(1921-1981)
Filho de uma luso-brasileira e de um emigrante português, o escritor Carlos de Oliveira nasce em Belém do Pará, na Amazônia brasileira, mas, pouco após completar os dois anos de idade, muda-se com a família para Cantanhede, na região da Gândara, em Portugal. Essa espécie de dupla origem é um interessante ponto de partida para se pensar a presença da Europa na poesia de Carlos de Oliveira. A paisagem, a geografia e os habitantes da Gândara portuguesa, onde Oliveira vive até se mudar para Coimbra, em 1933, são fundamentais para a sua obra e atravessam grande parte de seus romances e poemas. Sobre essa questão, afirma Oliveira:
Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora das Febres. Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade infantil enorme, uma emigração espantosa. Natural portanto que tudo isso me tenha tocado (melhor, tatuado). O lado social e o outro, porque há outro também, das minhas narrativas ou poemas publicados (quatro romances juvenis e alguns livros de poesia) nasceu desse ambiente quase lunar habitado por homens e visto, aqui para nós, com pouca distanciação (2004a: 183-184).
O lugar privilegiado da Gândara nos escritos de Oliveira confere à sua literatura uma predisposição à margem: ainda que localizada na Europa, a Gândara é uma região periférica em um país periférico – especialmente se pensarmos no período em que o autor publica, entre 1942 e 1978. Além disso, no complexo jogo de referenciação identitária, os poemas de Oliveira talvez desejem aproximar-se mais do lugar do outro, da margem, do que do mesmo, do centro. Nota-se, por exemplo, que o significante “Europa” (que aponta para a metrópole, para o centro, para o poder) está completamente ausente em seus versos, à exceção da primeira versão de Turismo, seu livro de estreia. Ainda assim, alguma Europa habita sua escrita de modo sutil: ela emerge a cada citação, a cada referenciação a outros poemas, mitos, episódios e autores europeus.
Há uma “Europa” materializada como palavra na edição princeps de Turismo. Publicada em 1942 na coleção “Novo Cancioneiro”, com ilustrações de Fernando Namora, esse livro de juventude está fortemente filiado às manifestações artísticas de seu contexto: refiro-me especialmente ao Neorrealismo português, movimento no qual Oliveira é genericamente inscrito. Vale a pena mencionar que parte da crítica considera a existência de um corte na produção do autor sugerida por ele mesmo quando da publicação da coletânea Trabalho Poético, de 1976, em dois volumes, que funcionariam como duas fases distintas do seu trabalho (Cruz 2008). Não se trata, portanto, de um autor homogêneo conformado às delimitações de uma escola literária. Naquela que é considerada a segunda fase de sua produção (uma etapa de amadurecimento, pode-se dizer), seus escritos se afastam dos de alguns neorrealistas que pretendiam fazer uma leitura da dialética marxista segundo a qual a arte deveria contribuir exclusivamente para o aperfeiçoamento da ordem social (Pita 2002: 232). Passam a negar, portanto, um dever de comunicar com clareza e transparência a chamada realidade para produzir uma transformação no mundo.
Turismo, no entanto, é ainda anterior à chamada primeira fase: mais do que se apoiar “claramente numa versão-de-mundo marxista, mais parece fazer apelo a um senso de justiça social próximo do senso comum” (Martelo 1996: 274). Talvez por isso, Oliveira tenha estabelecido com esse seu livro uma relação dúbia: ele exclui Turismo da primeira coletânea, Poesias, de 1962, mas reinsere-o, completamente modificado, em Trabalho Poético (idem: 270). Dos 37 longos e entusiasmados poemas contidos na primeira edição, restaram, na coletânea, 19, todos imbuídos da brevidade e da concisão que se tornariam marcas de Carlos de Oliveira. Os cenários de pobreza e da colonização perdem a objetividade descritiva e tornam-se sugestões. Desaparece o significante “Europa”: mencionado por três vezes na edição princeps, todas elas na parte “Amazónia”, o signo para a metrópole, o centro e o poder é apagado na versão dos anos 1970. Transcrevo um trecho do poema XIII, excluído posteriormente em Trabalho Poético:
Na selva,
incham e estoiram veias.
Mas carregam-se os barcos
e navega-se à Europa
de mãos cheias. (1942: 33)
O desaparecimento dessa Europa na última versão coincide com a dissolução parcial de deíticos pessoais. É como se, ao longo dos anos, essa outridade dual em Oliveira – a Amazônia, a Gândara – passasse a prescindir tanto do centro referencial que lhe confere a condição de outro – a Europa – quanto da marcação de uma identidade amparada nesses antes constantes “eu”, “me”, “meu”, “minha”. Por exemplo, o poema X, na edição de 1942, do qual reproduzo as primeiras estrofes:
– Sou negro.
O meu nome é Floriano.
Olho o céu da selva.
Céu!
E apalpo e oiço o silêncio,
que o silêncio adensou
e rangeu.
Sou negro.
Sou filho da América
– sexta geração
dum escravo do Congo.
Balanceio na rêde
picado de mosquitos.
Balanceio dócil.
Meu corpo já não tem gritos.
Meu corpo já não tem voz
– mataram-na os chicotes
na carne dos meus avós. (1942: 26-27)
Desse poema, em 1976, o poeta aproveitou somente parte da segunda estrofe para o poema IV:
Céu.
Apalpo e oiço
o silêncio. O silêncio
adensou e rangeu. (2004: 18)
Exclui-se esse “eu” incorporado em Floriano e a primeira pessoa permanece, porém de modo mais fluido: deixa de ser um personagem com nome, origem e história para se tornar um sujeito oculto. Assim como o poeta desfaz esse eu (que, no caso de Floriano, é também o outro), ele desfaz as imagens idealizadas – e, diga-se de passagem, europeizantes, no que concerne à exotização/erotização da diferença – de uma Amazônia mulher, indígena, cabocla, semi-virgem, violada pelo homem branco, bastante devedoras de um requentado Romantismo indianista brasileiro (Gama 2009). Observa-se um exemplo disso neste trecho do poema V:
Minha semi-virgem da colonização!
Índia, negra, cabocla.
Minha amante
semi-virgem e distante. (Oliveira 1942: 16)
Em relação aos livros posteriores a Turismo, ao buscarmos a Europa escrita por Carlos de Oliveira, encontramos, não raro, a Europa lida por ele: são muitos os poemas que citam, aberta ou sutilmente, artistas, mitos, autores de origem europeia.
Alguns desses dispositivos intertextuais estão presentes em Terra de Harmonia (1950), como no poema “Que me quereis, perpétuas saudades”. O jogo é anunciado logo na epígrafe “Car j’imite… Tout le monde imite. Tout le monde ne le dit pas” (Oliveira 2004b: 128), retirada do prefácio de Les Yeux d’Elsa, de Louis Aragon. O que se apresenta em seguida é um tríptico: a reprodução do soneto “Que me quereis, perpétuas saudades”, de Luís de Camões, intitulado por Oliveira como “Soneto de Camões”; a reprodução do poema “Imité de Camoëns (Aragon)”; por último a versão do próprio autor, com o título “Imitado de Aragon”. Nessa justaposição de uma criação sua e de duas reproduções, configura-se a intenção de agir diferente do tout le monde invocado por Aragon: Carlos de Oliveira imita e o faz às claras, para dar a ver que as criações devem muito mais aos exercícios de leitura e às apropriações do que às inspirações poéticas de um espírito genial. Além disso, nesse tríptico, atravessamos uma espécie de Biblioteca de Babel borgeana, em que um texto cita um outro, que cita um outro, que cita um outro… em um potencial infinito. Essa vocação intertextual de Terra de Harmonia fica ainda mais evidente na versão de 1976 com a integração nesse volume do “Soneto castelhano de Camões”, antes parte de Cantata (1960), e as inéditas traduções contidas em “Sonetos de Shakespeare reescritos em Português” (Martelo 1996).
A biblioteca europeia subterrânea advém ora como citação – caso dos poemas “Colagem – com versos de Desnos, Maiakovski e Rilke”, “Aresta” (que abre com uma epígrafe de Edgar Allan Poe traduzida por Charles Baudelaire), “Fogo” (que faz um comentário ao mito de Orfeu), “Debaixo do Vulcão” (dedicado ao escritor inglês Malcolm Lowry, autor de um romance de mesmo título) –, ora como hipotexto, caso do “Inferno”, de Dante, em Descida aos Infernos (1949). O continente europeu inscreve-se em alguns poemas como paisagem – caso de “Look back in anger”, e das duas primeiras partes de “A segunda memória” –, também como língua – quando se lê a nona parte do poema “Espaço” e depara-se com o nome de Vladimir Maiakóvski escrito em alfabeto cirílico: ВЛaДИMИР MaЯKOBCKИЙ.
Para concluir esse percurso em direção à (ou contra a) Europa, dois exercícios ecfrásticos. O primeiro, mais breve, vem do longo metapoema “A noite inquieta”, no livro Colheita Perdida (1948), em que é descrita uma cena noturna, insone, na qual o poeta está diante do seu ofício da escrita (e da leitura), – “tenho livros abertos sobre a mesa / com páginas silenciosas que meditam. // Abertos como frutos, como factos / onde busco a verdade, a luz latente: / livros simples, cálidos, exactos, / com sonhos que a insónia me consente” (Oliveira 2004b: 74) –, quando seu olhar vaga pela parede e encontra uma pintura de Van Gogh. Com ela estabelece uma relação de identificação entre si e a paisagem do quadro, bem como uma interpolação entre o conteúdo da pintura e a sua materialidade, o representado e a representação:
Sobre o pálido estuque da parede,
como um espelho da minha própria imagem,
uma seara de Van Gogh morre à sede
no óleo espesso e fulvo da estiagem.
Ao calor do céu de tela passa,
arrancando pedaços de céu velho,
um bando de aves que pressente a ameaça
no horizonte de cor, raso e vermelho (idem: 74-75).
O segundo exercício ecfrástico, presente no livro Entre Duas Memórias (1971), é o poema “Descrição da guerra em Guernica”, que retrata não o massacre da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) em si, mas o famoso painel de Pablo Picasso Guernica. Ao referir-se à representação pictórica ao longo das dez partes em que o poema se divide, o poeta localiza as personagens e os objetos do quadro conforme a limitação da moldura: as descrições do poema vêm geralmente precedidas de “ao alto”, “à esquerda”, “Em baixo”, etc. Ainda assim, predomina no poema o elemento narrativo: ele discorre narra as imagens por meio de ações cuidadosamente construídas no presente do indicativo, o que confere ao episódio histórico a força do tempo presente e torna o leitor testemunha do horror do evento (Gusmão 1981):
I
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro. (Oliveira 2004: 300)
O ataque aéreo de aviões alemães em apoio ao fascista Francisco Franco só é visível ao espectador-leitor por meio da “terceira luz” que “o anjo camponês” carrega consigo. Cria-se, logo nos primeiros versos, uma correlação entre o leitor e “o anjo camponês” enquanto testemunhas oculares do episódio. O anjo, na parte IX do poema, é tornado um Gabriel do avesso, incapacitado, diante do terror da guerra, de anunciar a vinda da salvação:
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne de água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho? (idem: 308)
Esse ponto de vista eleito pelo poeta – o do “anjo camponês” – para narrar um acontecimento tão simbólico para a história europeia é paradigmático do posicionamento ético e político de Carlos de Oliveira: são os “olhos rurais” do anjo, à contrapelo do progresso técnico, olhos esses que estranham as máquinas de guerra, que observam e tornam visíveis o horror do Fascismo. É a partir da margem (e não do centro), dos destituídos do poder (e não dos poderosos) que se arma essa história europeia que Carlos de Oliveira busca contar. Nesse poema, como em tantos outros, Oliveira lê a Europa, reescreve-a, revira sua história (o passado colonial, o fascismo), seus poetas e mitos, sem, contudo, chamá-la pelo nome.
Lista de poemas sobre a Europa
– “III”, Turismo (1942)
– “V”, Turismo (1942)
– “XIII”, Turismo (1942)
– “Noite inquieta”, Colheita Perdida (1948)
– Descida aos Infernos (1949)
– “A ilha”, Terra de Harmonia (1950)
– “Que me quereis, perpétuas saudades”, Terra de Harmonia (1950)
– “Sete sonetos de Shakespeare reescritos em Português”, Terra de Harmonia (1976)
– “Look back in anger”, Sobre o Lado Esquerdo (1968)
– “Lavoisier”, Sobre o Lado Esquerdo (1968)
– “Colagem”, Sobre o Lado Esquerdo (1968)
– “Debaixo do vulcão”, Micropaisagem (1968)
– “Fogo”, Micropaisagem (1968)
– “Aresta”, Micropaisagem (1968)
– “Espaço”, Micropaisagem (1968)
– “Descrição da guerra em Guernica”, Entre Duas Memórias (1971)
– “A segunda memória”, Entre Duas Memórias (1971)
Antologia breve
V
Minha semi-virgem da colonização!
Índia, negra, cabocla.
Minha amante
semi-virgem e distante.
Vieram homens de todas as raças e de todas as névoas,
rasgaram-te
e não te possuíram.
Vieram Stanleys e Livingstones e Serpas Pintos,
chagaram-te
mas não te cingiram.
Europeus de todas as Escandinávias, de todas as
Albions, de todas as Lusitânias,
vândalos e brutos,
feriram-te e morreram.
Mas os teus seios ficaram eternos e impolutos
como eram.
Navegadores, glob-trotters, gangsters, corsários,
enchem-se de febres por uma gota do teu sangue.
E levam gotas do teu sangue.
Mas o teu corpo fica como dantes,
alheio a navegações e navegantes.
Áfricas, Índias, Pérsias,
foram desfloradas
e vilipendiadas
e vendidas.
E tu foste rasgada e ferida,
minha cabocla do mato.
— Mas tens ainda as pernas castas e unidas!
in Turismo (1942: 16-17)
Look back in anger
Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras de Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais da prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida
in Sobre o Lado Esquerdo (2004: 181).
Colagem – com versos de Desnos, Maiakovski e Rilke
Palavras,
sereis apenas mitos
semelhantes ao mirto
dos mortos?
Sim,
conheço a força das palavras,
menos que nada,
menos que pétalas pisadas
num salão de baile,
e no entanto
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?
in Sobre o Lado Esquerdo (2004: 186).
Bibliografia ativa selecionada
OLIVEIRA, Carlos de (1942), Turismo, Coimbra, Novo Cancioneiro.
— (2004a), O Aprendiz de Feiticeiro, Lisboa, Assírio & Alvim [1979].
— (2004b), Trabalho Poético, Lisboa, Assírio & Alvim [1976].
Bibliografia crítica selecionada
CRUZ, Gastão (2008), A Vida da Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim.
GAMA, Chimena Barros (2009), “Do ideológico ao estético: encontro com dois turismos de Carlos de Oliveira”, in Itinerários – Revista de Literatura, 28, Araraquara (Brasil): 183-197.
GUSMÃO, Manuel (1981), A Poesia de Carlos de Oliveira, Lisboa, Seara Nova.
MARTELO, Rosa Maria (1996), A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira, Porto, Edição da autora.
— (2002), “Rigor e literatura”, in Exposição Carlos de Oliveira e a perfeição da escrita, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal da Vila Franca de Xira.
PITA, António Pedro (2002), “Conflito e unidade no Neo-realismo português”, in Conflito e Unidade no Neo-realismo Português, Porto, Campo das Letras: 225-241.
Bruna Carolina Carvalho
Como citar este verbete:
CARVALHO, Bruna Carolina (2021), “Carlos de Oliveira”, in A Europa face a Europa: poetas escrevem a Europa. ISBN 978-989-99999-1-6.