(1957-)
Jean-Philippe Toussaint é um escritor e realizador belga de língua francesa, formado em ciências políticas e em história contemporânea. A crítica repara amplamente nele em 1985 depois da publicação, na muito prestigiosa editora Minuit, do romance La Salle de bain [O banheiro, 1989, editora Nova Fronteira, na tradução para português do Brasil]. Com este romance, Toussaint inscreve-se na tendência estética que a crítica caraterizou como sendo minimalista, pós-moderna, irónica, lúdica e citacional, e designou na altura por “jovens autores de Minuit”: Echenoz, Gailly, Chevillard, Deville, entre outros.
Se este romance de culto descrevia ironicamente a evolução de uma personagem individualista, entre a obsessão com a casa de banho – “Quando comecei a passar as tardes na casa de banho, não tencionava instalar-me nela; de modo algum, passava lá horas agradáveis, meditando na banheira, por vezes vestido, por vezes nu” (Toussaint 2005: 11; tradução nossa) – e deslocações surreais, lúdicas e substitutivas numa Europa pré-Schengen (Itália, (embaixada da) Áustria, França, Bélgica, etc.), já a criação literária posterior se interessará pela Alemanha em La Télévision (1997) [A televisão, 1999, Editora 34, na tradução para português do Brasil], antes de circular pela Ásia, nos quatro romances que formam o “Ciclo Marie Madeleine Marguerite De Montalte” (MMMM), nomeadamente Faire l’amour (Japão) (2002) [Fazer amor, 2005, editora Globo, na tradução para português do Brasil] e Fuir (China) (2005) [Fugir, 2008, editora Bertrand Brasil, na tradução para português do Brasil].
Contudo, é o mais recente romance – La clé USB (2019) [A pen USB; tradução nossa] – a abordar mais explicitamente a questão da Europa. Aliás, ficou pré-selecionado na categoria “romance” para o Prémio do Livro Europeu 2019, um galardão que recompensa todos os anos um romance e um ensaio que exprimem uma visão positiva da Europa.
La clé USB conta os percalços e as angústias de um funcionário e perito da Comissão europeia, em Bruxelas, Jean Detrez, o qual trabalha com assuntos sensíveis e estratégicos tais como “a prospetiva estratégica” (Toussaint 2019: 11; tradução nossa), isto é “a antecipação” (idem: 21; tradução nossa) dos grandes desafios globais e suas repercussões no futuro da Europa:
Trabalhava o dia todo sobre o futuro. O futuro, para mim, tornara-se uma noção perfeitamente abstrata, um mero dado que integrava no meu trabalho, com as ferramentas de que dispunha para modelizá-lo e tratá-lo de forma especulativa, num quadro delimitado, e com regras específicas. Tornara-me um perito do futuro, mas do futuro da alimentação, do futuro da NATO – do futuro do mundo, nunca do meu próprio futuro (idem: 45; tradução nossa).
Mas eis senão quando, neste ambiente bastante impassível e confortável, Detrez é abordado por dois lobistas da Europa de Leste, que tentam durante vários encontros particulares e não autorizados, num hotel de Bruxelas, influenciá-lo com vista ao financiamento pela Comissão europeia de uma empresa chinesa de mineração de criptomoedas e de blockchains – a BTPool Corporation, por intermédio de uma sociedade fictícia e subsidiária, com sede na Bulgária.
A multinacional chinesa convida Detrez a visitar as suas instalações in loco, em Dalian, na China; o que o funcionário europeu fará clandestinamente e num desvio, aproveitando-se de uma conferência em Tóquio, essa sim oficial, na sua qualidade de perito em prospetiva.
Ora, durante o último encontro, um dos lobistas perde uma pen USB, de que Detrez se apodera ansiosamente. O conteúdo dessa pen revela algumas pistas e intenções inconfessas de terrorismo industrial e cibernético, nomeadamente através do recurso a uma “porta dos fundos” (backdoor) na máquina de mineração, de modelo AlphaMiner 88.
No fim, Detrez sofre na China o roubo do computador, onde estava guardado o texto da sua conferência de Tóquio; dá má imagem aquando desse evento académico, e volta para a Bélgica onde fica a saber, logo à chegada, do falecimento do pai.
No entanto, o romance La clé USB dá-nos forçosamente uma ideia do funcionamento e dos rituais das instituições europeias, assim como proporciona uma caraterização bastante fidedigna dos eurocratas em Bruxelas:
Como toda a gente no meio europeu, eles [lobistas e funcionários] falam um inglês mais ou menos globalizado, e partilham connosco das mesmas convenções de linguagem, uma língua codificada inacessível para os leigos que, tal como o calão na sua origem, tem por função moldar o grupo e reforçar a sua coesão (idem: 27; tradução nossa);
Eram eles, os tais eurocratas, esses jovens que se divertiam à minha volta nesse pub irlandês; eram eles, os tais eurocratas, esses jovens elegantes, inteligentes, instruídos, que falavam todas as línguas, que eram cultos e exerciam profissões apaixonantes nos mais variados domínios (idem: 69; tradução nossa).
Além disso, a deslocação do narrador à Asia permite-lhe identificar representações do continente europeu e das suas instituições:
É certo que semelhante dinamismo só era possível por não haver na China essas regulamentações hiper-restritivas que nós, europeus, nos esforçamos por produzir. Talvez fosse de ver nisso um defeito inerente à Europa, mas, de facto, somos, quanto a nós, constantemente bloqueados, travados, limitados pelo respeito das normas ambientais, pela moral, pela defesa da ética, pelo ideal humanista que erguemos no mundo. Claro que nos fica bem, e a Europa, por todo o mundo, dá de si uma imagem exemplar de integridade, de respeitabilidade e de retidão (…) (idem: 115; tradução nossa).
Enquanto perito europeu, Detrez mostra-se atento ao destino do seu continente, cujas dificuldades lamenta, mas cujos méritos democráticos inegáveis também elogia.
Antologia
Um pessimismo novo apoderara-se dele quanto ao estado da sociedade. Já não reconhecia esse mundo repugnante que se lhe apresentava. Vivera também dolorosamente, como se de um prejuízo pessoal ou de desilusões particulares se tratasse, as várias crises que haviam debilitado e descredibilizado a Europa nestes últimos anos: a crise grega, a crise ucraniana, a crise dos migrantes, como se a Europa, cujo ideal ele erguera bem alto durante toda vida, estivesse a afundar-se diante dos seus olhos (Toussaint 2019: 182).
“A democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros.” Poderia ter dito o mesmo da Europa. A Europa é a pior perspetiva para o continente, à exceção de qualquer outra (idem: 183).
Bibliografia ativa selecionada
TOUSSAINT, Jean-Philippe (1985 [2005]), La Salle de bain, Paris, Minuit.
— (1997), La Télévision, Paris, Minuit.
— (2002), Faire l’amour, Paris, Minuit.
— (2005), fuir, Paris, Minuit.
— (2019), La clé USB, Paris, Minuit.
Bibliografia crítica selecionada
ALMEIDA, José Domingues de (2013), “Une Salle de bain qui décline sa nationalité. Jean-Philippe Toussaint: écrivain belge”, Intercâmbio. Revista Eletrónica de Estudos Franceses da Universidade do Porto 6 (2), (pp. 7-23). Disponível em http://ojs.letras.up.pt/index.php/int/article/view/4094
CHAUDIER, Stéphane (dir.) (2016), Les Vérités de Jean-Philippe Toussaint, Saint-Étienne, P.U. de Saint-Étienne.
DEMOULIN, Laurent et alii (dir.) (2011), Jean-Philippe Toussaint, Bruxelles, Le Cri, col. “Textyles”, nº 38.
OLIVIER, Bessard-Banquy (2003), Le Roman ludique: Jean Echenoz, Jean-Philippe Toussaint, Éric Chevillard, Québec, Septentrion, col. “Perspectives”.
SCHOOTS, Fieke (1997), “Passer en douce à la douane”. L’Écriture minimaliste de Minuit, Amsterdam/Atlanta, Rodopi.
Webgrafia
http://www.jptoussaint.com (acedido a 09/05/2020).
https://www.en-attendant-nadeau.fr/2019/09/10/roman-cle-usb-toussaint/ (acedido a 09/05/2020).
https://www.la-croix.com/Culture/Livres-et-idees/Cle-USB-Jean-Philippe-Toussaint-technologies-litteraires-2019-09-19-1201048521 (acedido a 09/05/2020).
https://www.lesinrocks.com/2019/08/23/livres/livres/la-cle-usb-toussaint-a-lheure-de-la-mondialisation/ (acedido a 09/05/2020).
https://next.liberation.fr/livres/2019/09/13/codes-en-stock_1751186 (acedido a 09/05/2020).
José Domingues de Almeida
Como citar este verbete:
ALMEIDA, José Domingues (2020), “Jean-Philippe Toussaint”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/jean-philippe-toussaint/