(1965- )
Nascido em 1965 no município de Machico, na ilha da Madeira, José Tolentino Mendonça é uma figura incontornável na Igreja Católica como cardeal e teólogo. Igualmente notável na poesia portuguesa contemporânea, começa a sua carreira em 1990 com Os Dias Contados. Tolentino foi ainda professor em várias Universidades de Portugal e do Brasil. É hoje arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana.
Em A Noite Abre meus Olhos, obra que reúne os livros de poesia do autor, Tolentino escreve a Europa através da sua História, da sua cultura, e do dia-a-dia dos seus habitantes. Logo num dos primeiros poemas, “Scriptum” (2021: 15), adivinha-se como vão ser descritos os lugares europeus: “sem os nomear”, a partir do mundano, da descrição do espaço (“Diz-me apenas / a altura das searas / perto do rio”) e das dinâmicas quotidianas (“notícias / do homem que vende jornais / aí / em Via Rizzera”).
A Itália, presente neste poema através da menção a uma avenida, é um importante tema na obra, a par da Grécia. Estes dois países surgem frequentemente através de referências a imperadores, batalhas, lugares da Antiguidade Clássica. Na obra de Tolentino, o nascimento da civilização europeia é quase sempre descrito através de uma perspetiva de falha e decadência. Os imperadores surgem no leito de morte, como em “Dias de Julho” (idem: 53), o Império perde batalhas, e lugares outrora prósperos estão agora em ruínas, como no poema “Pérgamo (Ruínas do hospital de Asclépios)” (idem: 55). Em “Khôra” (idem: 237), a pólis, berço da Europa, é vista de uma perspetiva longínqua (a partir do território já fora dos limites da cidade) e sem “nenhum sorriso”. O sujeito poético confessa a falta de esperança quanto ao futuro do continente: este apenas é belo na ilusão do sonho. No poema “Pérgamo” (idem: 55), esta antiga cidade grega, poderosa e rica, é mencionada através das ruínas do seu hospital, da doença, do silêncio, do alheio e vago. A descrição do decadente confirma que a civilização antiga falhou em construir uma base sólida para o seu crescimento, como se lê em “Summer wind”, em que os “lugar[es] perdido[s]” da Europa são os “filhos doentes” desta Antiguidade que decaiu:
por vezes agarrava no mapa da Islândia
ou de qualquer outro lugar perdido
e apertado a ele dançava
com a tristeza daquelas canções que
as mães dedicam aos filhos doentes
(idem: 43)
Esta enfermidade revela-se nos cidadãos que caminham perdidos, sós, deprimidos, alheios, na Europa contemporânea. A decadência da civilização é agora descrita pelo quotidiano dos vagueantes, vivendo uns na precariedade, outros em estados de tristeza assoladora, terminando relações, ponderando o suicídio, fugindo da guerra. Em “Café de la Gare, Austerlitz” (idem: 165), o sujeito poético avista diariamente uma mulher bela e desesperada, misteriosa, que passeia em silêncio na estação de comboios, e percebe que ela não tem intenção de embarcar ou esperar alguém, mas possivelmente contempla e/ou programa o suicídio, ato que talvez seja confirmado quando a mulher para de ser vista (“e nunca mais a encontrei”).
A migração é também um tema recorrente na descrição do espaço europeu. “Clandestinos” (idem: 185) menciona a precariedade de quem emigra, vivendo em “quarto[s] sub-alugado[s] da periferia” carenciada, e lendo apenas os jornais gratuitos. São pessoas de feições fantasmagóricas, que sentem uma solidão constante e se refugiam na fé. No poema “Foglio d’inverno” (idem: 71), o cidadão é também emigrante, mas desta vez instala-se clandestinamente em Itália, numa tentativa de fugir da guerra – aluga um “quarto / num hotel desconhecido”, sai à rua apenas à noite, não procura quem conhece, não fala com ninguém durante dias. A migração ilegal aparece novamente em “Levada do Castelejo” (idem: 135), descrevendo o desamparo de quem foge. A chegada a um novo lugar poderia ser sinónimo de esperança num recomeço, mas o eu lírico marca a sua descrença quanto ao reinício na vida dos refugiados, descrevendo-o como já “sec[o]”, “já no fim”, infrutífero.
Como se lê neste último poema, Portugal parece seguir a decadência europeia. Não sendo a ilha da Madeira promissora para os que imigram, em “Lisboa vista da lua” a capital portuguesa é igualmente frustrante, nunca tendo evoluído para uma verdadeira metrópole: “parece ainda uma dessas / províncias estendidas à luz” (idem: 442). Os seus habitantes são “passageiros”, vivem sem raízes na cidade, ela própria composta de “fragmento[s]”. Esta imagem da cidade despedaçada reforça o caráter infértil do país quando Lisboa é vista como um “aterro”, lugar de abandono, de depósito do lixo, onde nada cresce. O poema “Caminho do Forte, Machico” (66) confirma novamente o caráter provinciano e triste do país, descrevendo-se o “retrato selvagem” de crianças a arrancarem pedaços de gelo para “comer[em] às dentadas”, a presença dos pescadores que “apaga[m]” a dor ao cruzar as linhas, e das bordadeiras que sorriem apenas para as fotografias dos turistas.
A tristeza, a dor, o desespero são sentimentos que percorrem Portugal e a Europa. As relações interpessoais não duram, como “Uma casa em Machico” (idem: 164) ou “Duas cidades, Paris” (idem: 98) ilustram. O campo lexical do primeiro poema acentua a esterilidade e brevidade das relações amorosas nestes espaços, com verbos como “acabou”, “separam”, “perder-se”, e o segundo poema com grupos nominais descritivos de um presente estéril e divergente: – “cidades diferentes”, “último pôr do sol”, “traição do acaso”, “solidão inacessível”, “ferocidade da natureza”.
A obra apresenta ainda a visão de uma Europa profana, onde o religioso foi consumido por um mundo capitalista e vazio. Em certos casos, como no poema “Praça de Santo Domingo, Madrid” (idem: 178), o oco consegue engolir o que o sujeito poético toma como sagrado: “na primavera de 1569 / Santa Teresa pernoitou na praça / hoje só lá se passa / para os saldos de Madrid”. Se neste último poema a profanação é lida negativamente, em “Retrato de Pasolini em Nova Yorque” (idem: 253) ela é aceite e apresenta-se como obrigatória perante a religião quando, por entre cartazes publicitários, se lê “a blasfémia / que a santidade tem de ser”.
Esta “abolição das fronteiras”, como escreve Teresa Bartolomei no posfácio a A Noite Abre meus Olhos (Bartolomei 2021: 519), está presente em toda a obra, no sentido em que Tolentino Mendonça constrói a sua poesia sem separar “a natureza e o artifício, o animal e o humano, a santa e as prostitutas, as boas causas e as anedotas” (ibidem). Como se lê em “Grafito”,
O poema pode conter:
[…]
Pode conter Lematin, Lemidi, Lesoir
[…]
Uma guerra civil
Um disco dos Smiths
(Mendonça 2021: 212)
Neste poema, são alusões culturais europeias (à língua francesa, à banda musical inglesa The Smiths, a que se acrescenta a epígrafe do filósofo francês Emmanuel Lévinas) que constroem mais uma perspetiva do continente. Outros poemas mencionam ou aludem à produção artística deste espaço, e desenham-no através da sua arte, entre filosofias, música, filmes, poesia. O poema “Brideshead Revisited” (20) parte do enredo do romance de Evelyn Waugh para se misturar com acontecimentos reais, mas também com um imaginário (estereotipado) da paisagem inglesa. O sujeito poético entrelaça, deste modo, os seus próprios sonhos e desejos com o romance em questão, que por sua vez alude à Europa histórica (através da menção à II Guerra Mundial e a cidades inglesas), construindo um imaginário do espaço descrito. O poema “Lourdes Castro, Rua da Olaria” menciona, por fim, a artista madeirense e a sua ilustração presente na capa da obra de Tolentino, denominada Sombras à Volta de um Centro (Miosótis), 1984, para confirmar novamente esta ausência de fronteiras que a poesia demanda:
A minha arte é uma espécie de pacto:
não distingo as áreas selvagens das cultivadas
e elas não distinguem a minha sombra
da minha luz
(idem: 236)
A Europa é assim retratada através da mistura entre a “sombra” e “luz” (236). Contudo, o resultado desta mescla parece ser de declínio e ruína, consequência do “infanticídio” do continente, com um crescimento decadente e infértil da sua civilização. A contemporaneidade é descrita como um[a] “filh[a] doente”, que vive num estado de desespero amoroso, solidão, condição precária, escondendo-se da guerra, acabando com a própria vida. Portugal não escapa deste cenário, sendo que o país nem teve oportunidade de chegar aos tempos modernos.
Lista de poemas sobre a Europa
“Scriptum”, Os Dias Contados (1990)
“Brideshead Revisited”, Os Dias Contados (1990)
“Dias de Julho”, Longe Não Sabia (1997)
“Pérgamo (Ruínas do hospital de Asclépios)”, Longe Não Sabia (1997)
“Caminho do Forte, Machico”, Longe Não Sabia (1997)
“Foglio d’inverno”, Longe Não Sabia (1997)
“Duas cidades, Paris”, Baldios (1999)
“Levada do Castelejo”, Baldios (1999)
“Uma casa em Machico”, De Igual Para Igual (2001)
“Café de la Gare, Austerlitz”, De Igual Para Igual (2001)
“Praça de Santo Domingo, Madrid”, Estrada Branca (2005)
“Clandestinos”, Estrada Branca (2005)
“Grafito”, O Viajante sem Sono (2009)
“Lourdes Castro, Rua da Olaria”, O Viajante sem Sono (2009)
“Khôra”, O Viajante sem Sono (2009)
“Retrato de Pasolini em Nova Iorque”, Estação Central (2012)
“Lisboa vista da lua”, Teoria da Fronteira (2017)
Antologia breve
Dias de Julho
Uma tristeza espalhava-se a ocidente
nesse verão os melhores
dos seus homens perdiam-se
em inexplicáveis derivas
eram os últimos dias de Julho
altas fogueiras diziam a desolação
que grassaria pelos séculos
e Adriano nada fazia
carruagens paravam diante da sua porta
por entre gritos
mas do soberano nenhum gesto vinha
recolhida ave noturna
assim o seu coração
se ocultava do dia
in A Noite Abre meus Olhos (2021: 53)
Tristezza D’Estate
Um anjo toda a noite me seguiu
até que depositei perfumes e cinzas
junto à imagem de Adriano perpetuando
um austero rito dos helénicos
Partindo não sei que sortilégio me tomou
talvez a água do rio me reteve
talvez o entendimento de tão grande morte
prendeu-me o ânimo que sabeis vulnerável
às emboscadas do espírito
Sento-me agora aos pés do seu túmulo
cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos
no rosto trago ainda o vento
dos véus funestos
in A Noite Abre meus Olhos (2021: 58)
Duas cidades, Madrid
Abandonavam lentamente a terra
mas ainda tremeluzia no canal uma claridade
e talvez esse sinal inocente fosse a razão
para aquele quarto alugado
onde com palavras que não lhes pertenciam
juravam, mais uma vez, a única maneira que tinham
mas tudo se tornara já
a música daquelas despedidas
que cada um dança sozinho
num ritual longo, inexprimível
o que melhor recorda as histórias desaparecidas
in A Noite Abre meus Olhos (2021: 109)
Praça do Comércio, Coimbra
Via-se: ele amava sem astúcias
alguma coisa de tudo o que viveu
uma sombra indefesa
as passagens resplandecentes e mesmo assim
quase em segredo
alguém que também nós
gostaríamos de ter amado
na praça de Coimbra
só pelo peso dos hábitos se tomava
aquele homem por mendigo
a beleza dessa tarde de Agosto
não lhe era alheia
nem poderia ser
in A Noite Abre meus Olhos (2021: 133)
Bibliografia ativa selecionada
Mendonça, José Tolentino (2021). A Noite Abre meus Olhos, Porto, Assírio e Alvim.
Bibliografia crítica selecionada
Bartolomei, Teresa (2021). Posfácio a A Noite Abre meus Olhos, Porto, Assírio e Alvim.
Marta Gonçalves
Como citar este verbete:
GONÇALVES, Marta (2022), “José Tolentino Mendonça”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6.