JOSÉ CARLOS PEREIRA ARY DOS SANTOS

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JOSÉ CARLOS PEREIRA ARY DOS SANTOS

(1936-1984)

Ary dos Santos, poeta e declamador carismático, é conhecido do grande público como autor das letras de algumas das mais populares canções das décadas de 1960, 1970 e 1980. Durante o período do Estado Novo, contribuiu para a renovação da música ligeira portuguesa através da escrita poética, que considerava ser a sua maneira de falar ao povo. Os seus versos, muitos escritos na Rua da Saudade, no bairro lisboeta de Alfama, andaram de boca em boca como letras de cantigas que fintaram, de modo subversivo, a censura da ditadura.

Dada a sua vocação política, o poeta escreve, acima de tudo, sobre Portugal. A complexidade das relações sócio-político-culturais deste período da História portuguesa está na base de novas correntes artísticas e literárias que visaram reagir contra os valores instituídos, “dando, por conseguinte, primazia à imaginação, à liberdade de formas, à inovação, enfim, ao corte radical com as normas de conduta socialmente aceites” (Costa, 2010: 83). Deste modo, o país é conotado negativamente no poema “14”, do livro Insofrimento in Sofrimento, sendo sublinhado um mal ancestral que “tem raízes no sal tem ruído nasal” (1994: 214). O sujeito lírico, ciente de que “Esta nossa saudade lacrimal / é hoje um mineral: / otorrinolaringoestalactite” (ibidem), sugere que este sentimento relacionado com o período das aventuras marítimas se tenha cristalizado numa postura de apatia melancólica, o que obstaculizava a resistência política e a revolução.

Além da problematização de aspetos da cultura portuguesa, Ary dos Santos questiona também a Europa, temática que se encontra presente, implícita ou explicitamente, em alguns poemas, evidenciando-se uma oposição firme ao silêncio imposto pelo regime ditatorial português.

Neste sentido, Lisboa é comparada a uma Europa repleta de vícios, sendo designada, no poema “Lisbon by night”, como uma “pseudo euro-cidade” (1994: 235). Com efeito, na tentativa desesperada de se tornar cosmopolita, Lisboa parece ter perdido a sua identidade, transmutando-se num “antro de feras criadas” (ibidem). Repete-se, ao longo da composição, a mordaz crítica aos indivíduos pertencentes à aristocracia, que são caracterizados, a título de exemplo, como “modernas avestruzes”, “mancebos de longas tranças / enforcados em gravatas” e “megalómanos artistas” (236). Por outro lado, é notório o contraste com a miséria do povo, ou seja, a “saxofome” que, na ótica do eu poético, deve ser veementemente denunciada:

Sexofone saxofome
um continente castrado
vai desesperando de um lume
nunca mais incendiado. (1994: 235)

Desenha-se, portanto, o retrato de um continente castrado que anseia por uma revolução que não se inicia. A obscenidade lisboeta (e, consequentemente, europeia) transparece através da reprodução textual daquele que seria o linguajar do meio citadino, retratando a realidade dramática desses locais e a revolta do sujeito. Neste poema corrosivo marcado pelo débito verbal exagerado, o grito do eu lírico irrompe em defesa de um povo vilipendiado por quem urge lutar, o que é operacionalizado pela caricatura da pretensa superioridade dos aristocratas e pelo sarcasmo perante a prostituição da sociedade. O poeta serve-se de uma linguagem explícita, a rentear o obsceno, como metáfora política, revelando uma atitude de comprometimento social onde a força motriz do corpo é necessária para atingir a mudança: “uma puta seca tenta / suicidar a vagina” (236). No entanto, subjaz alguma esperança na última estrofe:

Mortos da morte mais lenta
que é possível conceber-se
dilacerada placenta
de estando morto nascer-se. (1994: 237)

A relação de Portugal com a Europa, encarada a partir da realidade lisboeta, é aprofundada no poema “O Turismo”, estabelecendo-se um contraste social: “Tudo tem lugar no mapa / Paris Washington Moscovo / Em Itália vê-se o papa / em Lisboa vê-se o povo” (1994: 245). Apesar de ter consciência de que “gritar é proibido… sofrer é proibido” (247), o eu poético assume-se como a voz da recusa perante o ócio, visto que os turistas que percorrem a cidade não conhecem “as coisas viscerais” que afligem o “povo sem pão / que se cose a sorrir (…) deste povo de trégua / que se canta a morrer”, ironizando: “o segredo / (…) / é apenas a fome. / É apenas o medo. / É apenas o sangue. / É apenas o pus” (246). A consciência de que compete ao poeta ser a voz que se nega a pactuar com o sistema e a esquecer o ambiente envolvente perpassa também no poema “13”:

Nos ombros da Europa apenas uma capa
de imagens rotas de palavras outras
colar de prostituta
vítima de ostras. (1994: 213)

O sujeito nota, nesta estrofe, que a Europa se tem vindo a prostituir, revelando-se submissa às “imagens rotas” e “palavras outras”, atitude que fomenta a estagnação social: “pérola parola gôndola parada / (língua de ponta e mola / enferrujada)” (213). De facto, este continente, designado de “nó nefelibata / amarela donzela / caricata” (ibidem), insiste num afastamento permanente da realidade.

A cosmovisão negativa da Europa adensa-se em “World’s news”, em que Ary dos Santos recorre, mais uma vez, ao erotismo enquanto arma de arremesso político, afirmando o imperativo de mudança coletiva, como corroboram os versos que encerram a composição: “não há parto sem dor não há tempo sem hora / é urgente rompermos a vagina do medo” (1965: 554). Ora, o sujeito poético trava um combate contra o estatuto hegemónico das figuras que oprimem os mais fracos, denunciando, com recurso ao sarcasmo, a imoralidade das entidades que detêm o monopólio do poder. Ridiculariza-se, primeiramente, a Rainha de Inglaterra, que “fez uma gaifona” (553), as instituições religiosas, cuja pregação é pautada pela hipocrisia e ausência de valores – “Os jornais imorais anunciam que um bispo / tem um filho na mitra e outro na barriga” (ibidem) –, e os aristocratas, caricaturados nas expressões “Duquesa Larocas”, “Barão do Balão” e “Marquesa da Aorta”.

Realça-se, além disso, a miséria do povo – “é preciso dinheiro é preciso comida / é preciso pagar-se a fome do grosso” (1965: 553) –, referindo-se o compromisso com os pobres, cuja individualidade é suprimida pelos “nobres”, que os poetas devem assumir nos seus textos:

Meus irmãos Meus irmãos é urgente lavarmos
no bidé das palavras a uretra dos nobres
mijarmos nos salões e depois ensaiarmos
a reação dos poetas na gazeta dos pobres. (1965: 554)

Por fim, a palavra “Europa” surge apenas mais uma vez na obra de Ary dos Santos, em Tempo da Lenda das Amendoeiras (1964), livro elaborado no contexto de um concurso algarvio. A longa composição, repleta de influências medievais, prefigura o sarcasmo utilizado muitas vezes pelo poeta que desafia convenções e hipocrisias, sendo que o seu pendor jogralesco a aproxima das cantigas de escárnio e maldizer. Na verdade, a referência à Europa encontra-se relacionada com a grandiosidade da memória histórica dos povos deste continente: “Cruzei Europas de pasmo / Venezas de esquecimento / Babilónias de sarcasmos / Honduras de sofrimento” (1994: 119).

 

Lista de poemas sobre a Europa

“13”, Insofrimento in Sofrimento (1959)
“14”, Insofrimento in Sofrimento (1959)
“15”, Insofrimento in Sofrimento (1959)
“Lisbon by night”, Insofrimento in Sofrimento (1959)
“O turismo”, Insofrimento in Sofrimento (1959)
Tempo da Lenda das Amendoeiras (1964)
“O coco”, Adereços, Endereços (1965)
“World’s news”, Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965)

 

Antologia breve

13.

Nos ombros da Europa apenas uma capa
de imagens rotas de palavras outras
colar de prostituta
vítima das ostras.

Pérola parada gôndola parada
(língua de ponta e mola
enferrujada).

Peito de vitela nó nefelibata
amarela donzela
caricata.
(1994: 213)

 

Lisbon by night

Sexofone saxofome
aqui jazz a humanidade
sepulcro de pedra pomes
duma pseudo euro-cidade.

Antro de feras criadas
entre manteiga e obuses
cansadíssima corrida
de modernas avestruzes.

Na cave do cio soa
um rumor acutilante
faca pássaro que voa
em seu espaço percutante.

Sexofone saxofome
agulha de tédio e ritmo
ninguém ouve ninguém come
a noite não tem princípio.

Mancebos de longas tranças
enforcados em gravatas
vão depauperando as danças
com os pés aristocratas.

Megalómanos arttistas
ademaneiam poemas
enquanto velhas coristas
coçam glórias e eczemas.

Um canceroso rebenta
seu tumor de nicotina,
Uma puta seca tenta
suicidar a vagina.

Sexofone saxofome
o banqueiro está de esperanças
foram-lhe ao rabo do nome
mais de um milhão de crianças.

Seus olhos de rã repleta
batraqueiam um efebo
sua pupila secreta
rumina bolhas de sebo.

Entanto a noite esfaqueia
O ventre das virtuosas
Senhoras com pé de meia
Que bebem água de rosas.

Das tripas lhe faz um nó
dos ovários um apito.
Estou tão só que me faz dó
solfeja seu pito aflito.

Sexofone saxofome
um continente castrado
vai desesperando de um lume
nunca mais incendiado.

Fenício celtas e godos
odeiam seus próprios corpos.
agora vingam-se todos
do peso de estarem mortos.

Mortos da morte mais lenta
que é possível conceber-se
dilacerada placenta
de estando morto nascer-se.
(1994: 235-237)

 

O turismo

Visitar este país
até à última gota:
O porco e o Porto a bola e a bolota
o que é como quem diz
itinerar a derrota.

Tudo tem lugar no mapa
Paris Washington Moscovo
Em Itália vê-se o papa
em Lisboa vê-se o povo.

Welcome Bienvenus Salud Wilkommen Viva
a sífilis saúda-vos saúda-vos a estiva
desta carga de heróis em carne viva
nociva mas barata
vindes matar a sede com uva
beber o sumo de ócio que nos mata.

Desemborcais nos cais desembolsais demais
mas não sabeis
as coisas viscerais as coisas principais
deste país azul
com mais hotéis do que hospitais
talvez por ser ao sol talvez por ser ao sul.

Aqui ao pé do mar bordamos a tristeza
as toalhas de mão as toalhas de mesa
que levais para casa Souvenir
deste povo sem pão
que se cose a sorrir.

Aqui ao pé do rio gememos a saudade
nosso fado submisso nossa água a correr.
Canção de mal devir Souvenir Souvenir
deste povo de trégua
que se canta a morrer.

Aqui ao pé do vento forjamos o lamento
dum país que se vende a peso nos prospectos
tanto de sol ardente tanto de cal fervente
e uma nódoa de céu nos xailes pretos.

Aqui ao pé do fel gritamos o segredo
do que parece fácil neste país de luz:

É apenas a fome.

É apenas o medo.

É apenas o sangue.

É apenas o pus.
(1994: 246)

 

Bibliografia ativa selecionada

SANTOS, José Carlos Ary dos (1994), Obra Poética, 2ª ed., Lisboa, Edições Avante!

CORREIA, Natália (1965), Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica; ed.ut.: 4ª ed., Lisboa, Ponto de Fuga, 2019.

 

Bibliografia crítica selecionada

COSTA, Lurdes (2010), O Silêncio É o Sítio onde se Grita: silêncio e erotismo em José Carlos Ary dos Santos (Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses, Universidade de Aveiro), https://ria.ua.pt/bitstream/10773/3760/1/235713.pdf (consultado a 31 janeiro de 2020).

 

Miguel Correia

 

Como citar este verbete:

CORREIA, Miguel (2019), “José Carlos Pereira Ary dos Santos”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/jose-carlos-pereira-ary-dos-santos/