MADALENA DE CASTRO CAMPOS

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MADALENA DE CASTRO CAMPOS

(1974?- 1984?-)

Nos três livros que Madalena de Castro Campos (provavelmente um pseudónimo de um autor ou autora não identificado/a) publicou até à data – O Fardo do Homem Branco (2013), La Mariée Mise à Nu (2017) e A Gun in the Garland (2019) – a palavra “Europa” surge uma única vez, no título de um poema: “Europa do sul”. Cito os primeiros versos: “Ao longe e à distância, / via que não havia verdadeiramente nada para ver. / Um buraco. Uma falha cada vez mais profunda / através da qual / a história e a geografia se engolfavam / na sua própria impotência” (2017: 11). Quanto à “distância” invocada logo no início do poema, pode ser interpretada à luz da breve nota biobibliográfica que apresenta a autora, no fim de A Gun in the Garland: “Madalena de Castro Campos / Lisboa, 1984 / Fez, sem muito empenho, uma licenciatura em filosofia, e depois uma outra em arquitectura paisagista. Trabalha em Edimburgo, Escócia, na área do design de jardins” (2019: 55); a nota numa das badanas de O Fardo do Homem Branco já incluía praticamente as mesmas informações, embora então indicasse como data de nascimento da autora o ano de 1974.

Mesmo se Madalena de Castro Campos, estudiosa de filosofia e de arquitectura paisagista, vivendo e trabalhando em Edimburgo, não existir, e for apenas uma persona literária, a nota biobibliográfica dos livros torna irresistível uma identificação entre a imagem da autora e a personagem do poema; nesse sentido, a “distância” mencionada será a que separa Edimburgo de Lisboa, a Escócia de Portugal, uma suposta Europa do norte de uma alegada “Europa do sul”. Assim, é no interior de um continente (mas também nos seus limites, lidos como antagónicos) que se delineia uma compreensão da “história e [d]a geografia”, da política e da cultura europeias; é apenas vivendo no norte que se pode observar, “à distância”, o sul de onde se partiu – e ainda a diferença irredutível que divide esses extremos da Europa. Donde um duplo exílio; a personagem está fisicamente longe do país natal, descrito como “buraco” e “falha”, mas também sabe que não se integra nessa Europa setentrional, onde “sentia na pele que lhe confundiam / estado e natureza, identidade e condição”. Duas vezes apátrida, ciente da clivagem entre países e civilizações dentro do mesmo continente, a personagem só pode concluir, numa negação também plural: “Em comum, nem língua nem passado. / Talvez menos futuro”.

A Europa descrita por Madalena de Castro Campos surge, portanto, em primeiro lugar, como um continente cindido – entre países humilhados e países falsamente acolhedores. Ainda no livro La Mariée Mise à Nu, o poema “Hierarquia dos expatriados” acusa a mesma cruel avaliação das nacionalidades:

 

Na escala agregada da cor da pele,
da origem, da religião, do dinheiro
e da língua,
ficaria, aos olhos dos britânicos,
a meio da tabela.
À frente dos africanos, dos asiáticos,
dos paquistaneses, indianos,
sul-americanos.
Mas atrás dos espanhóis, italianos,
franceses, americanos, alemães,
nórdicos. (2017: 8)

 

Já não se trata de comparar apenas os extremos da Europa, mas de submeter povos de vários continentes a uma mesma avaliação racista: “africanos, […] asiáticos, / […] sul-americanos” em último lugar; só depois a protagonista do poema (implicitamente portuguesa?), “a meio da tabela”; acima dela, outros povos europeus (mesmo se provenientes da “Europa do sul”: italianos, espanhóis) e mesmo norte-americanos; no topo desta avaliação xenófoba, decerto os próprios britânicos. À protagonista cabe apenas ser o mal menor, quando comparada com povos não-europeus, ou uma candidata suspeita, perante outras nações. Seja como for, nada nem ninguém se pode eximir a esta avaliação: a geografia e a história são reduzidas a uma escala de valores não só eurocêntrica como ainda capaz de dividir a própria Europa em países ditos ricos e países ditos pobres. Quanto à personagem que descreve a avaliação, sabe-se avaliada entre “os que pediam desculpa por estar ali, / cobiçando-lhes as mulheres, / e os que os olhavam nos olhos, / devolvendo-lhes a sobranceria / e ameaçando roubar-lhes as fêmeas” (2017: 8): degrau instável numa escadaria do poder.

Sobre a crueldade destas avaliações fala também um violento poema de A Gun in the Garland, intitulado “Brexit”. Em rigor, todo o poema parece descrever uma relação sexual, provavelmente o encontro entre um cliente e uma prostituta: “Sairia como quem entrou, / relutante, / para se servir / do que o dinheiro pudesse pagar. / Não queria gastar muito” (2019: 26) – e, num estilo implacavelmente violento, “Sairia como quem se sente apertado / apesar do espaço se ter entretanto tornado mais largo, / no corpo cediço de fêmea seca e de fertilidade duvidosa. / […] / No cálculo do esforço e do prazer, / tão gastas coxas só prometiam trabalho” (ibidem). Assim, as “gastas coxas”, o “espaço […] mais largo […] / no corpo cediço de fêmea seca” indiciam uma vida de prostituição, sob o ponto de vista de um cliente, tenaz, mas repugnado. Apenas o título transfigura esta cena de sexo numa parábola: a partir da menção ao Brexit, é inevitável compreender o Reino Unido como o cliente e a União Europeia como uma prostituta, último e decaído avatar de uma antiga princesa raptada.

A violência de poemas como este responde a uma violência anterior, de um mundo calculista, prepotente, cruel; neste sentido, importa ler a poesia de Madalena de Castro Campos enquanto forma de resistência e protesto, investindo a ironia contra formas de imperialismo, reificação de povos e minorias, misoginia declarada, ou seja, um extenso leque de modalidades de subjugação do outro. Estes actos de opressão estão longe de implicar sempre a Europa, pelo menos de forma explícita. Por outro lado, um poema como “Império”, de O Fardo do Homem Branco, não pode deixar de responsabilizar o velho continente por uma persistente ideologia de divisão do mundo entre colonos e colónias: “Onde ele dizia descoberta, ela ouvia jugo. Onde / ele dizia civilização, ela ouvia barbárie. / Pilhagem, extorsão, estupro, / escravatura” (2013: 12).

De novo, a personagem masculina é agressiva; entenda-se: épica, triunfal, moralista, defendendo valores eurocêntricos. Já a personagem feminina inaugura a possibilidade de um debate pós-colonial; ainda que ambos os dialogantes possam ser europeus, ela admite pensar a partir de um mundo subalterno, fazendo da sua própria audição um lugar de resistência, plural, anti-épico. Trata-se então de desmontar, palavra a palavra, a linguagem triunfal do colono na linguagem oprimida do colonizado: “descoberta” torna-se “jugo”, “civilização” torna-se “barbárie”, ou “Pilhagem, extorsão, estupro, / escravatura”. A personagem feminina vai ao ponto de evocar a resistência das colonizadas que “vomitavam do ventre / a fé e o medo”, e dos colonizados para os quais “contrapor a força à força / talvez permitisse uma imitação da revolta” (ibidem).

Estes gestos de resistência tornam “Império” um poema excepcionalmente optimista, no sentido em que abre caminho a uma sublevação possível. Note-se porém que a revolta é só “imitação da revolta”; que o poema termina em termos disfóricos: “as coisas nunca coincidem com as palavras, / e raramente a carne com o punhal” (ibidem); que a personagem feminina parece apenas ouvir, sem responder, enquanto a masculina enuncia uma narrativa épica; e que a personagem feminina poderá falar em nome do outro, mas o outro nunca chega a falar em nome próprio: o subalterno não pode assumir um discurso, uma emancipação.

O mesmo pode ser dito do poema que dá título ao livro, “O fardo do homem branco”. Madalena de Castro Campos retoma o título de Rudyard Kipling, “The whiteman’s burden” (1898), elogio aberto ao imperialismo inglês; traduzindo-o para português e usando-o sem qualquer modificação ou comentário, porém, Madalena de Castro Campos obriga a uma releitura irónica, que inverte a axiologia original mesmo quando parece literalmente confirmá-la. Assim, o homem branco “Carrega a pele e a lei, a moral e a arma, / o alfabeto e o dinheiro. / É a história que lho impõe, / a humanidade que lho exige. / Amestrar os homens / no medo, no castigo, e no trabalho” (2013: 44). Dir-se-ia o discurso da personagem masculina de “Império”, resumindo o pensamento colonialista, o positivismo, a lei dos três estados segundo Comte.

Ora, embora repita simplesmente a ideologia de Kipling e do colonialismo inglês, este poema obriga a estranhar o próprio discurso, violentíssimo: “Quanto às mulheres, […] / fodê-las até que lhes inche o ventre. / É um favor que lhes faz. E é sua obrigação. / Embranquecer a raça, espalhar pela terra / a palavra de deus” (ibidem). Não se trata da audição vigilante de uma mulher (europeia?), e ainda menos da voz dos subalternos (sempre ausentes); é apenas uma repetição de lugares-comuns racistas, quase um ready-made discursivo, que se cola ao original oitocentista. Mas é também a desmontagem possível de um discurso, pela sua simples exposição.

Assim, a Europa tem uma presença espectral nestes poemas; mesmo não sendo explicitamente nomeada, ela constitui o denominador comum de muitas experiências políticas que Madalena de Castro Campos denuncia ou inverte. “Espectral” pode então designar o efeito de ausência e de omnipresença, de assombração sempre latente, de instituição morta que insiste em regressar; designa também uma entidade de contornos imprecisos mas resistentes, sempre íntima e sempre estranha, disseminada nos gestos e nos discursos de todos os detentores de poder.

Neste sentido, podemos ler como descrição da Europa mesmo poemas que não incluem explicitamente o nome desse continente. Por exemplo, em A Gun in the Garland:

 

Avec le temps

Via em volta como
os melhores da sua época
se iam corrompendo num conservadorismo
sem consciência. Confundiam a crítica com
a desilusão e mediam o mundo com os critérios
da geração anterior.
Dariam por eles, se ainda lhes restasse lucidez,
apontados a dedo pela geração seguinte.
Esta, nem melhor nem pior,
era apenas diferente, ajustada a um tempo
que era sempre outro e a submergia,
enquanto esbracejava para sobreviver.
Demoraria ainda
até que também ela
medisse o mundo
com os critérios da geração anterior. (2019: 44)

 

O título refere uma canção de Léo Ferré (o conteúdo do poema também poderia facilmente evocar Les Bourgeois, de Jacques Brel), e introduz o topos da resignação, do acomodamento ao status quo. Por si só, nada nesta denúncia obriga a pensar na Europa como realidade política ou ideológica; mas as relações intertextuais entre os poemas de Madalena de Castro Campos, a reiteração de personagens e discursos conservadores, tudo sugere o retrato de um velho continente que vai envelhecendo ainda mais.

Com o passar do tempo, as gerações perpetuam os mesmos juízos; voltado ao diferendo entre a personagem masculina conservadora e a personagem feminina crítica, depreendemos agora que a narrativa imperialista da primeira pode perfeitamente acabar por esmagar a vigilância crítica da segunda. O poema é claro nos últimos versos: “Demoraria ainda / até que também ela / medisse o mundo / com os critérios da geração anterior”. Demoraria, porque a personagem sabe resistir à sua própria formatação; mas no fundo parece tratar-se simplesmente de uma demora dentro de um processo inevitável: mais tarde ou mais cedo, também a personagem feminina se anula nos parâmetros de uma geração. Avec le temps, va, tout s’en va – fica apenas o poema como protesto, frágil mas atento, discurso contra discursos, resistência.

 

Lista de poemas sobre a Europa

“Império”, O Fardo do Homem Branco (2013)

“Civilização”, O Fardo do Homem Branco (2013)

“O fardo do homem branco”, O Fardo do Homem Branco (2013)

“Hierarquia dos expatriados”, La Mariée Mise à Nu (2017)

“Europa do sul”, La Mariée Mise à Nu (2017)

“Êxodo”, La Mariée Mise à Nu (2017)

“A terceira língua do ocidente”, La Mariée Mise à Nu (2017)

“Brexit”, A Gun in the Garland (2019)

“O meio literal português”, A Gun in the Garland (2019)

“Avec le temps”, A Gun in the Garland (2019)

 

Antologia breve

 

Império

Onde ele dizia descoberta, ela ouvia jugo. Onde

ele dizia civilização, ela ouvia barbárie.

Pilhagem, extorsão, estupro,

escravatura.

Terra queimada, a princípio,

lavrada, depois, com os ossos dos mortos.

Elas, mais dóceis, vomitavam do ventre

a fé e o medo, misturados no sangue

dos filhos mestiços.

Eles, mais rudes, sabiam que contrapor a força à força

talvez permitisse uma imitação da revolta.

Mas as coisas nunca coincidem com as palavras,

e raramente a carne com o punhal.

in O Fardo do Homem Branco (2013: 12)

 

O fardo do homem branco

Mal suporta o peso, o pobre.

Carrega a pele e a lei, a moral e a arma,

o alfabeto e o dinheiro.

É a história que lho impõe,

a humanidade que lho exige.

Amestrar os homens

no medo, no castigo, e no trabalho.

Quanto às mulheres, educá-las

na palha que lhes serve de cama.

Cobri-las entre o fedor da pele e a gordura das nádegas,

fodê-las até que lhes inche o ventre.

É um favor que lhes faz. E é sua obrigação.

Embranquecer a raça, espalhar pela terra

a palavra de deus.

in O Fardo do Homem Branco (2013: 44)

 

Hierarquia dos expatriados

Na escala agregada da cor da pele,

da origem, da religião, do dinheiro

e da língua,

ficaria, aos olhos dos britânicos,

a meio da tabela.

À frente dos africanos, dos asiáticos,

dos paquistaneses, indianos,

sul-americanos.

Mas atrás dos espanhóis, italianos,

franceses, americanos, alemães,

nórdicos.

Entre os que pediam desculpa por estar ali,

cobiçando-lhes as mulheres,

e os que os olhavam nos olhos,

devolvendo-lhes a sobranceria

e ameaçando roubar-lhes as fêmeas. Os maridos.

in La Mariée Mise à Nu (2017: 8)

 

 

Europa do sul

Ao longe e à distância,

via que não havia verdadeiramente nada para ver.

Um buraco. Uma falha cada vez mais profunda

através da qual

a história e a geografia se engolfavam

na sua própria impotência.

Depois, como a convidados de circunstância,

consentidos mas não desejados,

sentia na pele que lhe confundiam

estado e natureza, identidade e condição.

Em comum, nem língua nem passado.

Talvez menos futuro.

in La Mariée Mise à Nu (2017: 11)

 

Brexit

Sairia como quem entrou,

relutante,

para se servir

do que o dinheiro pudesse pagar.

Não queria gastar muito.

Sairia como quem se sente apertado

apesar do espaço se ter entretanto tornado mais largo,

no corpo cediço de fêmea seca e de fertilidade duvidosa.

Sairia como quem se limpa para arrancar da pele

o que restou da carne.

À sua volta,

as coisas continuariam como nunca foram.

No cálculo do esforço e do prazer,

tão gastas coxas só prometiam trabalho.

in A Gun in the Garland (2019: 26)

 

Avec le temps

Via em volta como

os melhores da sua época

se iam corrompendo num conservadorismo

sem consciência. Confundiam a crítica com

a desilusão e mediam o mundo com os critérios

da geração anterior.

Dariam por eles, se ainda lhes restasse lucidez,

apontados a dedo pela geração seguinte.

Esta, nem melhor nem pior,

era apenas diferente, ajustada a um tempo

que era sempre outro e a submergia,

enquanto esbracejava para sobreviver.

Demoraria ainda

até que também ela

medisse o mundo

com os critérios da geração anterior.

in A Gun in the Garland (2019: 44)

 

Bibliografia activa seleccionada

CAMPOS, Madalena de Castro (2019), A Gun in the Garland, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.

— (2017), La Mariée Mise à Nu, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.

— (2013), O Fardo do Homem Branco, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.

 

Pedro Eiras

Como citar este verbete:

EIRAS, Pedro (2019), “Madalena de Castro Campos”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/madalena-de-castro-campos/