, preservadas indefinidamente na memória: “Amo-te / sobretudo / como eu te quereria / como eu em mim te crio / dia após dia / como um encantamento da minha infância / e da minha fantasia”, repetindo-se o motivo da emigração: “Posso eu acaso me reconhecer / naquele rapaz loiro / que chorando partiu / um dia crepuscular e montanhoso / de Quiroga / no Sil / há tantos anos e tantos desenganos?”. No quarto poema, “Sonho vivo em paisagem morta”, o autor descreve mais uma vez o espaço marcial: “O Sol brilha indecente / e / indiferentemente nu / a alumiar os sapatos / vazios / dos cadáveres”, chegando a dar detalhes que podemos associar com diversas guerras, quer por nomear o lugar, quer por vultos ligados a elas: “E uma tarde de sol / morrer ainda outra vez / lambendo heroicamente / as botas militares / no Vietname / ou dando hebraicamente / os dentes de ouro / às câmaras de gás / ou cuspindo os pulmões aos pedaços / nas rochas Franco-regeneradoras / do Vale dos Caídos”. No quinto, “Pavana ritual para um poeta assassinado”, a guerra e as suas consequências em Espanha, o assassinato massivo de pessoas inocentes, como Federico García Lorca, íntimo amigo de Guerra da Cal: “FEDERICO, estás morto! Ouves o que te digo? / Mataram-te bem morto / de uma morte total / perpétua, irrevogável”. Finalmente, o sexto poema, “Bombardeamento”, combina um relato amoroso com um relato belicista: “Depois: dois corpos nus / em entrelaçamento incandescente / Cheiro a sexo / misturado com água de colónia / húmidos beijos / lascivos e inocentes… / E de chofre: – / o alto alarido das sereias de alarme / e o roncar dos motores agressores pelos cimos do céu”.
[verbete escrito em língua galega (português da Galiza)]
Lista de poemas sobre a Europa
– “Guerra – No esquecimento”, Futuro Imemorial (1985)
– “Campanha”, Futuro Imemorial (1985)
– “Pátria – A Galiza”, Futuro Imemorial (1985)
– “Sonho vivo em paisagem morta”, Futuro Imemorial (1985)
– “Pavana ritual para um poeta assassinado”, Futuro Imemorial (1985)
– “Bombardeamento”, Caracol ao Pôr-do-sol (1991)
Antologia breve
GUERRA — NO ESQUECIMENTO
Na noite inacabada dos derradeiros tiros da vaga madrugada quase calma toco o meu camarada aqui ao meu lado na trincheira avançada: Morto! E quero preservar no arquivo da minha alma a sua cara Não a cara fechada já desactualizada do seu agora frio senão aquela outra que tinha sempre aberta em perene risada quando vivo Não posso e fico absorto E vejo que no mundo não há nada mais cruelmente difícil de fixar que um rosto vivo morto E essa certeza gélida marmórea me fere no recanto mais íntimo do espaço limpo do espanto branco da desmemória Cuernavaca México 1958 (Futuro imemorial, 1985)
CAMPANHA
Filho perdido da minha Mãe Moço arrancado da minha Terra Morto soldado desconhecido da minha obscura e errante guerra Onde há uma cova e uma mortalha para o insepulto corpo jacente do combatente Galaaz andante sem Graal à frente nu frio sozinho? Houve batalha? Haverá paz? Houve caminho? New York City 1965 (Futuro Imemorial, 1985)
PÁTRIA
Porque volvió, sin regresar, Ulises. Miguel Ángel Asturias
A Galiza é para mim um mito pessoal maternal e nutrício com longa teimosia elaborado de louco amor filial de degredado (E de facto é também — porquê não confessá-lo — um execrável vício sublimado) A Galiza foi sempre para mim um refúgio mental um jardim de lembranças sossegado um ninho de frouxel acolhedor para onde fugir do duro batalhar e do estridor da Vida e do acre ressaibo do Pecado Subterfúgio subtil e purificador de interior evasão para o descanso da alma na calma pastoril de perfeição de Arcádia da Terra Prometida da imaginação A Galiza é o meu amor constante tranquila e fiel esposa e impetuosa amante sempre como Penélope a tecer na espera ansiosa e plácida paciente e palpitante de retorno final do seu errante e navegante Ulisses — outra quimera! Amo-a como o náufrago desesperado ama a costa longínqua e ansiada que nunca há-de avistar Amo-a com saudade antevista de emigrado que à partida se sabe já fadado a ser ausente morrinhento de nunca mais voltar Porque ninguém jamais regressa do desterro à mesma terra que deixou (O Espaço dissolve-se no Tempo: os lugares e as gentes que os habitam mudam e morrem sempre e nós também morremos e mudamos Posso eu acaso me reconhecer naquele rapaz loiro que chorando partiu um dia crepuscular e montanhoso de Quiroga no Sil há tantos anos e tantos desenganos? Amo-a Amei-a sempre porque nunca deixei de estar ligado a Ela pelo umbigo Porque Ela foi meu berço e onde quer que eu morrer Ela há-de ser o meu íntimo e último jazigo Amo-te enfim Galiza coitada, triste e bela Pátria minha como Tu és como o Senhor num mau dia te fez órfã de história e alienada de alma vespertina submissa e maliciosa rústica e pobrezinha Amo-te sobretudo como eu te quereria como eu em mim te crio dia após dia como um encantamento da minha infância e da minha fantasia Amo-te como eu tresnoitado poeta evangelista te invento e mitifico E, como com Jesus Cristo fez Mateus, visto com ilusórios véus a tua miseranda e cinzenta Paixão e intento com interna e intensa distante devoção pôr-te um nimbo de Glória imaginária num apócrifo Novo Testamento Estoril 1984 (Futuro Imemorial, 1985)
SONHO VIVO EM PAISAGEM MORTA
A Mestre Rodrigues Lapa, ex toto corde
As pombas caem mortas dos ramos da oliveira e Cassandra as recolhe e tenta revivê-las com saliva (Onde estou? Que paisagem é esta?) O Sol brilha indecente e indiferentemente nu a alumiar os sapatos vazios dos cadáveres e a desfilar em nuvens de entressonho os ossos espelhados dos feridos as choupanas em brasa as mulheres abertas e as pétalas vermelhas dos meninos que desfolhou a bomba infanticida (Onde estou? Onde estou? Estou perdido!) Tormentas de cabelos inflamados multidões de membros divorciados em fuga desmedida desnorteiam as moscas verdes da podridão vagabundas da noite arrepiada (Que paisagem é esta? Estou com frio!) Estrelas moribundas e tinhosas percorrem tresloucadas os cemitérios cegos à procura de sombras transparentes e sem dono no céu empedernido sem saída (Por favor, onde estou?) Os canhões como lobos ululam negramente na peçonhenta lividez de Lua que parte em dois o dia tornando absurda a hora que não é nem de Fim nem de Começo (E eu me pergunto alheio: como é que eu vim parar a esta paisagem?) Onde foram as Ninfas e os Sátiros de Rubens? Onde as Festas Galantes de Verlaine A Ilha dos Amores de Camões? E Catulo e o Mirto e a Maçã E as tetas de Afrodite deliciosas E as doces inocências do Natal com Gaspar e Melchior e Baltasar e o presépio de barro do Menino Jesus? Não se pode escapar já nunca mais do apavorante carrocel de Sonho? Haverá que nascer idiotamente sempre para aprender Latim ou qualquer coisa assim em tardes infindáveis masturbadas? E ter que decorar que «A Gália era toda dividida em partes três» E chorar ter o sarampo rir cantar namorar fornicar e acreditar que Deus é Bom e Justo e Todo-Poderoso Princípio e Fim de tudo E tomar aspirinas p´ra as dores metafísicas divinas E uma tarde de sol morrer ainda outra vez lambendo heroicamente as botas militares no Vietname ou dando hebraicamente os dentes de ouro às câmaras de gás ou cuspindo os pulmões aos pedaços nas rochas Franco-regeneradoras do Vale dos Caídos ou entregando a alma lavada com lixívia e encravada a um Comissário gordo entre arames farpados nas tundras da Sibéria (Eu sei que já cá estive Conheço esta Paixão e esta Paisagem Já dormi e acordei e tornei a dormir e a despertar no mesmo amanhecer alucinado de pesadelo eterno marasmado Conheço esta Paisagem com olhos invadidos de água amarga de vergonha e espanto transbordados) Será assim para sempre sem Dia da Ira — e o Arcanjo sempre ausente? Sempre a recomeçar a afronta inexorável do lume das Fogueiras do frio das Masmorras dos nós das Forcas e o lampejar de chumbo das descargas dos Esquadrões da Morte? Sempre as mesmas orgias sanguinolentas dos Ouros e das Copas e as Espadas e dos Paus implacáveis das torvas Utopias aplicadas? Meu velho coração está rebelde hoje Como está revoltado o chapéu maltrapilho com que ele cobre a sua nocturnidade calcinada E ambos se insurgem brandos recusando aceitar tanta ruína de Paisagem macabra e asinina E os dois levantam seu protesto gasto e uma bandeira antiga enfastiada e branca pedindo as tréguas gritando a Deus que rompa o seu longo silêncio criminoso e que decrete o Fim definitivo deste insano terror destro e sinistro Pedindo o absoluto indispensável o Pão o Sal Pedindo a limpa Aurora que desterre p’ra sempre esta Noite abismal incoerente monocorde e teimosa E eu desfilo com eles no peito e na cabeça abraçado à esperança luminosa do nascimento eterno e intemporal da Rosa Amityville New York 1975 (Futuro Imemorial, 1985)
PAVANA RITUAL
PARA UM POETA ASSASSINADO
(GRANADA) 1936
Only the dead are safe. George Santayana
Baruch at-Adonai! Bendito seja Deus! ELE acolheu-te no berço do seu regaço imenso com grandioso, profundo e desolado lamento de Pietà com o que deu Maria na Descida do Corpo inanimado do Filho na Paixão Na noite inexorável que a Morte já escolhera para selar teu canto com seu beijo sombrio ouviram-se na Alhambra e entre os ciprestes do Generalife os soluços das fontes afogados E as colunas morunas nos seus arcos de lua rendilhada tremeram com um forte calafrio Doze Leões em roda no seu Pátio rugiram um trovão vulcânico de pedra que abafou em Viznar a descarga sinistra dos morcegos tricornes inimigos da Luz e da Beleza E todas as guitarras de Picasso e as da Hispânia infinita arranharam a cara num pranto em carne viva querendo para sempre emudecê-las e mostraram pela primeira vez as antigas e íntimas cicatrizes ocultas das colhidas Leopardos e Pombas Arcanjos e Demónios Ancestrais Minotauros de Tartessos e Touros milenários de Assíria, de Guernica de Creta e do Zodíaco e as outras criaturas humildes do bom Deus todos se inteiriçaram naquele infindo instante em que a mão gris de chumbo te arrebatou do teu jardim moreno de Ecos em cio a procura do gume de navalhas em flor e Narcisos sonâmbulos feridos por sombras a galope na espiral da tua noite verde de oliveirais ciganos espectrais FEDERICO, estás morto! Ouves o que te digo? Mataram-te bem morto de uma morte total perpétua, irrevogável O apetite de sangue saciou-se: O Cordeiro morreu morreu o Rouxinol Agora estás moldado em osso talhado em cinza Porém não há quem possa extinguir os teus olhos de lume aluarado Eu os vejo ainda abertos E a cantar! A heróica altura estóica da Tragédia incendeia em vermelho essa canção pasmosa de criança grande cândida e sabiamente assombrada do mundo inédito em redor As lágrimas secaram e o Tempo pôde já respirar à vontade sem angústia O som silencioso do fluir das areias da ampulheta vai esvaindo aos poucos o perfil tenebroso da negrura do crime inexpiável (Na corrente de sombra do Passado apenas mais um elo violento e fantasmal) Porém a voz insólita arderá para sempre vibrando em brasa cada vez mais alta Agora estás a salvo, FEDERICO tranquilo no descanso de granito vasto e seguro das mansões da Morte Nem Ela nem ninguém pode tocar-te!
Estoril
1984
(Futuro Imemorial, 1985)
BOMBARDEAMENTO
[Barcelona, 1938]
Encontrei-a na rua perto da Diagonal Era loira e bem feita Duas covinhas pontuavam-lhe a curva do sorriso auroral Disse-me o nome que os longos anos idos fizeram esquecer Lembro-me do apelido – bem catalão: Carner Era virgem, católica e ardente ………….. ………….. Depois: dois corpos nus em entrelaçamento incandescente Cheiro a sexo misturado com água de colónia húmidos beijos lascivos e inocentes… E de chofre: – o alto alarido das sereias de alarme e o roncar dos motores agressores pelos cimos do céu: ……………. trovões estilhaços calçadas esventradas prédios ao desbarato corpos despedaçados…. ………….. ………….. “Fins a demá! – disseste num abraço perturbado no teu idioma próprio Mas não houve ‘amanhã’ naturalmente Não havia tampouco ontem nem hoje Era guerra e a guerra anula o Tempo Tivemos só um instante furiosamente edénico interrupto naquele quarto ingreme e vacante de amorosa guarida E para sempre nunca mais: Adeus! E um holocausto como despedida. Londres Fevereiro, 1991. (Caracol ao Pôr-do-sol, 1991)
Bibliografia ativa selecionada
GÔMEZ, Joel R. (2015), Ernesto Guerra da Cal, do exílio a galego universal, Santiago de Compostela, Através Editora.
LÓPEZ ZEBRAL, José Manuel (2020), O Ferrolano Ernesto Guerra da Cal, estudo do seu pensamento político, biográfico e de contexto, disponível em: www.academia.edu/42755154/O_FERROLANO_ERNESTO_GUERRA_DA_CAL_ESTUDO_DO_SEU_PENSAMENTO_POL%C3%8DTICO_BIOGR%C3%81FICO_E_DE_CONTEXTO_por_MANUEL_LOPES_ZEBRAL
CAL, Ernesto Guerra da (1985), Futuro Imemorial, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora.
— (1991), Caracol ao Pôr-do-sol, Corunha, AGAL.
Paulo Fernandes Mirás
Como citar este verbete:
MIRÁS, Paulo Fernandes (2022), “Ernesto Guerra da Cal”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.
https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/ernesto-guerra-da-cal/