VALERIO MAGRELLI

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VALERIO MAGRELLI

(1957- )

Nascido em Roma em 1957, Valerio Magrelli é poeta, tradutor e professor de Literatura Francesa na Universidade Roma Tre. Com mais de trinta obras publicadas, foi galardoado com o Prémio de Poesia Italiana em 2002, para além de lhe ter sido atribuído o Prémio Nacional para a Tradução em 1996 como diretor da coleção da editora Einaudi “Scrittori tradotti da scrittori”. Colaborador na coluna cultural do jornal la Repubblica, Valerio Magrelli participou ainda no guião do filme musical Transeuropae Hotel (2012) de Luigi Cinque.

A Europa de Valerio Magrelli é a de um poeta inserido no seu tempo e que dispõe de todos os elementos, contradições e paisagens contemporâneos para captar um clima tecnológico sem perder a entoação social e política, construindo assim uma poesia (auto)percetiva (cf. Magrelli 2018: 4). Nas palavras do autor, cada volume de poemas marca uma prestação de contas consigo mesmo e com o mundo. As suas páginas suspendem o bulício constante do quotidiano e constituem a prova de uma reorientação do escritor. Cada novo livro assinala, desta forma, o fim do período em que o poeta pôs em causa a sua mundividência desde os textos precedentes:

Ho sempre considerato il volume di versi come un momento di redde rationem, un luogo in cui arrestare l’oscillazione, tagliare il nodo di Gordio della variante, insomma, far cessare quella mouvance […] Sono convinto che una raccolta, laddove non si tratti di un’opera prima, costituisca innanzitutto un mezzo di segnalazione. Come il bengala lanciato da chi si è perso, credo che essa corrisponda all’esito di uno smarrimento. Il suo senso profondo risiede infatti nella distanza dalla precedente, anzi, nell’averla definitivamente persa di vista: il nuovo testo è la testimonianza di un avvenuto disorientamento. (ibidem: 576-577)

Deriva desta visão progressiva da literatura uma poética evolutiva, em que cada obra conquista um novo espaço do tempo presente. Não só na forma como lê poesia, mas também na sua própria escrita, Valerio Magrelli privilegia a atenção à palavra, a pedra de toque da materialidade do texto a nível lexical, sintático e retórico, que distingue fundamentalmente o texto literário dos restantes: “Mi piace invece un’analisi che spieghi non il poeta, non l’opera, non il testo, non il verso, ma la sillaba. È questo ancoraggio alla materialità – lessicale, sintattica, retorica – del testo ciò che manca nelle interpretazioni di taglio filosofico” (Sinfonico 2013: 402).

A antologia Nature e Venature (1987) sobressai pela exatidão dos vocábulos glosados, pelo gosto da composição detalhada e pelo rigor intelectual das associações – “Piroscafo casa di fuoco / calafatata e alta / entra nell’acqua / come un santo battista” (Magrelli 2018: 110). Contudo, Magrelli não cai na poesia meramente descritiva, pois a minúcia serve de base para a constatação do absurdo, do enigma geral, paradoxal, e envolto numa ironia subtil. O objeto poético é de tal forma observado ao pormenor que se transforma em declaração geral sobre o tempo presente. Magrelli introduz primeiramente a Europa na sua obra através deste prisma associativo:

A volte dal disegno floreale
di una tovaglia
sorge un’Europa animata
Durante il pranzo tra bottiglie colme
filiforme e ombreggiato spunta
lento il profilo della Grecia
il cigno. (ibidem: 126)

A geografia contamina a cena de repasto, o continente ergue-se a partir da tradição e todo um mapa europeu surge abstratamente da observação atenta do padrão da toalha de mesa. As garrafas marcam os cumes do continente e o perfil do cisne torna-se a Grécia, lembrando Zeus quando seduziu Leda. Trata-se de uma Europa “animada” porque nascida da atenção ao detalhe mundano, uma Europa que se constrói a partir dos pequenos elementos da mesa, também lugar de convívio e partilha, e por esse motivo dinâmica.

Nos seus Esercizi di Tiptologia (1992), Valerio Magrelli dá vida a um objeto literário híbrido, composto de poemas, prosa, traduções, citações e anagramas. O título provém do verbo grego typtein (bater), que nos encaminha para a digitação, o premir de teclas, ou seja, um registo dactilográfico. O Norte da Europa é versado na parte “Viaggio d’inverno”, dominada pelas paisagens turísticas de Heligolândia, o arquipélago alemão, “lastra di pietra immersa nell’acqua, inclinata / dolcemente verso la Gran Bretagna” (1992: 223), as Alemanhas recentemente unidas (225), e a Porta Westfálica, “una Berlino idrica in mezzo / a falde freatiche, bacini artificiali, / e la pace e la guerra e la lingua latina” (227). Se estes poemas assumem o olhar de um viajante sobre as cidades alemãs e prevalece a atenção aos detalhes históricos e quotidianos – “Il panorama op-art si squaderna tra alberi / e acque, mentre i cartelli indicano ora / una torre di Bismarck, ora il mausoleo di Guglielmo, / la statua con la gamba sinistra istoriata / dalla scritta: «Manuel war da» (226) – ironiza-se também sobre a uniformização turística da Europa atual:

Ma il progetto si arresta, l’esplosivo non basta,
meglio il turismo. Ed ecco le duty-free, questi negozi
porto franco, e l’isola sdoganata, tarlata, maneggiata, limata,
sagomata seggiola zoppicante, cartuccia da buttare e dunque
BOSSOLO,
disco intoccato, rimasto a galleggiare
nelle mille medaglie-souvenir. (223)

Em Didascalie per la Lettura di un Giornale (1999), a obra mais provocadora de Magrelli a nível formal, o poeta combina géneros, não necessariamente literários, numa antologia dividida segundo as diferentes secções do jornal. As didascálias encaminham-nos para o texto dramático, contendo a obra um fundo cómico, mas convoca-se sobretudo o texto jornalístico, sendo que os títulos dos poemas percorrem e imitam as secções de um jornal contemporâneo. Numa tentativa de afrontar esta antimatéria poética, Magrelli parodia, mimetizando, a sua estrutura e desenvolve uma “paisagem antropológica” em que a comunicação se transforma no “instrumento de uma anestesia planetária” (ibidem: 581).

No poema intitulado “Esteri”, correspondente à parte do jornal dedicada a notícias internacionais, Valerio Magrelli debruça-se sobre a Europa mitológica e o Euro, constatando a transformação da jovem raptada pelo amante na divisa internacional do continente:

Euro, neo-metamorfosi
mito nuovo di zecca
con una fanciulla rapita
dal suo bestiale amante
e tramutata in valuta
resa moneta vergine. (ibidem: 284)

Magrelli, na sua atenção à ambiguidade da palavra poética, explora o duplo sentido da expressão “nuovo di zecca”, que significa “novo em folha” na expressão popular, mas que literalmente quer dizer “saído da casa da moeda”. Deste modo, o poeta enfatiza as metamorfoses passadas e presentes da Europa através do mito associado agora ao sistema monetário do continente.

Já o poema “Meteo” esboça um retrato irónico de um continente prometeico, devorado pelos picos (e simultaneamente, em italiano, pelos pássaros) das temperaturas máximas:

L’eterno ritorno dell’anticiclone
e l’area di bassa pressione
Europa, Prometeo, carcassa
divorata fra i picchi delle massime. (ibidem: 289)

Na sua antologia mais heterogénea, Il Sangue Amaro (2014), Magrelli transforma em palavra poética muitas impressões sobre artistas, poetas, escrita, leitura e celebrações. A obra alarga-se ao continente europeu quando contempla, logo na abertura, poemas intitulados “Due artisti francesi” (429), “Due poeti italiani” (431), “Due artisti tedeschi” (433) e ainda “Suites inglesi” (506). A cidade de Estrasburgo faz a sua aparição em “Natale a Strasburgo, città adottiva di Gutenberg”. Não obstante o facto de ser uma cidade-símbolo da Europa, é exaltada antes como berço da imprensa. Este poema toma uma amplitude particularmente internacional ao construir-se em torno das diferenças entre a produção agrícola mediterrânica e as primeiras impressões de livros: “il paese dove il torchio / non ha olive da pressare / ma volumi da stampare. / […] / Scorre inchiostro invece che olio” (444).

Por fim, em notas de rodapé que surgem cada vez mais frequentemente na sua poesia da maturidade, Valerio Magrelli tece uma ligação irónica entre um problema concreto que o perturba (a ocupação do espaço público pelas autocaravanas) e a Segunda Guerra Mundial, numa associação inusitada de diferentes formas de apropriação. O poema “E gli altri?” interroga-nos:

a) Vorrà dire qualcosa il fatto che il primo caravan, con il nome di Wohnauto («casa viaggiante»), vide la luce in Germania, nel 1931?
b) Esisterà un possibile rapporto fra la prepotente annessione del terreno collettivo da parte della roulotte privata (Anschluß), e il fatto che, in attesa di dedicarsi alla sua egoistica invenzione, l’ideatore, Arist Dethleffs, avesse lavorato nella fabbrica del padre, adibita alla produzione di fruste? (ibidem: 546-547)

O efeito cómico que resulta destas possibilidades baseia-se na comparação hiperbólica estabelecida entre um problema mundano, que deu origem ao poema, e o capítulo mais negro da História europeia do século XX, levantando suspeitas no leitor sobre as tendências imperialistas e violentas dos condutores de caravanas. Destarte se delineia uma apologia do respeito mútuo e do altruísmo, que neste poema asseguram não só o bem-estar rodoviário do sujeito poético, mas a convivência pacífica dos povos no continente europeu.

Valerio Magrelli introduz a Europa na sua poesia ao atentar em elementos do presente que remetem para a História recente. Desta forma, é através da perceção quotidiana que Magrelli explica quanto da nossa atualidade pertence a uma moldura mais larga, continental, traçando pontes poéticas e causais entre o particular observado e o passado da Europa.

 

Lista de poemas sobre a Europa

“A volte dal disegno floreale”, Nature e Venature (1987)
“Alle lagrime, rovi”, Esercici di Tiptologia (1992)
“Helgoland”, Esercici di Tiptologia (1992)
“Parlano”, Esercici di Tiptologia (1992)
“Porta Westfalica”, Esercici di Tiptologia (1992)
“Esteri”, Didascalie per la Lettura di un Giornale (1999)
“Meteo”, Didascalie per la Lettura di un Giornale (1999)
“Amo la carta igienica tedesca”, Il Sangue Amaro (2014)
“Natale a Strasburgo, città adottiva di Gutenberg”, Il Sangue Amaro (2014)

 

Antologia breve
Quando tempo fa le chiesero cosa la rendesse orgogliosa della sua Germania, Angela
Merkel diede una risposta sorprendente, ma illuminante: “I nostri infissi, che si
chiudono isolando perfettamente le finestre”
(da un articolo del «Corriere della Sera»)

Amo la carta igienica tedesca
spessa come un arazzo,
tutta in bassorilievi lavorata,
folta come un tappeto,
calda come una coltre di feltro
(vedi Beuys).

E gli infissi!
Quegli infissi massicci
dove tutto si incastra a perfezione
malgrado il peso,
grazie all’enorme peso
di finestroni e porte.

Soltanto un popolo così atterrito
dalla fragilità poteva fare
cose talmente grevi e gravi, cose
che lo proteggono dal Fuori,
ma che insieme spalancano
le segrete del Dentro.

in Il Sangue Amaro (2018: 434)

Natale a Strasburgo, città adottiva di Gutenberg 

Benvenuti al Monte Buono,
benvenuti a Gutenberg,
il paese dove il torchio
non ha olive da pressare
ma volumi da stampare.

Questi sciami di parole che si posano sui fogli
sono api e danno miele, sono vermi e danno fiele.

Scorre inchiostro invece che olio,
quando l’arte della macchia lascia
carta impressionata come
il marchio di un vitello, come
un soffio d’acquerello.

Questi neri tatuaggi possono essere poesia
o la feccia della feccia, feccia di burocrazia.

Benvenuti al Monte Buono,
benvenuti a Gutenberg
la città dove la mola
non ha grano da schiacciare
ma scrittura da incarnare.

in Il Sangue Amaro (2018: 444-445)

Helgoland

Una lastra di pietra immersa nell’acqua, inclinata
dolcemente verso la Gran Bretagna, rampa di lancio
verdissima, brughiere e covi di U-Booten,
cava e cariata, isola e arsenale mimetico.
Poi, conquistata, cancellarla via, grattarla dalle carte
geografiche sfregando con l’ovatta il bollino argentato,
come per controllare se si vince qualcosa. Il tritolo
risuona per mesi nel cavo dell’inverno, soffia
sul Mare del Nord, e dentro, e sotto, finché il villaggio
viene segato in due. Ora, sul taglio delle nuove scogliere
(nuove di zecca, fresche di conio nel fervere
del bricolage litoraneo), la sua storia sta iscritta negli strati
a vista. Sotto l’erba, le maioliche di qualche cucina, asfalto,
salottini, condutture e cablati
in una dolce lezione di anatomia all’aperto, aperta
ai quattro venti.
Ma il progetto si arresta, l’esplosivo non basta,
meglio il turismo. Ed ecco il duty-free, questi negozi
porto franco, e l’isola sdoganata, tarlata, maneggiata, limata,
sagomata seggiola zoppicante, cartuccia da buttare e dunque
BOSSOLO,
disco intaccato, rimasto a galleggiare
nelle mille medaglie-souvenir.

in Esercizi di Tiptologia (2018: 223)


Bibliografia ativa selecionada

Magrelli, Valerio Magrelli (2018), Le Cavie. Poesie 1980-2018, Turim, Einaudi.

Sinfonico, Damiano (2013), “L’incanto del gioco. Intervista a Valerio Magrelli”, Enthymema, n. 9, pp. 395-406.

 

Maria Beatriz Almeida

Como citar este verbete:

ALMEIDA, Maria Beatriz (2021), “Valerio Magrelli”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6.

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