(1953-)
Em “Autobiografia Imperfeita” Miguel Real explica que o seu nome literário “nasceu no dia em que Luís Martins se zangou consigo mesmo, dando conta disso mesmo em Carta de Sócrates a Alcíbiades, seu vergonhoso amante, seu primeiro livro” publicado em 1987 e identificado autoralmente com aquele pseudónimo. Este título parece de algum modo denunciar a dupla vinculação do autor ao pensamento filosófico e à escrita ficcional, ambos os domínios por si abundantemente cultivados, a que se deve acrescentar uma intensa revisitação ensaística sobre temas fundamentais e personalidades históricas da cultura portuguesa. A sua incursão no género dramático, em colaboração com Filomena Oliveira – Uma Família Portuguesa (2008), O Céu na Terra (2015), As Máscaras de Pessoa (2018), as adaptações dramatúrgicas dos romances de José Saramago, Memorial do Convento (2007) e O Ano da Morte de Ricardo Reis (2018) – , constitui, por seu turno, uma espécie de prolongamento reconfigurado ao campo do teatro, quer da vertente ficcional, quer da ensaística da sua predominante reflexão sobre a identidade cultural portuguesa.
Integrando cerca de 60 títulos, além de uma profusa produção dispersa por capítulos de livros, artigos, recensões, prefácios, a obra de Miguel Real projeta-se segundo uma tripla e discreta, mas tematicamente permeável, qualidade discursiva: filosófica, ensaística e ficcionista. Ou como escreve o próprio autor, referindo-se às coordenadas motivadoras da sua escrita, “ficção para a satisfação da sensibilidade, reflexão filosófica e relativa à cultura portuguesa para satisfação do entendimento”.
Iniciando-se em 1980 com o romance O Outro e o Mesmo, publicado ainda com o seu nome civil, a multímoda carreira literária de Miguel Real intenta efetivamente ativar de modo kantiano as faculdades da sensibilidade e do entendimento com vista não propriamente à construção de uma teoria geral do conhecimento ficcionalmente ilustrada, mas a uma indagação crítica, de âmbito cosmopolita, sobre aspetos fundamentais da condição humana. Indagação mediada, em parte, pelas idiossincrasias e complexos da história política e cultural portuguesa e das suas relações com os territórios nacionais expostos à sua língua e aos efeitos contraditórios da sua expansão colonial.
Poder-se-ia dizer, em termos sintéticos, que as três dimensões da obra de Miguel Real têm como esteio ou fundamento ideológico-doutrinal a tradição filosófica-religiosa e estética-literária da cultura ocidental. A incidência temática dessa obra na cultura portuguesa só pode ser devidamente compreendida à luz desse fundamento congenial com as origens e desenvolvimento da civilização situada no continente europeu. Dois dos seus títulos nomeiam-na explicitamente: o texto dramático, em colaboração com Filomena Oliveira, Europa, Europa! (2016), uma reescrita satírica dos doze trabalhos de Hércules que operam como uma alegoria sobre a sustentabilidade do projeto político europeu; e o romance utópico/ distópico, com traços devedores da ficção científica, O Último Europeu (2015).
Num registo adequado às estratégias narrativas devedoras da tradição do utopismo literário, O Último Europeu inicia-se com referências à biblioteca e ao livro como objeto e espaço extintos, como marcas de um tempo remoto em relação ao tempo em que se situa a ação, o ano da era comum de 2284. Alcançado, cem anos antes, em 2184, um nível de evolução tecnológica que dispensava o recurso àqueles suportes e dispositivos de comunicação, ordenação e socialização do saber científico e humanístico, os “Cidadãos Dourados da Nova Europa” teriam passado a processar o seu pensamento e a sua escrita por via exclusivamente mental, porém mediados e controlados pela intervenção do “Grande Cérebro Eletrónico”. Para esse fim, ter-se-ia operado uma transformação biogenética nos humanos novi europeus, uma modelização eugénica do seu ADN e uma reorganização da sua estrutura encefálica pela geração de uma nova componente cerebral, o hipercórtex, com a função de assegurar a preservação de uma ordem social perfeita e harmoniosa. Este romance de Miguel Real é, portanto, alegoricamente construído em torno de uma projetada “Grande Ordem Futura Ideal” a partir de referências, marcas, indícios e possibilidades daquela que é a nossa contemporânea e histórica (de)sordem global. Na história do romance, essa “Nova Europa”, uma vez ameaçada por inimigos externos, será vencida pela prevalência dos impulsos do cérebro “mamífero e reptilino” da natureza humana bárbara, privada do hipercórtex, porém relativamente autónoma no seu campo de ação, livre das interferências e do comando de uma inteligência artificial moduladora da subjetividade individual. A sucessão de datas relevantes até 2284, o ano em que colapsa a “Nova Europa”, vai sendo fornecida pelo narrador omnisciente, “Reitor, membro superior da direção dos museus da História da Europa” (15). Este narrador, ocupando a função diegética de relatar na primeira pessoa o desenrolar dos acontecimentos dramáticos que configuram o enredo do romance, fora escolhido pelo “Conselho dos Pantocratas” – espécie de colégio de filósofos-reis incumbidos pela sabedoria da sua provecta idade de governarem com justiça e sentido de igualdade a “Nova Europa” – para “escrever um livro, artesanalmente, ao modo como estes eram escritos até ao século XXI – Crónica da Criação e Extinção da Nova Europa” (37).
Esta imbricação quer de níveis narrativos processados em registos discursivos discretos, o da crónica e o do diário, quer dos correspondentes e diferenciados estatutos, de cronista e de diarista, do narrador, permite justapor contrastivamente a evocação histórica da origem e formação da sociedade europeia ideal com a enunciação da sua progressiva e iminente destruição. Nesse vai e vem discursivo entre crónica e diário, nessa oscilação entre níveis diegéticos relativos à rememoração do passado e à enunciação do presente, o narrador fornece um conjunto de datas que pontuam a sequência de eventos até ao momento isocrónico do início da sua dual narração. Sem adotar uma enumeração sucessiva de datas – opção que a ser autoralmente adotada debilitaria a literariedade do texto –, mas embutindo a sua identificação nos meandros e na tessitura intricada dessa binária narração, elas são referidas de modo a assinalar a crescente entropia do processo histórico. Com a implosão do que restava do projeto político europeu os eventos apocalípticos que se seguem ocorrem em datas que ecoam a simbologia funesta associada ao terror representado literariamente na distopia de Orwell, 1984. A ressonância intertextual do numeral 84, pela frequência com que ocorre e pela função referencial e ordenadora da cronologia estabelecida na “Crónica” elaborada pelo reitor, opera, no entanto, ambivalentemente quanto ao significado, positivo e negativo, dos eventos que lhe estão associados. Essa ambivalência de sentidos é um indício da própria ambivalência da estrutura romanesca de O Último Europeu e da sua dual inscrição genológica, oscilante entre a utopia e a distopia.
A estrutura romanesca de O Último Europeu complexifica-se na imbricação dos seus dois principais níveis narrativos, porquanto a composição da referida Crónica, em parte reconstitutiva e retrospetivamente elaborada sobre a fundação (Criação) da Nova Europa vai sendo construída em simultâneo, por vezes em convergência, outras vezes alternadamente, com os eventos narrados à maneira de um diário pessoal pelo Reitor em processo de contar o estertor da “Nova Europa”. O narrador desempenha, portanto, a dupla função diegética de cronista e diarista. A criativa originalidade do Último Europeu de Miguel Real resulta assim, não só da imbricada tessitura que narrativamente constrói com níveis diegéticos que cumprem funções diferentes, de crónica histórica e de diário pessoal, mas também, e sobretudo, do jogo problematizante que faz com as categorias genológicas da utopia e da distopia, por forma a deixar ao leitor a tarefa hermenêutica de as convocar como instâncias reguladoras da sua livre interpretação.
[1] Texto escrito para a Vaca Malhada, Revista de Filosofia dos Estudantes da Universidade do Minho.
Antologia
Nascer e Morrer
[…]
As Imagens
Os neo-europeus, como já informei, não distinguem realidade exterior da realidade mental.
Ambas integram uma única realidade visível, que os olhos interiormente vêem e a mente.
O que se percebe é real, sejam imagens nascidas da linguagem Universalis, sejam cerebrais provindas das redes neurológicas de programas informáticos implantados no hipercórtex , sejam imagens provindas do Grande Cérebro Electrónico, sejam, ainda, imagens provindas da retina.
Tudo são imagens, isto é, imagens reais.
Não existem diferenças substanciais entre as imagens.
O importante é a sua natureza, não a sua origem, pregaram os nossos Pais Fundadores. O mundo de um neo-europeu é constituído por quatro tipos de imagens informativas, nenhum superior aos restantes.
Tudo são imagens, que o neo-córtex e o hipercórtex elacionam entre si.
Por isso, as imagens transmitidas simultaneamente a todos os neo-europeus no primeiro dia da Primavera constituem um arealidade.
Nesse caso, uma realidade pertencente ao passado, aos povos de que a Nova Europa descende.
Consiste num processo anual catártico, activado para esgotar de emoção e terror elementos dos sistemas nervosos periféricos que escapam ao controlo do hipercórtex.
Todos vêem o que significa existir num tempo e num território onde as emoções eram dominantes e onde o fundo inconsciente do neo-córtex, herança dos nossos antepassados primatas, constituía critério selectivo de acção.
Todos experimentam vivencialmente o modo de vida dos antigos europeus quando estes tinham de comer com os dentes, mastigar com a língua, defecar pelo canal rectal e parir pelo canal vaginal.
Ao longo de uma penosa tarde, os Cidadãos Dourados, de vida cómoda e confortável ritmada pelo prazer individual e pela utilidade social, assistem ao trabalho de parto de uma bárbara desconhecida que tenha recentemente dado à luz um filho.
As de são horrendas, feíssimas, terríveis, uma mulher de pernas abertas numa cama, dorso e cabeça levemente alteados, sustentados pelos cotovelos, guinchando berros apavorados, transpirando como se tivesse corrido uma prova de alta velocidade, respirando ofegantemente, os olhos pulados aterrorizados, com três mulheres em seu redor, arqueando esbaforidas, ansiosas, dando ordens à parturiente.
Esta agitada, receosa, olhar amedrontado, convoca a totalidade dos músculos pélvicos, faz força, força bruta, franqueando desmesuradamente as duas coxas molhadas, o sexo húmido, gotejando um líquido viscoso esbranquiçado.
Os neo-europeus, espectadores desta verdadeira cena de terror, escutando os gritos apavorados da mulher, vêem na , enojados, o corrimento pastoso da vagina sua mente ensopada de pêlos e gotículas de sangue, presumem ouvir os estalidos dos osso da bacia a dilatarem-se, sentem nas suas faces o suor pegajoso das três mulheres, nas suas mãos e pernas o tremor da bárbara parturiente, na sua barriga a dilatação monstruosa, animalesca, de um ser vivo móvel e activo no seu interior.
No final, tão esgotadas fisicamente como a parturiente, petrificados emotivamente, contemplando a imagem do corpo sujo e feio do nascituro eergido da cloaca sangrenta da vagina, os neo-europeus respiram de alívio, conscientes do privilégio de serem habitantes de uma era feliz.
Morrer na Nova Europa
Não existe poesia no nascimento natural, só dor, medo físico, pavor psíquico, ânsias agoniativas, nojo visceral.
Sobretudo dor, algo que os neo-europeus quase desconhecem por completo, mesmo na hora da morte.
Nesta o hipercórtex isola a mente do corpo, anestesiando aquela sempre que os nervos efleuentes canalizam volumes insuportáveis de dor para o neo-córtex.
Como a emoção, os nossos cientistas não conseguiram ainda isolar totalmente a sensação de dor recebida no cérebro, mas em grande parte ela já foi abafada por via de anestesias espontâneas dimanadas do hipercórtex.
Porém, quando por velhice e incapacidade de recuperação ou substituição dos órgãos nos Hospitais de Regeneração, se dá o colapso geral do corpo, o hipercórtex, tentando reparar de imediato um ou outro órgão, acaba por sucumbir ao padecimento geral, enquanto em regime de síncope, desligando-se face ao colapso da quase totalidade dos órgãos do corpo.
De facto, imperfeição nossa, os neo-europeus, falecidos naturalmente, morrem com dor, e dor excessivamente aguda.
Mas só no acto da morte sentem uma dor insuportável, que anuncia o fim derradeiro do corpo.
Os restantes neo-europeus morrem sem dor e sobretudo vivem sem dor.
Quando as inspeções aleatórias e contínuas ao estado de saúde dos Cidadão Dourados detectam a impossibilidade de regeneração de alguns dos órgãos vitais, o visado é de imediato alertado e ele próprio, sem comoção, se oferece para morrer.
Sem drama, muito menos tragédia.
Estar vivo é simplesmente o estado anterior a estar morto, como o Verão é a simples consequência da Primavera e a flor da folha.
Todos o sabem.
E todos sabem que os Cidadãos Dourados vivem mais e melhor do que toda a restante humanidade, passado e presente.
Por isso, aceitam morrer com prazer, para que outros nasçam e o número de 100 milhões de habitantes se mantenham estável.
O neo-europeu dirige-se para o Hospital da Regeneração do Conglomerado, onde lhe é ministrada a dose de um fármaco entorpecedor.
Durante duas horas, acompanhado por companheiros por si escolhidos, ou, se preferir, em isolamento, o Cidadão Dourado revê a sua vida individual, gravado no hipercórtex e no Grande Cérebro Electrónico.
No final, acena que está pronto e uma equipa médico-informático aplica-lhe novo fármaco, que o adormece e lhe desliga o hipercórtex.
Já não vive.
O corpo vai esmorecendo lentamente.
A equipa médico-informático recolhe o hipercórtex para o arquivo e o corpo é de imediato pulverizado.
O Grande Cérebro Electrónico recebe ordem para gravar num ficheiro oculto a totalidade dos registos e para apagar a rede de semântica de imagens que compunha o universo do Distintivo do morto.
Este morre não só fisicamente mas também mentalmente para os seus amigos e familiares que se esquecem dele de imediato, como se este nunca tivesse existido.
A sua existência fica registada apenas no Grande Cérebro Electrónico.
As instituições mantêm-se, a sociedade permanece, os indivíduos passam, desaparecem.
Não há na Europa, como já referi, história individual, pessoal, não existe passado para a origem de cada Cidadão Dourado, como não existe futuro.
Nasceu-se, viveu-se com prazer, depois morreu-se.
Todos o sabem desde crianças.
Nascer na Velha Europa
Aterrados, os neo-europeus assistem ao fenómeno brutal do nascimento de uma criança segundo os rituais humanos das Pré-História, hoje prolongados pelos nossos vizinhos Bárbaros da Velha Europa dos Baldios.
Transacionamos a autorização para a gravação das imagens do parto por uma volumosa quantidade de cereais, vegetais e legumes frescos, sustento farto de uma família de dez membros durante um mês.
Não vale a pena acenar com dinheiro, os géneros alimentícios atingem preços altíssimos no mercado negro da Velha Europa.
Acena-se com comida fresca e logo se voluntariam centenas de raparigas grávidas.
Ter filhos parece ser o divertimento exclusivo das jovens vetero-europeias.
Face a uma oferta tão imensa, poderíamos baixar a quantidade de comida, mas a Nova Europa sobeja de alimentos deve ostentar uma manifesta superioridade face aos Bárbaros, evidenciando-lhes a nossa proeminência em todos os aspectos da vida social.
Não existem hospitais públicos na Velha Europa.
Só hospitais reservados para a parentela superior dos clãs familiares, uma rede de hospitais e clínicas para cada clã.
A maioria da população, servindo mas não pertencendo à hierarquia de nenhum clã, não possui assistência médica.
Regressou às antigas mezinhas caseiras, às pomadas tradicionais, confecionadas por velhas mulheres, aos chás de ervas medicinais aos unguentos feitos com gordura de animal e folhas oleosas.
Os médicos foram substituídos por curandeiros populares, por endireitas, por bruxos, que receberam das trisavós antigas receitas naturais.
A maioria dos habitantes da Velha Europa morre antes de perfazer 50 anos e os membros superiores da hierarquia dos clãs, mesmo hospitalizados, não ultrapassam os 70 anos.
Face a tempos anteriores, como os séculos XX e XXI, a medicina sofreu um imensíssimo retrocesso.
Desde a grande Fome que os Clãs não promovem a investigação científica e os antigos avanços médicos do século XXI perderam-se, sendo hoje replicados, muitos deles, péssimas salas de operações e os medicamentos fabricados em rudimentares laboratórios, infestados de ratos e baratas.
Por isso, face à nossa recusa de os recebermos nos nossos serviços de saúde, os chefes superiores dos Clãs servem-se dos complexos hospitalares asiáticos e de médicos chineses, pagando a peso de ouro cada minuto da sua estadia.
Adoecidos, os Bárbaros, em desespero, elevam os seus clamores e os seus rogos a um deus inescrutável e desconhecido, por ninguém nunca visto, mesmo entrevisto, que os deveria auxiliar no transe.
O mesmo acontece com a bárbara parturiente, que suplica uma boa hora a esse deus incógnito, fazendo coro com as três mulheres agachadas em torno do monte de carne da sua barriga, espremendo-a, empurrando a criança para o canal vaginal.
Ainda que anualmente habituados a um espectáculo de horror e tortura, os meus concidadãos abrem a boca de espanto, incapazes de perceber como a humanidade sobreviveu até ao momento da descoberta do parto sem dor e, depois à invenção maravilhosa dos Criatórios.
Lamentam-se do pavor a que os seus antepassados eram submetidos e regozijam-se por terem nascido da indolor e higiénica fusão laboratorial de células.
Nem percebem que sentimento é esse que prende uma mãe ao filho, já que aquela devia odiar profundamente quem a fazia passar por semelhante tortura.
Nem mesmo percebem o sentimento que une um homem a uma mulher, designado por amor, institucionalizado pelo casamento, cujo resultado evidente consiste no sofrimento físico da mulher.
Finalmente, após uma hora de suplício mental, os meus concidadãos vêem a cabeça peluda e ensanguentada da criança emergir como uma avantesma pré-histórica.
Uma das três mulheres ampara-a, puxando-a para fora, outra com as duas mãos espalmadas sobre a rotundidade da barriga, empurra a bebé enquanto a parturiente se revolteia de dores, chiando e latindo, forcejando como um reles mamífero.
A terceira mulher ajeita os panos lãzudos onde estenderá o nascituro, sujo, coberto de escorrências e enxúndias sanguíneas, que, por força da atrocidade do nascimento, berra mais do que a mãe, fazendo um coro lamuriento com esta.
As imagens terminam com as bocas hiantes da mãe e do filho gritando como duas feras.
Sempre um alívio, a chegada do final da gravação.
Por três ou quatro vezes, grupos de Cidadãos Dourados tinham feito chegar aos Sincretistas e ao Conselho dos Pantocratas a exigência para que se cessasse definitivamente com aquelas horas de puro horror que anualmente os neo-europeus eram submetidos.
O Conselho, animado das melhores intenções, considera que não basta que os Cidadãos Dourados saibam como se vivia outrora, aprendendo nos Colégios.
É forçoso que o revivam na sua mente, por vezes até ao mais ínfimo pormenor, que provem e se sujeitem ao antigo pavor do medo do pânico, experimentem o sabor do sofrimento para que, catarticamente aliviados, prestem íntegro valor à sua existência actual,suave e harmónica.
Todos os anos se arrasta este debate com milhares de mensagens.
Os Sincretistas ordenam-nas por datas e valor racional dos argumentos e elaboram um relatório, enviado a todos os Cidadãos Dourados.
Porém, com razão, nunca o Conselho dos Pantocratas, animado de pareceres do Grande Cérebro Electrónico, deu deferimento ao relatório, forçando a totalidade dos Cidadãos Dourados a experimentar o leque de sentimentos bestiais e medonhos de que os Pais Fundadores heroicamente os libertaram, iniciando uma nova civilização racional.
No primeiro dia da Primavera, os Cidadãos Dourados têm oportunidade de, por interposta pessoa, regressar momentaneamente aos alvores da nossa civilização e assim apreciar, comparativamente, as maravilhosas benesses da actualidade.
É um ritual, a única liturgia existente na Nova Europa, e, pelos seus resultados, merece ser anualmente repetida, alega com sensatez o Conselho dos Pantocratas.
Paradoxalmente, o que presumíamos ter sido definitivamente erradicado dos nossso hábitos caiu-nos em cima de um medo avassalador em menos de um mês com a invasão das naves dos Mandarins orientais e a subsequente invasão dos Bárbaros da Velha Europa.
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Real, Miguel (2015), Último Europeu. 2284, D. Quixote, p. 97-104.
Bibliografia ativa selecionada
REAL, Miguel (1998), Portugal: Ser e Representação. S/L, Difel.
— (2007), A Morte de Portugal. Porto, Campo das Letras.
— (2008), Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa. Porto, Quidnovi.
— (2009), A Ministra. Porto, Quidnovi.
— (2011a), Introdução à Cultura Portuguesa: Séculos XIII a XIX. S/L, Planeta.
— (2011b), O Pensamento Português Contemporâneo 1890-2010: O Labirinto da Razão e a Fome da Deus. S/L, INCM.
— (2012), A Vocação Histórica de Portugal. S/L, Esfera do Caos.
— (2014), Nova Teoria do Sebastianismo. S/L, Dom Quixote.
— (2015a), O Último Europeu: 2284. S/L, Dom Quixote.
— (2015b), Portugal: Um País Parado no Meio do Caminho (2000-2015). S/L, Dom Quixote.
REAL, Miguel & RAMOS, Manuel da Silva. (2016), O Deputado Da Nação. Lisboa, Parsifal.
Bibliografia crítica selecionada
CÉU e SILVA (2017), “Entrevista a Miguel Real. A nossa história é um sugadouro de mitos”, in Diário de Notícias.
https://www.dn.pt/artes/miguel-real-a-nossa-historia-e-um-sugadouro-de-mitos–7582438.html
FERNANDES, Vítor Joaquim Neves (2017), O pensamento de Miguel Real: Portugal entre a Europa e a Lusofonia, Universidade do Minho. http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/56236
REAL, Miguel (2011), “Um bom romance deve desmascarar a cultura descartável,” in Das Letras Literatura. Mini e Auto-Entrevistas.
http://dasletras.com/mini-e-auto-entrevistas/miguel-real-um-bom-romance-deve-desmascarar-a-cultura-descartavel/
— (2018), “Biografia Imperfeita”, in Vaca Malhada 14, Revista de Filosofia, Universidade do Minho.
https:// issuu.com/vacamalhada/docs/avm_14_f305c25b18ffc0
RITA, Annabela; Luís Carla Xavier Luís (2020) “Entrevista a Miguel Real”, in Revista Metalinguagens, v. 7, n. 3, Dezembro de 2020, p. 8-30, Diretoria de Humanidades do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo/Campus São Paulo, pp 8-30.
http://seer.spo.ifsp.edu.br/index.php/metalinguagens/article/view/892
SILVA DURO (2015), “Entrevista a Miguel Real. A nossa elite é canina na obediência e macacóide, in Diário de Leiria.
https://jornaldeleiria.pt/noticia/miguel-real-filosofo-a-nossa-elite-e-canina-na-obediencia-e-macacoide-face-ao-estrangeiro-6577
José Eduardo Reis
Como citar este verbete:
REIS, José Eduardo (2021), “Miguel Real”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/miguel-real/