(1972 – )
Laurent Gaudé nasceu em 1972, em Paris, onde conclui os seus estudos de literatura e teatro na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III. Estreou-se na escrita de peças de teatro com 22 anos e hoje a sua obra abarca os mais diversos géneros literários, desde romances a contos, além de poesia e literatura juvenil. Autor eclético, Laurent Gaudé colabora frequentemente com compositores de ópera e fotógrafos contemporâneos. O seu segundo romance La Mort du roi Tsongor (2002) trouxe-lhe o reconhecimento pelo grande público ao obter o Prix Goncourt des Lycéens e o Prix des Libraires. O Prix Goncourt foi atribuído ao seu terceiro romance Le Soleil des Scorta, em 2004. Em 2013, Laurent Gaudé iniciou uma série de viagens pela Ásia e pela América, sobre a qual escreveu reportagens jornalísticas e também o seu primeiro livro de poesia De sang et de lumière, publicado em 2017. Embora a ideia da Europa esteja já presente no primeiro romance do autor, Cris (2001), uma narrativa polifónica sobre a Primeira Guerra Mundial, a sua maior homenagem ao Velho Continente surgiu em 2019 com o longo poema “inacabado” (10) Nous, l’Europe, banquet des peuples, que obteve o Prémio do Livro Europeu no mesmo ano e foi adaptado ao teatro por Roland Auzet para o Festival de Avignon.
Em resposta à denúncia que inaugura o prefácio-proposição da obra – “Depuis quelque temps, l’Europe semble avoir oublié qu’elle est la fille de l’épopée et de l’utopie” (7) –, o poeta brinda uma Europa esquecida das suas origens com uma epopeia utópica e coletiva. Consciente dos perigos do esquecimento, concretizados várias vezes na História europeia, Laurent Gaudé recapitula ao longo de dezasseis cantos o percurso de uma Europa jovem que sempre aspirou ao impossível e o atingiu:
“Qui sommes-nous maintenant?
Enfants des heures sombres
Mais de l’irrévérence aussi.
Il y a la liberté de ne pas croire,
De vivre libre,
Aussi libre que possible” (171).
Desta forma, o leitor acompanha a resiliência do Velho Continente desde os inícios da Revolução Industrial até à utopia de uma União Europeia capaz de ultrapassar os desafios que hoje enfrenta.
Desde logo pelo título, Nous, l’Europe, banquet des peuples configura-se como uma epopeia narrada por europeus a europeus. Um sentido orgânico de comunidade percorre todo o poema, concretizado no uso transversal da primeira pessoa do singular, independentemente do período histórico retratado. Para Laurent Gaudé, “Europa” não significa o conjunto de países geograficamente justapostos, mas os indivíduos a construíram. Assim se explica que o herói coletivo e intemporal desta epopeia seja constituído pelos europeus, considerados indistintamente mesmo nos momentos mais dramáticos de conflito: “Nous avons des héros qui ont déssiné le rêve d’une Europe plurielle” (98). Num gesto poético orientado simultaneamente para o passado e para o futuro, Gaudé interpela em permanência o leitor europeu, culpado de não questionar, de não lutar, de ser um agente passivo tanto na Europa pretérita como na hodierna:
“L’Europe sait très bien hésiter.
Visage laid,
Impuissance confortable.
Que peut l’Europe contre la fatigue de ses propres peuples?
(…)
Mais que peut l’Europe contre la servitude volontaire?
Que peut l’Europe contre nous,
Ou sans nous ?” (165).
O texto polifónico convoca todos os países da União Europeia, cujas histórias nacionais são glosadas ao longo dos cantos. A pluralidade de vozes invoca ainda os testemunhos de personagens de resistência, que surgem intercaladas com a voz narrativa épica, tal como a de Jan Palach, o estudante checo que se autoimolou como forma de protesto político contra a União Soviética: “Je suis Jan Palach et, dans quelques instants, je brûlerai pour réveiller un pays, pour attirer l’attention du monde entier.” (146). Para além disso, Gaudé apropria-se de textos de relevância na construção europeia, desde os discursos de Victor Hugo e de Winston Churchill aos títulos de Stefan Zweig, ou ainda de versos de Émile Verhaeren e de Rudyard Kipling, introduzindo-os nos seus cantos:
“ ‘You’ll be a Man, my Son!…’
Dix-huit ans à peine.
Il était myope, John,
Avait été réformé,
Mais il a supplié son père de l’aider
Et Rudyard a parlé à quelques amis.” (68).
Na representação da Europa de Laurent Gaudé, a juventude destaca-se como elemento fundamental e garante da utopia europeia. Todas as metáforas e personificações do Velho Continente preservam a imagem de uma Europa que perde o peso da tradição e se investe da energia fundamental dos que ainda têm um longo caminho a percorrer: “L’Europe, c’est une géographie qui veut devenir philosophie.” (173). Gaudé inaugura a sua epopeia com uma questão provocadora dirigida aos habitantes de um “Velho Continente” que deixou de o ser:
“Sommes-nous vieux?
Plus maintenant. Regardez: l’Europe se réveille et se secoue le dos.
Elle a un beau visage échevelé,
Et un appétit de nouveau-né.” (21).
É a juventude e a sua vontade de mudança que Laurent Gaudé destaca na recordação dos períodos gloriosos da evolução europeia:
“L’Europe découvre une jeunesse
Qui n’a pas envie d’être respectueuse,
Qui n’a pas envie d’attendre son tour pour parler,
Qui n’a pas envie de prendre sa place dans le monde de papa,
Qui veut tout bousculer,
Même les héros.” (148).
A concretização da utopia depende do grupo de europeus inconformados, sem medo de encarar o futuro nem de questionar, a quem são atribuídas as vitórias do passado, como a abolição das ditaduras fascistas. Enquanto europeu contemporâneo, Laurent Gaudé incita imperativamente os jovens à revolta numa sociedade de desambição, de memória volátil, em que a ameaça da intolerância espreita de novo:
“N’attendez pas qu’ils meurent,
Faites-les tomber!” (2019: 158).
Motivada pela ideia de juventude, a Europa de Laurent Gaudé constrói-se como um continente desenfreado incapaz de travar perante o perigo. De cada vez que o poeta constata que “[l]’Europe va vite”, previne o leitor de que uma crise está para chegar. Tudo o que em Gaudé “va vite” conduz à catástrofe, uma premissa válida desde logo para o seu poema épico, que recapitula quase dois séculos de história e se torna um sintoma de como a Europa evolui a um ritmo vertiginoso desde o século XIX, não conseguindo evitar as convulsões que a conduziram à ruína. A sublimação do conceito de velocidade, que caracterizou os loucos anos 20 tanto a nível artístico como social, introduz a Segunda Guerra Mundial. Num ritmo frenético, Gaudé passa pelas novas formas artísticas das vanguardas europeias, uma folia poética que termina com a alusão ao crash de Nova Iorque:
“Et le 24 octobre 1929,
Tout s’écroule.
L’Europe arrête de danser:
La musique qui venait de New York vient de dérailler.” (79).
As descrições das duas Guerras Mundiais constroem uma oposição entre céu e terra, as trincheiras – “L’Europe devient une terre ouverte” (68) – e os bombardeamentos: “Elles sont nombreuses, les villes d’Europe qui sont mortes par le ciel” (97), sendo ontologicamente opostas ao conceito de juventude: a guerra é o “Moloch de la jeunesse européenne” (66).
O poeta privilegia o comboio como símbolo da ligação das nações europeias. A rede de caminhos de ferro continental é admirada, não sem amargura, visto que o narrador épico, irónico e omnisciente, antecipa em pleno século XIX o símbolo da destruição humana em que este meio de transporte se tornará mais tarde:
“Le chemin de fer est né et a tapissé l’Europe.
C’est lui qui règne sur les routes
Mais c’est aussi par lui qui viendra la crise” (44).
Numa alusão ao Holocausto, Gaudé não esquece que a técnica e o progresso europeus estiveram também ao serviço da barbárie:
“Le train,
Qui fut le fleuron de l’Europe,
Devient l’emblème de sa destruction
Nous savons qu’il y a un réseau de rails en Europe, qui a aspiré à lui des peuples pour les gazer ” (108).
Nesta epopeia europeia, Laurent Gaudé dedica um canto crítico à colonização. A recordação do passado colonial, parte incontornável da História do continente, retoma a metáfora do banquete invocado no título: África torna-se “une enorme assiette” (50), em torno da qual se deliciam os países colonizadores. A violência exercida sobre os povos nativos é descrita até à exaustão e os promotores da exploração africana são listados, desencadeando um verso irado que segue iterativamente todos os nomes das figuras que afastaram a Europa da sua utopia: “Crachez sur son nom”. Gaudé traz-nos também um olhar comparativo não edulcorado sobre o drama da colonização, enfatizando ironicamente que as técnicas de destruição e a sede de submissão usadas em África foram um ensaio para o Holocausto:
“Lothar von Trotha
Crachez sur son nom
Signera un Vernichtungsbefehl,
Ordre d’extermination
Ça fait bizarre, non?
Ça ne vous rapelle rien?
Vernichtungslager
On s’entraîne en Namibie,
Je vous dis” (53).
Para o último canto, Laurent Gaudé reserva o mote do título “Le grand banquet”. Sonhando com o futuro, o poeta interroga-nos sobre a missão da Europa hoje, qual a utopia a concretizar. A resposta acompanhou o leitor desde o início:
“Grand banquet.
C’est cela qu’il nous faut, maintenant.” (177).
Um espaço de comunidade e partilha desenha-se simultaneamente como a solução de um passado traumático e a esperança messiânica para o futuro:
“Elle est là, notre mission:
Faire revenir les peuples au cœur de l’Europe.
Inviter l’utopie et la colère,
Car rien jamais ne se fait sans eux.
L’Europe s’est trop longuement tenue éloignée du corps bruyant des peuples.” (178).
Os desafios atuais são numerosos e versificados por Laurent Gaudé, particularmente sensível aos fenómenos migratórios do século XXI. Valorizando o modo com que os migrantes chegados à Europa aspiram de forma bem mais desejável a uma utopia, o poeta rejeita os europeus que parecem tê-la esquecido:
“Je dis Colère face à cette Europe qui n’arrive pas à inventer une hospitalité d’État.
Les réfugiés meurent en Méditerranée
Parce que notre terre les fait rêver.” (180).
Assim, Laurent Gaudé abandona a narração épica e converte-se num profeta poético do futuro europeu:
“Soyons nombreux,
Et dites l’utopie !” (181).
A Europa é representada um continente jovem, de olhos postos no futuro, que precisa de ser prevenido contra a passividade que tantas vezes ditou a sua desgraça. O poeta relembra o continente como comunhão de seres humanos e encontra a sua essência na fraternidade e na abertura ao outro. Gaudé quis ser uma das vozes inconformadas com a crise europeia e, num canto tão apaixonado quanto imperativo, apela aos Europeus que sonham com a Europa a lembrar e a agir, dotando-se de um duplo rosto voltado para o passado e para o futuro:
Venez,
Dépêchez-vous,
Fracas et utopie,
Apportez tout avec vous.
Que l’Europe redevienne l’affaire des peuples. (182-183)
Lista de poemas sobre a Europa
Nous, l’Europe, banquet des peuples (2019)
Antologia breve
SI VIEUX, SI JEUNES
(…)
Giovane Europa,
Cinq cents jeunes gens par pays,
Cela fait quelques milliers d’âmes,
Mais c’est un mouvement,
Une jeunesse qui se parle, se réunit, échange, et espère davantage.
C’est de cela que nous avons besoin.
NOUS NE DORMIRONS PLUS
(…)
Après cette Première Guerre mondiale,
L’Europe aurait dû panser ses plaies pendant vingt ou trente ans…
Une décennie de silence,
Consacrée simplement aux souvenirs des morts,
Et à la reconstruction.
Mais la fièvre est là,
L’Europe a les yeux cernés, et ne dort toujours pas.
LES INDÉSIRABLES
(…)
L’Europe se met à errer.
La France accueille trois millions d’étrangers dans les années 1930.
« Accueille », le mot est impropre.
La France voit arriver trois millions d’étrangers,
Elle ne les accueille pas.
(…)
Il y a une Europe des apatrides.
De ceux qui fuient,
Partent dans la nuit,
Remettent leur vie entre les mains d’un passeur,
Et prient pour ne pas être vendus au bout du chemin.
Il y a une Europe des guenilles,
Des mères fatiguées
Qui savent que les pays sont parfois des pièges qui se referment avec brutalité.
Il y a une Europe des gouvernements en exil.
UN TRAITÉ POUR NAISSANCE
(…)
L’Europe est née sans que les peuples la scandent dans les rues
Et c’est nouveau.
L’Europe s’est construite sans l’engouement des peuples,
Par prudence,
Parce que l’engouement des peuples avait mené au crime.
LA JOIE, L’INDIFFÉRENCE
(…)
On le dit,
L’écrit,
Le répète aux informations:
“On se tue à deux heures de Paris”,
Mais l’Europe ne veut pas voir.
L’indifférence engourdit les esprits.
On répète ce mot “Balkans”,
Et c’est pour dire que c’est un territoire poudrière,
Éruptif par naissance,
Engloutisseur de qui s’y mêle.
Alors l’Europe fait ce qu’elle sait faire le mieux : elle ne bouge pas, discute, se réunit et légifère.
(…)
ÉLARGISSEMENT
(…)
En 1989,
L’Europe a souri d’un visage large,
Fière,
Comme cela ne lui était jamais arrivé.
Le territoire est vaste
Et nous ne nous connaissons pas.
Il faut l’arpenter, se sentir européen par des kilomètres parcourus.
Regardez notre grande terre.
L’Europe du bouleau et celle de l’olivier,
L’Europe des cathédrales et celle des temples,
Au nord, la brique,
Au sud, la chaux.
La figue et la myrtille,
Tout est vaste,
Et nous sommes côté à côté,
Pays de bière, pays de vin,
Le thé et le café,
La vache et la chèvre,
La lumière de Spilliaert
Et le rouge étrusque.
L’Europe tourné vers l’Atlantique,
Et celle qui regarde Istanbul,
Nous sommes tout cela.
(…)
Bibliografia ativa selecionada
GAUDÉ, Laurent (2019), Nous, l’Europe, banquet des peuples, Arles, Actes Sud.
Maria Beatriz Almeida
Como citar este verbete:
ALMEIDA, Maria Beatriz (2021), “Laurent Gaudé”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN: 978-989-99999-1-6.