(1933-1978)
Tal como o mar, o vento e o sol se constituem como metáforas para a existência percecionada por Ruy Belo, também a Europa se apresenta neste poeta enquanto topos consistente e transtemporal para revelar um ponto de vista sobre a realidade vivida, ainda que surja de modo mais esporádico, difuso, às vezes apenas circunstanciadamente. À vincada subjetividade da voz poética, que busca a conciliação de um eu em estado de autovigilância e angústia, contrapõe-se um olhar frontal e lúcido face a um exterior observável, experienciado, selecionado de acordo com convicções ideológicas e éticas, marcado por uma evidente herança cultural europeia.
Os dois primeiros livros publicados por Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates (1961) e O Problema da Habitação (1962), abordam sobretudo a relação do poeta com Deus e a religiosidade, num progressivo questionamento da fé. O conflito daí decorrente é tanto mais significativo quanto põe em causa toda uma vida até então devotada à Igreja católica, tendo o poeta abandonado a Opus Dei somente no ano em que publicou o seu primeiro livro. Deste modo se justificam as sucessivas alusões bíblicas, que transcendem fronteiras europeias para abarcar um universo de raízes judaico-cristãs. Assim, os espaços que vão sendo convocados perdem-se no anonimato: há apenas sinos de aldeias, povoações marítimas, cidades por onde circula gente rumo à morte. A apóstrofe “ó canção ó país ó cidade sonhada / dominicalmente aberta ao mar” (2014: 74) é apenas um exemplo desse percurso trágico comum da humanidade.
Já o terceiro livro, Boca Bilingue (1966), acentua a interiorização de lugares, sejam estes uma praia de Portugal ou uma pequena cidade francesa, como Saint-Malo. O tempo, angustiadamente irrefreável, por afastar-se cada vez mais de uma infância idealizada, ou eternizado em instantes suspensos, mescla-se com o espaço, levando o poeta a evadir-se de um real empírico para discorrer acerca dos fundamentos da existência. Assim, em “Guide bleu”, por exemplo, o passeio nas margens do Sena suscita reflexões como “a noite existe e a vida vale este momento” (2014: 182), sendo que “a hora é decisiva como um sacramento” (ibidem).
Mas a obra de Ruy Belo não se resume a uma incorporação abstrata e metafísica de lugares e tempos. A partir de Boca Bilingue, acentua-se um olhar crítico sobre uma sociedade opressora pela criação de regras e rotinas que impõem ritmos e condutas para a existência quotidiana, facto esse que se nota sobretudo no movimento pendular das grandes cidades. Acontecendo um pouco por toda a Europa, o sentimento opressivo é em Portugal acentuado por viver então em pleno Estado Novo. Por isso, em “Ácidos e óxidos”, o sujeito poético lamenta o seu “país perdido” (2014: 211), mas que, sendo-o, é também local de afetos e emoções, por mais que ironizadas: “sou filho desta terra e vou fazendo anos / pois não se pode estar sem fazer nada” (ibidem).
Conforme afirma o próprio poeta no prefácio a Homem de Palavra[s] (1970), “a poesia de intervenção tem de partir de um grande sentido de justiça ou de revolta que o poeta fez seus, como o amor num poema de amor, e tem de ser discreta se não quiser ser demagógica” (2014: 246). Ora, é precisamente desse modo discreto, mas consistente, que a visão de Ruy Belo acerca da Europa se insinua na sua obra. Segundo Ida Alves, a paisagem marítima, enquanto referencial incontornável da obra beliana, revela uma “articulação de sentidos que é fundamental para a própria execução do poema como discurso imagético e textualidade” (2015: 23). Do mesmo modo, a sucessiva convocação de cidades e figuras da cultura europeia é um eixo que define uma perspetiva ética e estética do poeta em relação ao continente onde habita, pelo que os espaços evocados tendem a mitificarem-se, para configurarem um modo de vida que atravessa fronteiras físicas. Como escreve em “Madrid revisited”, poema publicado em Transporte no Tempo (1973), “mais do que esta cidade é só certa cidade que jamais houvesse” (Belo 2014: 460).
A filiação numa linhagem cultural europeia remonta à Grécia Antiga, estendendo-se até à contemporaneidade. Diversos poemas incluem versos citados implícita ou explicitamente de autores europeus vários, ao mesmo tempo que se evocam nomes de pessoas e locais culturalmente associados à Europa. Sendo a Bíblia um dos hipotextos mais notórios, a referência a Ovídio e Virgílio, Racine e Federico García Lorca, como aos portugueses Camões, Pessoa ou Raul Brandão, atestam a pertença, admiração e influência de todas essas referências europeias. O poema “Do sono da desperta Grécia”, incluído em Transporte no Tempo (1973), é disso exemplo: Ruy Belo escreve que “a deusa atenas pensa ainda para nós” (2014: 435), numa vinculação ao legado grego da valorização da verdade, através da qual “o homem chega / às noções de justiça e liberdade” (ibidem). Já o longo poema “A sombra o sol” com que Ruy Belo termina o livro Toda a Terra (1976), enquanto súmula dos topoi deste poeta, rememora o passado, seja este o individual e intransmissível do sujeito poético, o coletivo de um povo – o português –, ou aquele que habita qualquer parte da Europa. Se, por um lado, evoca a figura feminina – a quem se dirige na primeira estrofe –, referindo o tempo que passa ao recordar “o teu rosto sem rugas / sem a ameaça do tempo” (786), por outro lembra que “os povos das cidades lusitanas / armadas do montante gaulês ou do gládio romano / erguiam na distância entre os dispersos povoados / o sólido róbur da invencibilidade” (789).
Mas de toda essa mescla de povos e culturas que fizeram a Europa, não resulta uma euforia pelos feitos alcançados, nem que estes sejam as obras de arte que o poeta contempla em museus ou jardins de Madrid, da Itália ou de outro local europeu. Pelo contrário, os homens comuns vivem ainda numa miséria tal “que nem podem pensar nessa miséria que outros homens lhes impõem” (792), como se a Europa estivesse em vias de esquecimento de um outro valor: o livre arbítrio. Isso é tanto mais evidente quanto aquela parte do continente europeu com que está mais familiarizado, Portugal e Espanha, viveu décadas de opressão sob regimes ditatoriais, que vigoraram durante praticamente toda a vida do poeta. Tal justifica o tom elegíaco e a espaços irónico de, por exemplo, “Morte ao meio-dia”, de Boca Bilingue, onde a “casa portuguesa” (205) é testemunha de um marasmo atrofiante e sem futuro. Por isso, escreve, “morre-se a ocidente como o sol à tarde”, num país em que “o corpo curva ao peso de uma alma que não sente” (ibidem).
A orla marítima (título de um poema de Homem de Palavra[s], livro publicado em 1970) é um espaço privilegiado da poesia de Ruy Belo, pelo que se sucedem referências àqueles que dela vivem, imprimindo à obra do poeta uma reiterada identificação com o seu país de nascimento. Porém, a empatia com os habitantes das cidades e povoações por onde circula não é redutível às gentes marítimas de Portugal. Como refere Gastão Cruz, a figura retratada preferencialmente na obra de Ruy Belo é o comum funcionário, o “homem de repartição, esta figura anónima que representa todos os milhões que, todos os dias, estão sujeitos ao lugar-comum” (2015: 103). O poeta retrata, pois, o trabalhador da civilização ocidental, fruto da terciarização da sociedade. Também por este prisma a influência de Fernando Pessoa em Ruy Belo se evidencia: há uma nostalgia da infância e dor de pensar próximas de Pessoa ortónimo, mas também um olhar empático face ao homem comum que o semi-heterónimo Bernardo Soares também contempla. O processo é tanto de identificação com o funcionário do setor terciário quanto de reflexão existencial acerca da vacuidade do movimento incessante da turba na cidade. Um e outro aspetos são encontrados por Ruy Belo em Lisboa, como em Madrid ou noutro ponto qualquer por onde os europeus circulam.
Verifica-se, assim, um estranhamento face à existência partilhada na Europa sua contemporânea, dado a voz poética sentir-se pertença desse universo cultural, mas, ao mesmo tempo, distanciar-se dele, num diferimento crítico que preserva uma forte carga emocional. Isso deteta-se com acuidade no poema “Sobre um simples significante”, publicado em Transporte no Tempo (1973): no aeroporto do Nepal, em janeiro, alguns cidadãos supostamente europeus – como afirma o sujeito poético, tudo se passa no “europeu nepal” (2014: 399) – falam sobre o Natal, e de repente esta palavra de tão forte significado para a cultura europeia esvai-se em mero significante. Como resultado, o sujeito poético distancia-se dos restantes europeus: eles estão unidos por uma mesma palavra, “embora a pensem todos na respectiva língua original” (ibidem). A mesma palavra, no entanto, torna-se oca no pensamento do sujeito poético, mero som reforçado pela rima em “al” de todos os versos, mas também sinal do isolamento em que os europeus co-habitam.
Parece enunciar-se deste modo uma fronteira que separa o poeta da realidade envolvente, sem que, no entanto, a Europa de Ruy Belo se cinda em países distintos. O que existe é a interiorização individual e analítica de um espaço que percorre tempos, formando uma plataforma de experiências transversais. No poema “No aniversário da libertação de Paris”, incluído em Transporte no Tempo, por exemplo, o poeta remete para o ideal de uma luta coletiva contra o “dissídio das trevas” (437) e que teve na resistência francesa antinazi um inimigo valoroso e vitorioso, ao ponto de “restitui[r] ao país a sua consciência” (438). A importância deste acontecimento amplia-se historicamente, para se metamorfosear em símbolo. Conforme termina o poema, “foi já há duas ou três décadas foi hoje” (439). O mesmo tom se repete em “A guerra começou há trinta e quatro anos”, de Toda a Terra (1976), poema que, de libelo contra o imobilismo e a conformação face ao estabelecido, se converte numa exaltação de valores como a liberdade. Por isso, a euforia quando o fim da Segunda Guerra Mundial é anunciado em Rio Maior relativiza-se, como se percebe no pensamento de alguém que era então uma criança: “Quase toda a gente da cidade saiu para as ruas / sem eu perceber porquê um homem a meu lado foi preso ao dar um viva à rússia” (647). A relativização permanece no final do poema, pois, para além da ausência de liberdade de expressão, há ainda, por paralelismo, a referência à guerra do ultramar. Quando refere “sinto pena de que agora que a guerra acabou quase há vinte e oito anos / mais um soldado tenha morrido por acidente em angola” (648), percebe-se a crítica velada e irónica ao jogo de máscaras com que a ditadura engana o povo que rege.
O tema da guerra serve também de pretexto para uma distinção entre a Europa e os Estados Unidos, diluindo uma pretensa homogeneização do mundo ocidental. No poema “No aeroporto de Barajas”, de Transporte no Tempo, Ruy Belo critica os americanos “que perto matam longe o povo heróico vietnamita / que aqui pagam em dólares a dor dos sul-americanos” (483). O facto de os aviões de guerra americanos partirem de um aeroporto europeu (o uso reiterado do advérbio “aqui” é significativo) revela a conivência existente, mas a descrição dos “patuscos / que passam de montera na cabeça” (ibidem) denota o desprezo pela sobranceria americana. Por isso afirma: “Aqui os servos nós eles senhores” (484). A solidariedade de Ruy Belo vai, ainda assim, para os próprios soldados americanos vítimas da guerra, como em “Saudação a um yankee”, incluído no mesmo livro, dado um antigo soldado ter perdido uma perna na guerra do Vietname em nome dos dólares americanos que nunca lhe pertencerão. O repúdio pelo poder do dinheiro que os americanos exibem percebe-se ainda em “Requiem por Salvador Allende”, de Toda a Terra, onde, para além da indignação sentida pelo assassinato deste dirigente chileno, Ruy Belo reprova a “maneira americana de se estar no mundo / de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo” (704). Há assim uma demarcação nítida entre os valores estruturantes europeus de verdade e justiça, conforme a herança grega, e condutas assentes num “veneno talvez chamado dinheiro” (703), identificáveis com os Estados Unidos.
Por outro lado, a Europa nem sempre é vista como um farol de virtudes e fonte de progresso. Em “Óscar Niemeyer”, poema de Toda a Terra, Ruy Belo elogia o arquiteto brasileiro porque ele “veste a colorida plumagem dos trópicos / tem grandes asas que excedem a racionada raciocinada superfície da europa” (637). Falta, portanto, na Europa sua contemporânea a imaginação que desconstrua um persistente “solo gretado”. Por oposição, a obra de Niemeyer retoma a herança cultural europeia, ao exibir um traço “nascido de um gesto desaparecido com o movimento de mãos dos artistas do renascimento” (ibidem).
Esta última citação expõe o elogio à herança cultural europeia, não à forma como a sociedade se estrutura no presente histórico de Ruy Belo, poeta que assume o destino trágico de laivos gregos. Afinal, “o desafio de antígona e de prometeu / é hoje ainda o nosso desafio” (435). Deste modo Ruy Belo valoriza a liberdade de escolha, a verdade e a justiça, com a poesia como destino. Conforme escreveu numa crónica de A Capital em 1970, “o poeta, através da poesia, pode vir a conhecer-se melhor e ajudar os outros a conhecer-se. A poesia deve servir um ideal de comunhão humana” (2002: 287). Locais, nomes de poetas e artistas evocados sugerem que esse ideal encontra na Europa a base sobre a qual se poderá efetivamente edificar.
Lista de poemas sobre a Europa
“Guide Bleu”, Boca Bilingue (1966)
“Mudando de assunto”, Homem de Palavra[s] (1970)
“Orla marítima”, Homem de Palavra[s] (1970)
“Cantam na catedral”, Homem de Palavra[s] (1970)
“Estátua de rapariga que se prepara para dançar”, Transporte no Tempo (1973)
“Do sono da desperta Grécia”, Transporte no Tempo (1973)
“No aniversário da libertação de Paris”, Transporte no Tempo (1973)
“Elogio de Maria Teresa”, Transporte no Tempo (1973)
“Madrid revisited”, Transporte no Tempo (1973)
“Saudação a um yankee”, Transporte no Tempo (1973)
“No aeroporto de Barajas”, Transporte no Tempo (1973)
“Óscar Niemeyer”, Toda a Terra (1976)
“A guerra começou há trinta e quatro anos”, Toda a Terra (1976)
“Requiem por Salvador Allende”, Toda a Terra (1973)
“A sombra o sol”, Toda a Terra (1976)
Antologia breve
Mudando de assunto
Entramos no inverno longo túnel
A noite cresce como a orla da maré
numa manhã de mar e de neblina
Nunca mais saberei quem passou no corredor
Estendo-te a mão por cima destes séculos agrippa d’aubigné
Se eu pudesse lutero fazer alguma coisa por ti
Assim recordo apenas múltiplas cadeiras onde me sentei
e aquelas coisas todas que esqueci
Alguém alguma vez pela vidraça de um café
me terá visto e terá querido ser quem sou?
Pintaria matisse a dança II
alguém leria a trilogia das barcas
«Foi assim que voltei para frança»
Para onde voltaste verdadeiramente erasmo?
Estou tanto na velhice como nestes dias
compro o meu sono em comprimidos na farmácia
juro que nunca vi a invencível explosão das folhas
e choro tudo o que passou só porque fui capaz
Eu não dispenso a morte eu quero morrer muito
levar de uma só vez aquilo que me leva
e ficar a esquecer no meu mais puro espanto
Não perguntem quem sou
neste momento em que recordo e escrevo
Alguma parte minha banha agora
o mar mediterrâneo do verão?
Farão ski em sesimbra ao fim da tarde
ou em vila do conde uma certa manhã?
E uns olhos azuis no comboio para versalhes?
E que fazer agora destas mãos
da cara que mostrar todos os anos par?
Entramos no inverno. Quantos são?
Tenho uma vasta obra publicada
e tenho a morte em preparação
in Homem de Palavra[s] (2014: 319-320)
Madrid revisited
Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga o meu propósito
dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim habitual
a externa ordenação desta cidade onde regresso
Chove sobre estas ruas desolada e espessa como esmiuçada chuva
a tua ausência líquida molhada e por gotículas multiplicada
O céu entristeceu há uma solidão e uma cor cinzentas
nesta cidade há meses capital do sol núcleo da claridade
É outra esta cidade esta cidade é hoje a tua ausência
uma imensa ausência onde as casas divergiram em diversas ruas
agora tão diversas que uma tal diversidade faz
desta minha cidade outra cidade
A tua ausência são de preferência alguns lugares determinados
como correos ou café gijón certos domingos como este
para os demais normais só para nós secretamente rituais
se neutros para os outros neutros mesmo para mim
antes de em ti herdar particular significado
A tua ausência pesa nestes loca sacra um por um
os quais mais importantes que lugares em si
são simples sítios que em função de ti somente conheci
e agora se erguem pedra a pedra como monumento da ausência
Não vejo aqui o núcleo geográfico administrativo de um país
capital de edifícios centro donde emanam decisões
complexo de museus bancos jardins vida profissional turismo
que um dia conheci e não conheço mais
Aqui só há o facto de eu saber que fui feliz
e hoje tanto o sei que sei que sê-lo o não serei jamais
É esta a capital mas capital não de um certo país
capital do teu rosto e dos teus olhos a nenhuns outros iguais
ou de um país profundo e próprio como tu
Madrid é eu saber pedra por pedra e passo a passo como te perdi
é uma cidade alheia sendo minha
é uma coisa estranha e conhecida
Abro a janela sobre o largo e o teatro onde estivemos
e onde na desdémona que vi te vi a ti
Não é chuva afinal que cai só cai a tua ausência
chuva bem mais real e pluvial que se chovesse
Mais do que esta cidade é só certa cidade que jamais houvesse
numa medida tal que apenas lá profundamente eu fosse
e nela só a minha dor como uma pedra condensada
de pé deitada ou de qualquer forma coubesse
É uma cidade alta como as coisas que perdi
e eu logo perdi apenas conheci
pois mais que a ela conheci-te a ti
Foi de uma altura assim que eu caí
superior à própria torre desse hotel
por muitos suicidas escolhida para fim de vida
Não é esta cidade essa cidade onde vivi
onde fui ao cinema e trabalhei e passeei
e na chama do corpo próprio a mim sem compaixão me consumi
Aqui foi a cidade onde eu te conheci
e logo ao conhecer-te mais que nunca te perdi
Deve haver quase um ano mais que ao ver-te vi
que ao ver-te te não vi e te perdi ao ter-te
Mas a esta cidade muitos dão o nome de madrid
in Transporte no Tempo (2014: 459-460)
Do sono da desperta Grécia
Nenhuma voz em esparta nem no oriente
se dirigira ainda aos homens do futuro
quando da acrópole de atenas péricles hierático
falou: «ainda que o declínio as coisas
todas humanas ameace sabei vós ó vindouros
que nós aqui erguemos a mais célebre e feliz cidade»
Eram palavras novas sob a mesma
abóbada celeste outrora aberta em estrelas
sobre a cabeça do emissário de argos
que aguardava o sinal da rendição de tróia
e sobre o dramaturgo sófocles roubando
aos dias desse tempo intemporais conflitos
chegados até nós na força do teatro
Apoiada na sua longilínea lança
a deusa atenas pensa ainda para nós
Pela primeira vez o homem se interroga
sem livro algum sagrado sob a sua inteligência
e a tragédia a arte o pensamento
desvendam o destino a divindade o universo
Em busca da verdade o homem chega
às noções de justiça e liberdade
Após quatro milénios de uma sujeição servil
o homem olha os deuses face a face
e desafia a força do tirano
E nós ainda hoje nos interrogamos
a interrogação define a nossa livre condição
O desafio de antígona e de prometeu
é hoje ainda o nosso desafio
embora como um rio o tempo haja corrido
«Diz em lacedemónia ó estrangeiro
que morremos aqui para servir a lei»
«E se esta noite é uma noite do destino
bendita seja ela pois é condição da aurora»
Palavras seculares vivas ainda agora
Uma grécia secreta dorme em cada coração
na noite que precede a inevitável manhã
in Transporte no Tempo (1973: 525-526)
Bibliografia ativa selecionada
BELO, Ruy (2014), Todos os Poemas, 4ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim.
— (2002), Na Senda da Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim.
Bibliografia crítica selecionada
ALVES, Ida (2015), “Poesia e paisagem na escrita de Ruy Belo”, in Literatura Explicativa. Ensaios sobre Ruy Belo, org. Manaíra Aires Athayde, Lisboa, Assírio & Alvim, 21-34.
CRUZ, Gastão (2015), “Construção e desconstrução em poemas longos de Ruy Belo”, in Literatura Explicativa. Ensaios sobre Ruy Belo, org. Manaíra Aires Athayde, Lisboa, Assírio & Alvim, 95-110.
Lígia Bernardino
Como citar este verbete:
BERNARDINO, Lígia (2018), “Ruy Belo”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/ruy-belo/