(1954 – )
O escritor austríaco Robert Menasse (Viena, 1954 – ) tem vindo a distinguir-se no discurso sobre a Europa pela sua argumentação polémica a favor de uma Europa das regiões, livre dos nacionalismos que o autor considera a consequência incontornável dos estados-nação e das democracias nacionais.
Os seus romances e ensaios críticos – a cuja escrita se dedicou por inteiro após abandonar uma possível carreira académica iniciada como leitor e professor de teoria da literatura na Universidade de S. Paulo (1981 – 1988) – foram desde cedo alvo de uma receção controversa. Destacado por importantes prémios literários, era ao mesmo tempo criticado principalmente pelos seus ataques diretos à política e à história recente da Áustria (p.ex. Das Land ohne Eigenschaften. Essays zur österreichischen Identität (1992) [O País sem Qualidades. Ensaios sobre a identidade austríaca]. Outros romances tratavam questões epocais, como as transformações comportamentais pós Maio de 68 (Don Juan de la Mancha oder die Erziehung der Lust (2007 ) [Don Juan de la Mancha ou a Educação do Prazer] ou a identidade judaica (também da sua própria família) (Die Vertreibung aus der Hölle (2001) [A Expulsão do Inferno (2005)].
É a partir das suas lições de poética na Universidade de Frankfurt, em 2005, que publica sob o nome de Die Zerstörung der Welt als Wille und Vorstellung (2006) [A Destruição do Mundo como Vontade e Representação], que Menasse (em cujo pensamento a crítica encontra influências de Hegel, Marx, Bloch e dos pensadores da Escola de Frankfurt) dirige o seu olhar para os temas da globalização e da Europa, inaugurando uma argumentação que irá desenvolver ao longo dos anos seguintes. A partir de 2010, instala-se por quatro anos em Bruxelas, para observar in loco a União Europeia e repensar o seu funcionamento, tendo em vista a escrita de um romance europeu, que virá a tornar-se real apenas em 2017, com Die Hauptstadt [A Capital].
O resultado imediato da sua experiência de Bruxelas é o longo ensaio crítico Der europäische Landbote. Die Wut der Bürger und der Friede Europas oder Warum die geschenkte Demokratie einer erkämpften weichen muss (2012) [O Mensageiro Europeu. A Fúria dos Cidadãos e a Paz da Europa ou Por que a democracia oferecida tem que dar lugar a uma democracia conquistada], que confirma o seu gosto por remissões intertextuais (vejam-se textos de Schopenhauer, Heine, Musil, e. o.) e em que a evocação de Georg Büchner (1813 – 1837) sinaliza o texto como panfletário e Menasse como escritor revolucionário. Alvo das suas críticas é o estado atual da União Europeia que, esquecidos por muitos os ideais e as razões históricas que lhe estão na origem, se tornou um artefacto político sem legitimação democrática. Menasse concentra-se na tríade Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Comissão Europeia e tece rasgados elogios a esta última, que se lhe revelou uma instituição transparente, económica em gastos e eficiente, bem como aos seus funcionários, que considera imbuídos de espírito verdadeiramente europeu: “poliglotas, altamente qualificados, esclarecidos, ancorados na sua cultura de origem, mas livres da irracionalidade da assim chamada identidade nacional” [“[…] polyglott, hochqualifiziert, aufgeklärt, verwurzelt in der Kultur ihrer Herkunft, allerdings befreit von der Irrationalität einer sogenannten nationalen Identität (DEL, 23)], representantes de uma heterogeneidade cultural altamente frutuosa. Quanto à crise em que mergulhou a União Europeia, Menasse defende que ela tem a sua origem num modelo de democracia esgotado e principalmente nos estados-nação, que substituem os ideais europeus de uma democracia pós-nacional ou transnacional pela defesa egoísta dos interesses nacionais levada a cabo pelos representantes dos estados com assento no Conselho Europeu e pelos deputados eleitos pelos estados nacionais, comprometidos com uma política partidária e nacionalista dos seus países de origem e muitos deles assumidos anti-europeistas.
De uma análise rápida e cirúrgica aos dois últimos séculos da história europeia, principalmente da história alemã, Menasse conclui que os estados-nação conduzem necessariamente ao nacionalismo, que esteve na origem de múltiplas guerras e cuja abolição está inscrita na matriz da União Europeia. Segundo ele, a democracia tal como a vivemos hoje na Europa, baseada em estados-nação e representação parlamentar, é um resquício do século XIX e a sua transposição para a organização europeia, com uma falsa compreensão da divisão de poderes e a articulação dos diferentes órgãos, impede uma união de carácter verdadeiramente transnacional. Para Menasse, é o Conselho Europeu, reforçado pelo Tratado de Lisboa, o principal baluarte dos interesses nacionais que impede a ação da Comissão e do Parlamento, estes, sim, orgãos de orientação europeista.
Na origem da crise estará ainda, para além dos estados-nação, a falta de solidariedade dos países ricos em relação aos mais pobres. Menasse retoma algumas das suas tradicionais críticas à Áustria, mas o alvo do seu ataque direto são agora a Alemanha, cuja dívida histórica à Grécia é relembrada, e Angela Merkel, que, desde logo pela sua origem e percurso biográfico, não conseguirá compreender o verdadeiro espírito europeu.
Para Menasse, a solução reside numa nova forma de democracia pós-nacional ou transnacional, com a Europa das nações substituída pela Europa das regiões, às quais caberia tomar decisões locais e eleger os deputados e a estes escolher o presidente da Comissão e os comissários.
Estas mesmas ideias são retomadas no romance A Capital (2017) que tem como epicentro de múltiplas figuras e linhas narrativas, de novo, o projeto da superação dos estados-nação e dos nacionalismos numa Europa transnacional, bem como a necessidade de preservar os ideais dos fundadores da União Europeia e a memória de Auschwitz, lugar ideal para uma nova capital europeia, para que o erro se não repita. A esta tese central, defendida pelo alter-ego do autor, juntam-se outros temas atuais e fraturantes caros a Menasse: os interesses económicos nacionais vs. economia europeia global e sua afirmação no mercado mundial; a rivalidade entre países ricos e pobres, entre Norte e Sul; o motivo do envelhecimento (quer, concretamente, dos últimos sobreviventes do Holocausto e a preservação da memória, quer, globalmente, numa sociedade que não sabe lidar com ele); os fundamentalismos religiosos, num travestissement de coloração politicamente correta e de reminiscências à la Dan Brown (Freudenstein, 2), e o terrorismo. Tudo isto articulado com a vida e os interesses particulares e profissionais de funcionários da União Europeia, entre idealistas e carreiristas, e de outros figuras que se cruzam em Bruxelas enquanto capital da União Europeia e da Bélgica e sede da NATO.
Nesta panóplia de motivos cabem ainda reflexões de pendor metatextual sobre questões também elas caras a Menasse: a literatura como reflexão sobre o tempo histórico em que se insere e que quer influenciar e o carácter eventualmente efémero da arte.
Ao lado de distinções e prémios, o romance tem vindo a colher inflamadas críticas quer a nível ideológico e político quer literário, às quais se juntou a controvérsia em torno da acusação de falsificação/manipulação de afirmações atribuídas a Walter Hallstein, tanto no romance como em outras publicações e afirmações de Menasse. De facto, o autor, procurando conferir fiabilidade às suas próprias teses, não só desloca erradamente a tomada de posse de Hallstein enquanto primeiro Presidente da Comissão Europeia para Auschwitz, como coloca na sua boca a afirmação de que do programa original da Comissão faria parte a futura abolição dos estados-nação. Depois de algumas justificações feridas de arrogância e inconsistência, Menasse vem a pedir desculpa por estas incorreções, pondo fim a uma querela que não o impediu de continuar a ser uma das mais citadas vozes sobre a Europa no espaço de língua alemã.
Antologia breve
É sabido que em meados do século passado a Europa voltava a estar em ruínas. Quatro guerras no período de uma vida – a Guerra Austro-Prussiana (1866), a Guerra Franco-Alemã (1870/71), ambas apelidadas de guerras de unificação nacional, e principalmente as duas guerras europeias, que se tornaram guerras mundiais e que na verdade foram uma segunda Guerra dos 30 Anos (1914 a 1945) – tinham destruído o continente europeu em moldes nunca vistos. A ideologia nacional autodeterminada, autoconfiante e autoritária, a dinâmica do nacionalismo, a «inimizade ancestral» entre as nações, a tentativa de impor com toda a violência «interesses nacionais» a outras nações custara a vida a milhões de pessoas, trouxera a todas as pessoas um sofrimento infinito, e, num culminar de nacionalismo desregrado, levara a um hediondo crime contra a humanidade, do qual Auschwitz é hoje a cifra (Der Europäische Landbote, 8; tradução minha)
Não é preciso trazer a jogo uma (sempre possível) interpretação psicológica que explica porque é que Angela Merkel nunca poderá ser uma verdadeira política da Europa: diferentemente até de Kohl e por via do ano do seu nascimento, ela já não foi marcada pelo choque causado pela destruição e pelos crimes que o nacionalismo alemão provocara. Tendo crescido na RDA, para ela as exigências de «Paz para os povos» e «Fascismo nunca mais» tinham sido vividos como rodriguinhos de auto-legitimação de um estado sem liberdade e um mantra vazio. […] As chances da sua vida, perspetivas, liberdade, possibilidades de ter uma carreira – tudo isto apenas se lhe tornou possível depois da queda do Muro. A reunificação, o renascimento nacional da Alemanha, não foi aquilo que de melhor lhe podia ter acontecido, tanto a nível político como biográfico? Será que no fundo do seu coração ela pode compreender o que é desenvolvimento posnacional, ela que tudo deve à redenção nacional da Alemanha? (Der Europäische Landbote, 47; tradução minha).
Eu vim ao mundo na Áustria, aquela república que, depois das destruições e crimes que o nacionalismo e os conflitos das nacionalidades tinham provocado ao longo do meio século anterior, decidiu aprender com a história e tornar-se agora, ela mesma, uma nação. Antes disso houvera aqui uma confusão de nacionalismos e sobrenacionalismos. A geração que construiu a Segunda República depois de 1945 e que tão tardiamente lhe outorgou uma identidade nacional já tinha vivido ao longo da sua vida em quatro Áustrias diferentes, com quatro sistemas políticos diferentes, com quatro identidades diferentes, dentro de fronteiras territoriais diferentes: na Áustria da monarquia dos Habsburgos, na 1.ª República da Áustria alemã, no estado austríaco fascista, na Ostmark. Agora construía-se a quinta Áustria no período de uma só geração, a Segunda República. Quem pode fazer crer que seja precisamente esta quinta Áustria a realização e feliz concretização da «ideia de uma nação austríaca»? (Der Europäische Landbote, 65; tradução minha).
A Europa é na realidade uma Europa das regiões. A obrigação da política europeia seria transformar politicamente a Europa naquilo que ela de facto é. (Der Europäische Landbote, 67; tradução minha).
Temos que inventar uma nova democracia. Uma democracia que não esteja ligada à ideia do estado nacional. É preciso perceber-se o seguinte: uma democracia posnacional não pode ter uma forma, uma constituição igual àquelas desenvolvidas para si pelas democracias nacionais. Não se podem simplesmente elevar a nível supranacional elementos das democracias nacionais e juntar os diferentes estados debaixo desse teto – nesse processo há muito que se perde. (Der Europäische Landbote, 98; tradução minha)
Em última análise, a má imagem da Comissão devia-se ao facto de ser entendida como um mero dispositivo de uma comunidade económica, responsável por uma política económica que ia sendo recusada por cada vez mais pessoas. Havia então que, de modo consequente, recordar a ideia fundamental, com recurso às palavras do próprio Jean Monnet: «Todos os nossos esforços são os ensinamentos da nossa experiência histórica: o nacionalismo conduz ao racismo e à guerra, sendo Auschwitz a sua consequência mais radical.»
Foi por esta razão que o primeiro presidente da Comissão, o alemão Walter Hallstein, fez o seu discurso inaugural em Auschwitz. Mais tarde, essa ideia foi também aproveitada por presidentes da Comissão como Jacques Delors e Romano Prodi. (A Capital, 239)
Estados nacionais concorrentes não formam uma união, mesmo que formem um mercado comum. Estados nacionais concorrentes numa união bloqueiam ambas as coisas: a política europeia e a política de cada Estado por si. O que seria agora necessário? A evolução futura no sentido de uma união social, de uma união fiscal, ou seja, a criação de condições que permitam que de uma Europa de entidades coletivas concorrentes se faça uma Europa de cidadãos soberanos e dotados de direitos iguais. […] Nada disso, porém, é exequível enquanto, apesar de tudo o que a história proporcionou como experiência, se continuar a atiçar a consciência nacional e enquanto o nacionalismo continuar a ser o único a, sem concorrência, oferecer aos cidadãos uma possibilidade de se identificarem (A Capital, 351-352)
É por isso que a União deve construir a sua capital em Auschwitz, dissera ele. É em Auschwitz que a nova capital europeia deve ser criada. Planeada e erigida como uma cidade do futuro, simultaneamente a cidade que jamais consegue esquecer. «Auschwitz nunca mais», é o alicerce sobre o qual foi erigido o processo de integração europeia. Ao mesmo tempo é também uma promessa para todo o futuro. (A Capital, 354)
Bibliografia ativa selecionada
MENASSE, Robert (2019) A Capital, trad. Paula Rego, Lisboa, Dom Quixote.
— (2017) Die Hauptstadt, Roman. Suhrkamp, Berlin.
— (2014) Heimat ist die schönste Utopie. Reden (wir) über Europa, Edition Suhrkamp, Berlin
— (2012), Der Europäische Landbote, Die Wut der Bürger und der Friede Europas oder Warum die geschenkte Demokratie einer erkämpften weichen muss. Zsolnay, Wien.
Bibliografia crítica selecionada
Freudenstein, Roland ( 2018 ), „Die Zukunft von Europa: Wie Robert Menasse Europa kaputtschreibt“, https://www.tagesspiegel.de/politik/die-zukunft-von-europa-wie-robert-menasse-europa-kaputtschreibt/20843276.html (último acesso em 1/5/2019).
Lucas, Isabel (2019) „Um porco passeia por Bruxelas…” (entrevista a Robert Menasse, https://www.publico.pt/2019/02/08/culturaipsilon/noticia/europa-moral-historia-1860733 (último acesso em1/5/2019).
Lützeler, Paul Michael (2019), „National ist nicht gleich nationalistisch“ https://www.tagesspiegel.de/kultur/robert-menasse-und-europa-national-ist-nicht-gleich-nationalistisch/23841226.html (último acesso em 1/5/2019).
Teresa Martins de Oliveira
Como citar este verbete:
OLIVEIRA, Teresa Martins de (2019), “Robert Menasse”, in A Europa face à Europa: prosadores escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/robert-menasse/