VASCO GRAÇA MOURA

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VASCO GRAÇA MOURA

(1942-2014)

Vasco Graça Moura nasceu em 1942 no Porto, foi eleito deputado da Assembleia Constituinte em 1975 e integrou os dois Governos Provisórios desse ano como Secretário de Estado. Foi director da RTP2, administrador da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, director dos Serviços da Fundação Calouste Gulbenkian, co-autor da proposta para a organização da Expo 98, deputado europeu pelo PSD de 1999 a 2009 e presidente da Fundação Centro Cultural de Belém até à sua morte em 2014. A par deste impressionante currículo político, Vasco Graça Moura constrói uma obra poética que analisa criticamente a Europa, questionando uma identidade cultural partilhada, nas suas limitações, influências e evolução. Num poema intitulado “da europa” (2012b: 359), Graça Moura sugere que a consciência de uma europeidade está sempre presente nos seus conterrâneos ao longo dos séculos, mesmo se é difícil de definir, implícita, inquestionada (“da europa a consciência é estranha: / talvez não saibamos nada dela enquanto / dela sabemos tudo em cada experiência / de vida”). Essa consciência, no entanto, não desperta necessariamente um interesse mútuo entre europeus; pelo contrário, Graça Moura acusa um modelo de Europa em que cada país se concentra em si mesmo e procura ignorar tudo o que lhe é estrangeiro, fora e dentro do continente.

Paralelamente, o autor associa a Europa contemporânea a uma Europa mítica e histórica. A Europa que conhece em primeira mão é ainda e sempre povoada por Ulisses, Helena de Tróia e Dante, mantendo a sua influência tão viva como há séculos atrás. Assim, parece sugerir o autor, uma Europa que se esquecesse da sua mitologia perderia a sua identidade cultural: “a rapariga de jeans atravessa o restaurante / faz-me lembrar a helena a pentear-se / eu vivo o espelhar, estas permutas / da retina e da memória / nalgumas velhas cidades do continente. […] interrogo-a? mas não é nausicaa”, lê-se em “aeroporto” (2012a: 202); e, em “maio de 68”:

 

comentavam luísa, a
apanhadora de malhas em meias,
com o marido fora há dez anos,
sem dar notícias. tinha havido
desordens entre quatro
homens daquele bairro, por causa
de luísa, que os
ignorou e continuava a
cuidar do filho
[…]
deitaram-se a adivinhar,  que podia ser fernando,
marido de luísa
[…]
não tinha
nada a ver com luísa,
mas que se
chamava odisseus. (idem: 449)

 

Vasco Graça Moura apresenta uma visão desalentada sobre as revoluções democráticas, enraizada na sua desesperança pelo cidadão “cordato digerindo e bem apascentado”, que considera passivo, ignorante e demagogicamente manipulável, vivendo acima das suas possibilidades: “o calo esquerdo muitíssimo dorido / um anular muitíssimo dourado / […] não vê o lado que está mais-que-falido”, lê-se em “o calo esquerdo” (idem: 72). Tal como os seus cidadãos, também a União Europeia, na concepção de Vasco Graça Moura, está a trair-se, tentando ser o que não é, ambicionando um projecto mais largo do que é capaz de abarcar, levando a uma convulsão de identidades: “na europeia babel […] um dia, quando os quinze forem trinta, / deixa de haver europa ocidental” (2012b: 419); “é tempo de isto, indecidido / país de bons cheiros e vibrações à beira-europa, / deixar de ser portug-hamlet, na alarvidade e nas ternuras recreativas, / nas variações de sentimento e de política” (2012a: 378).

Perante a falta de envolvimento das populações na mudança política, Graça Moura vê a revolução como uma “pirueta sobre o real canceroso” (idem: 227), incapaz de efectuar reais mudanças necessárias, apenas “uma exausta / desvinculação das almas / e torpes disciplinas, a crise / por modelos redutores […] as pessoas comovem-se / reeducando frágeis apetências, margens tímidas, arbítrios” (ibidem). Tomando o 25 de Abril como exemplo, o autor considera que o entusiasmo com o movimento e o furor da revolução levaram à perda de vista dos objectivos pragmáticos e a um excesso que acabou por não servir nenhum propósito: “misturou-se a rua, a ideologia, o excesso e o senso / comum, rejeitou-se em nome disto ou daquilo, destruiu-se tumultuariamente […] / no que podia então ter sido” (2012b: 290).

Em “maio de 68” (idem: 449) o autor escolhe narrar não as grandes conquistas do movimento, mas um episódio rural, sobre uma apanhadora de malhas que espera o marido – a ausência de referências à revolução sugere que esta não terá tido uma importância englobante e que nos meios pequenos a vida continua como dantes; as grandes inovações, parece sugerir o autor, preocupam os revolucionários, mas não o grosso das gentes. Os interesses razoáveis que deviam alimentar a revolução são perdidos no furor do movimento.

Por outro lado, como deputado europeu, Graça Moura elenca também o sentido de rotina, a frustração com a impotência efectiva e os trâmites burocráticos a que se vê obrigado: “um dia assente / em rotinas políticas e tretas, / como o dia afinal de toda a gente, / tão pouco entusiasmante” (idem: 429). Refere ainda no mesmo poema as saudades de casa: “sinto-a a decifrar-me, / soprando as minhas velas / bem longe de bruxelas […] casas lembrando o porto” (ibidem). Para Vasco Graça Moura, a procura de um abrigo familiar nas suas viagens pela Europa é um sentimento recorrente. Todas as grandes cidades europeias partilham, para o autor, uma natureza comum, uma identidade cultural que lhe custa definir – são o palco de aventuras românticas, experiências artísticas, memórias, enquanto tenta construir uma segunda casa: “em paris, em colónia, nos sítios que não quero mencionar / porque me rasuraram ou porque os rasurei / a vida correrá como é normal à noite / com bêbados e cães e vagabundos graves. / escrevo-te também pra não pensar que dormes / e criar os lugares onde o teu sono nos pertença” (2012a: 214).

Graça Moura regista ainda a propagação da cultura europeia em Portugal na segunda metade do século XX e a influência sobre a sua geração: o entusiasmo artístico inicial, a curiosidade pelos novos movimentos, mesmo a tendência de uma imitação epigonal (“estas injustiças afetavam a cultura da cidade: / a matisse ligava-se menos do que ele merecia, / a gente vivia numa atração parnasiana / por rosas e azuis esmaecidos; era a felicidade macilenta / de debitar rilkasso. que bom era imitar / imitações alheias, dar faltas ao liceu, ir à ‘divulgação’” (idem: 270)); mas também, eventualmente, o amadurecimento: o fulgor excessivo substituído por uma avaliação sensata, a relativização dos ícones. Eis um testemunho do cenário artístico na segunda metade do século XX: “porque tudo se foi exilando e crescemos bastantemente / para perceber que o retrato de max jacob / era o de monsieur bertin do nosso tempo / e que júlio pomar não era ainda jules verger / e que satie é o pior dos músicos franceses” (idem: 271).

Profuso autor e tradutor, tendo traduzido diversos textos tão fundamentais como A Divina Comédia de Dante, os Sonetos de Shakespeare ou Andrómaca de Racine, Graça Moura mantinha-se ao corrente da situação literária europeia; lamentava o estado estagnado a que a indústria editorial havia chegado e a que se referia como “os putedos da escrita” (idem: 235):

 

há sempre um pio eneias
com o pai a cavalo e um traficante
pra promover a coisa: há-de ser traduzida
sobretudo se o velho e o rocim forem prá cama
que a palha vende bem se for negócio
de camisas de vénus para a alma.
[…]
e tudo é igual a tudo: a escrita policial
tornou-se uma poética de enfadadas perfídias
e a poesia uma série de ignorâncias
que não levam a lado nenhum (ibidem)

 

Em conclusão, a Europa para Vasco Graça Moura é um espaço ligado por uma tradição e uma identidade cultural comuns, que se vê desafiada pela “globalização e expansão das tecnologias de comunicação e informação, [pela] reunificação alemã, [pel]o excessivo alargamento a 28 ocorrido em 2013, [pel]o Tratado de Lisboa”, como escreve no ensaio A Identidade Cultural Europeia (2013: 14). Graça Moura teme a desintegração dessa identidade e os efeitos que o furor da novidade pode causar à criação de uma Europa mais equilibrada, sustentada num entendimento, histórica e culturalmente informado, do que significa ser europeu.

 

Lista de poemas sobre a Europa

“o calo esquerdo”, Poesia Reunida (2012a)

“aeroporto”, Poesia Reunida (2012a)

“carta a l.v.c.”, Poesia Reunida (2012a)

“a variação dos semestres deste ano; 365 versos”, Poesia Reunida (2012a)

“a escola de frankfurt”, Poesia Reunida (2012a)

“picasso visto do porto”, Poesia Reunida (2012a)

“os fantasmas coloquiais”, Poesia Reunida (2012a)

“13. post-scriptum sobre o 25 de abril”, Poesia Reunida (2012b)

“da europa”, Poesia Reunida (2012b)

“soneto pardacento”, Poesia Reunida (2012b)

“canção de bruxelas”, Poesia Reunida (2012b)

“maio de 68”, Poesia Reunida (2012b)

 

Antologia Breve

 

da europa

da europa a consciência é estranha:

talvez não saibamos nada dela enquanto

dela sabemos tudo em cada experiência

de vida. como a pátria de ulisses,

 

é um território onde,

entre as ruínas e algumas fidelidades contraditórias,

a alma aporta e renasce para a aventura.

os navegadores projectaram-na para além dos mares,

 

as artes e as técnicas, as orações e os medos, as alegrias e os lutos,

os crimes, as penitências, as substâncias do bem e do mal

impregnaram-lhe os próprios horizontes.

eu nasci numa pequena cidade do norte

 

num país do seu extremo horizontal.

há muitos outros países, cidades, montes, vales, planícies

e gentes que vivem mais afastadas do poente, gentes que,

para saberem do mundo, cultivam quanto a ela

 

uma espontânea distracção. e todavia, em toda a parte,

pelos séculos fora os homens não se pouparam ao sofrimento, enquanto

buscavam sempre a felicidade. ficavam exaustos mas

não falavam da europa que chegasse, não conseguiam

 

descobrir essa presença matricial

na dignidade da sua história, dos seus trabalhos e dos seus dias,

da sua paz, das suas guerras, das sombras mais profundas

de um conhecimento quantas vezes trágico.

 

da europa que se faz e se imperfaz

de tantas línguas, céus vários e costumes,

talvez saibamos pouco, talvez eu saiba apenas

ter consciência disso.

in Poesia Reunida (2012b: 459)

 

o calo esquerdo

o calo esquerdo muitíssimo dorido

um anular muitíssimo dourado

carnudo, repartido, sem partido

cidadão e leitor bem comportado

como rês lúbrica está preocupido

como rês pública está preocupado

não vê o lado que está mais-que-falido

mas sabe de outros que nisso têm falado

e segue, sem prestar à paz sentido

cordato digerindo e bem apascentado

in Poesia Reunida (2012a: 72)

 

canção de bruxelas

há neve para os lados da floresta

negra, diz-me o chauffer, e nas estradas

há já mais acidentes com o gelo.

em bruxelas é assim. subo as escadas.

trepida ao lado música de festa,

deve ser um casal que vive em pêlo

de afagos tão suaves, ira honesta,

ligando aquecimento,

cio e contentamento.

meto a chave na porta, acendo a luz

e trato do jantar: legumes crus

e queijo, ou bife, massa, ovos mexidos,

ou qualquer coisa assim

para tratar de mim,

sem perder muito tempo em estrugidos.

 

então escuto um disco, as goldberg,

pela turek, e várias coisas mais,

uma paixão, o don giovanni, ou,

sei lá, o que me der na gana em tais

ocasiões carentes em que se ergue

alguma coisa em mim que diz «estou

de música faminto neste albergue»

e a alma me desata

pedindo uma sonata

e eu entro assim na outra dimensão

subtil, elaborada, e nada pão,

pão, queijo, queijo, e sinto-a a decifrar-me,

soprando as minhas velas

bem longe de bruxelas.

mas às vezes, na noite, há um alarme,

uma sereia da polícia, um grito,

não já dos meus vizinhos saciados,

mas de quem? e porque? se vem do escuro

e há inúmeros carros assaltados,

bem pode ser mais um. e sem atrito

me ocupo de outras coisas e procuro

percorrer mais um livro, no bendito

gozo que isso me dá,

embora saiba que há

para aí editada tanta merda

sem nome, que tocar-lhe é pura perda

de horas a trabalhar. e ao vir o sono,

lá para as tantas, eu

penso no que me deu

mais um dia cinzento deste outono:

 

entre as brumas, chuvinha intermitente,

por vezes umas nuvens mais ligeiras,

casas lembrando o porto, umas pracetas,

uns bosques, uns jardins, umas goteiras,

uns panos de tijolo, um dia assente,

em rotinas política e tretas,

como o dia afinal de toda a gente,

tão pouco entusiasmante

e nada trepidante,

tudo fechado às seis com ar de frete

(mas livrarias fecham só às sete)

entre engarrafamentos e buzinas

e algumas lengalengas

francesas e flamengas,

no boulevard, nas ruas, nas esquinas.

 

canção, tombei em ti meu dia-a-dia.

sejas tu o registo

de que eu não gosto disto

e todavia gosto, e todavia…

in Poesia Reunida (2012b: 429)

 

Bibliografia ativa selecionada

MOURA, Vasco Graça (2013), A Identidade Cultural Europeia, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.

— (2012a), Poesia Reunida, vol. 1, Lisboa, Quetzal.

— (2012b), Poesia Reunida, vol. 2, Lisboa, Quetzal.

 

Ana Cunha

Como citar este verbete:

CUNHA, Ana (2019), “Vasco Graça Moura”, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6. https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/vasco-graca-moura/